Enquanto manifestações contra a violência policial que atinge os negros ocorrem há meses nos Estados Unidos, o Brasil recebeu com total indiferença os últimos dados de violência policial em seu território, elaborados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Confrontos com a polícia resultaram na morte de 2.212 pessoas em 2013 em todo o país. Em média, seis pessoas por dia morreram atingidas por armas policiais no ano passado no país
Anne Vigna – Agência Pública
Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro obtidos pela Agência Pública, os homicídios decorrentes de intervenção policial no estado do Rio, os famosos autos de resistência, tiveram um aumento de 30% entre 2013 e 2014. Até outubro de 2014, 481 pessoas morreram; foram 381 até outubro de 2013, e 416 em todo o ano de 2013. É praticamente o mesmo número de homicídios cometidos pela polícia dos Estados Unidos em um ano, em um território de 300 milhões de habitantes – há 16 milhões de habitantes no estado do Rio.
Os números de 2014 mostram ainda que, apesar da diminuição desses homicídios no estado após a adoção das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), em 2008, esses crimes estão de novo subindo. Ainda permanecem, contudo, distantes do recorde de 2007, com 1.330 mortos pela polícia.
No estudo sobre a violência fluminense “Segurança pública, violência e polícia: o que aconteceu com o Rio de Janeiro” (2014), a pesquisadora Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, mostra que o aumento ou a diminuição dos homicídios de um modo geral estão ligados à violência policial. Se a polícia é mais violenta, o conjunto da sociedade se torna também mais violento. Com a chegada das UPPs, “os autos de resistência recuaram 70% se compararmos com o ano de seu ápice, 2007 com 2013, e as taxas de homicídio caíram para 28 por 100.000 em 2011 e 2012, contra 40 a 50 por 100.000 nos anos 2000”. Por isso, a pesquisadora acredita que “as UPPs são em boa medida um programa de ‘pacificação da polícia’”. Ela ressalta que “para as favelas sem UPPs prevaleceu a autorização para matar”. “Sem mudar profundamente a polícia e as políticas de segurança não seremos capazes de controlar os problemas de violência e criminalidade no estado”, escreve.
Existem várias pesquisas sobre os autos de resistência no estado do Rio desde pelo menos 1997, quando foi publicado o estudo “Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro”, feito por Ignácio Cano, sociólogo do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
O pesquisador Michel Misse, sociólogo do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana daUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), produziu o estudo “Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011)”. Uma das conclusões mais importantes do trabalho foi mostrar que o Ministério Público (MP) propôs o arquivamento em 99,2% dos casos de auto de resistência. Isso significa que, para o MP, em quase todos os casos, a polícia atua em legítima defesa e, como consequência, não recebe nenhuma punição. Recentemente, o delegado Orlando Zaccone analisou em sua tese de doutorado os fundamentos que levaram o MP a decidir pelo arquivamento de mais de 300 casos entre 2005 e 2009.
Cabe também destacar o estudo “Autos de resistência em São Gonçalo”. O trabalho veio justamente do MP e foi produzido em 2008 por Paulo Roberto Mello Cunha Júnior, que foi promotor titular do Tribunal do Júri em São Gonçalo, no Rio. Todas as investigações de especialistas em criminologia chegam à mesma conclusão, resumida pelo delegado Zaccone na seguinte frase: “Em suma, a polícia mata, mas não mata sozinha”. Se a polícia mata tanto é porque, na maioria dos casos, sabe que não haverá problemas judiciais por conta disso. No dia a dia, a Justiça acaba legalizando as mortes por autos de resistência como se fossem legítima defesa.
Na teoria, o Ministério Público é o órgão que pode controlar e punir os abusos da polícia, seja ela civil ou militar. Mas, segundo todos os estudos, a Justiça costuma acreditar na versão policial. Aceita-se uma investigação mal feita mesmo quando há muitas contradições no que foi relatado pelos policiais, mesmo quando poucas perícias foram realizadas ou mesmo quando tudo aponta para um excesso de força ou até para uma execução sumária.
Michel Misse define o relato dos policiais como “uma narrativa-padrão observável na imensa maioria dos casos analisados: os termos de declaração diziam que os policiais estavam em patrulhamento de rotina ou em operação, em localidade dominada por grupos armados, foram alvejados por tiros e, então, revidaram a ‘injusta agressão’. Após cessarem os disparos, teriam encontrado um ou mais ‘elementos’ baleados ao chão, geralmente com armas e drogas por perto, e lhes prestado imediato socorro, conduzindo-os ao hospital. Em quase todos os ‘autos de resistência’ é relatado que as vítimas morreram no caminho para o hospital, e os boletins de atendimento médico posteriormente atestam que a vítima deu entrada no hospital já morta”.
Em sua análise de cem casos de autos de resistência em São Gonçalo, o promotor Mello Cunha nota que “a prática de socorrer sempre os ‘feridos’ nos confrontos – em 100% dos autos de resistência pesquisados – é ainda mais suspeita quando comparamos com outras ocorrências”. “De fato, a experiência indica que quando se trata de homicídio ou mesmo acidentes de trânsito, o Corpo de Bombeiros ou o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) é acionado para prestar o socorro à vítima ou recolher o cadáver. A praxe, porém, se inverte quando se trata de autos de resistência”, escreve Mello Cunha.
Em muitos casos, os autos de exame cadavérico – outro exame pericial – demonstram ser muito improvável que a vítima pudesse apresentar sinais de vida que justificassem a sua remoção para um hospital. São bastante comuns as hipóteses de laceração do coração, dos pulmões ou do cérebro, indicando ser muito improvável que a vítima ainda estivesse viva quando foi socorrida. Em 32% dos casos de São Gonçalo as vítimas tinham mais de três ferimentos, com algumas chegando a ter mais de dez feridas de entrada de projétil de arma de fogo. O fato de a polícia mover o corpo dificulta a realização do exame do local do suposto confronto, que, na prática, nunca está no inquérito policial. A ausência de perícia no local impede o recolhimento das balas que permitam os exames de confronto de balística, também praticamente inexistentes em casos de autos de resistência. Nunca é feita também a reconstituição para determinar a veracidade dos confrontos alegados pela polícia.
Em vez de fazer todos esses exames (do local e de balística) e a reconstituição, a Polícia Civil prioriza encontrar a folha de antecedentes criminais da vítima. “A construção da legitima defesa é feita não por conta de como foi realizada a ação do policial, isso é o que menos importa. O que mais importa é a identificação do morto. Se ele for negro, favelado, tinha uma folha de antecedentes criminais, ou algum familiar relata que ele estava envolvido com o crime, é suficiente para legitimar a morte”, escreve o delegado Zaccone. De fato, as perguntas feitas aos familiares quando chamados são sempre para determinar “o caráter moral da vítima”. Até quando a família responde que a vítima era trabalhadora ou estudante as perguntas insistem em duvidar dessa versão, e tentam descobrir se era viciada em algum tipo de droga – o que poderia também “justificar” sua morte.
Michel Misse notou que “em todos os inquéritos de ‘autos de resistência’ não se costuma solicitar a folha de antecedentes criminais para os policiais”. “Interessa mais saber sobre o passado da vítima do que ter acesso à vida pregressa do autor do fato ou à quantidade de homicídios que ele já cometeu em serviço”, relatou.
Em São Gonçalo, o estudo demonstra que, para 82% dos mortos, não havia qualquer informação no inquérito policial sobre os antecedentes da vítima, uma informação comumente obtida por meio de uma simples consulta eletrônica ao banco de dados. Quando a folha de antecedentes criminais estava presente no inquérito policial, 7% dos mortos possuíam alguma anotação ou condenação antecedente. Outros 7% não tinham qualquer envolvimento anterior documentado com atividades criminosas. Já 3% dos opositores mortos – embora não houvesse qualquer informação oficial sobre eles – foram identificados pelos próprios policiais militares envolvidos no confronto como “gerentes do tráfico”, “chefes do tráfico” ou mesmo “donos do morro”.
Paulo Roberto Mello Cunha aponta várias contradições nas versões da polícia sobre o suposto enfrentamento com bandos armados: “O baixíssimo índice de apreensão de armas longas e o número altíssimo de revólveres calibre 38 apreendidos com supostos opositores demonstra, de duas, uma: ou os policiais não estão enfrentando constantemente grupos fortemente armados; ou não existem tantos fuzis em poder dos criminosos como querem nos fazer crer. Não há outra opção. Ademais os policias contam sempre que os bandos armados, atirando primeiro, conseguem atingir o adversário em apenas 2% dos casos. Ou estas pessoas não têm a mínima noção de como utilizar uma arma de fogo, ou há um número incrivelmente alto de deficientes visuais militando na vida do crime. Em suma, chamar de investigação o que acontece nos inquéritos relativos aos autos de resistência seria um verdadeiro deboche”.
As conclusões desses especialistas em criminalidade são terríveis para todo o aparato de segurança e, consequentemente, para a sociedade. “É insuficiente atribuir a responsabilidade por estas mortes a uma ‘cultura policial’. O dever legal de fiscalização do inquérito cabe ao Ministério Público que, no entanto, tende a não exigir mais do que a inclusão das peças minimamente necessárias para o arquivamento dos procedimentos dentro da formalidade obrigatória, sendo raras as posturas dissonantes de promotores”, escreve Michel Misse. Sobre o trabalho dos juízes, o especialista constatou o seguinte: “Os juízes do Tribunal do Júri, por sua vez, têm a prerrogativa de contestar estes arquivamentos, mas, salvo poucas exceções, tendem não apenas a acatá-los como a rejeitar denúncias e impronunciar os casos, devido à falta de elementos mínimos para fundamentar uma acusação”.
Sem defender a polícia, o delegado Zaccone diz que o Ministério Público tem grande responsabilidade nesses casos: “O MP diz que não consegue responsabilizar a polícia porque os inquéritos são mal feitos, só que eles usam nos pedidos de arquivamentos tudo o que é construído no inquérito. Então, se os inquéritos são mal feitos, as promoções de arquivamentos são péssimas e, de fato, são péssimas”.
O promotor Mello Cunha Júnior é mais duro, qualificando todo o processo de “um verdadeiro pacto da hipocrisia”. “A Polícia Militar finge que se confronta com marginais, a Polícia Civil finge que investiga estes confrontos, o Ministério Público finge que fiscaliza a ação dos policiais e o véu da mentira oficial a tudo encobre para felicidade geral da nação”, escreve. Vale dizer que isso é válido para somente parte da nação, porque a outra parte está sofrendo. “A maioria dos confrontos ocorre em incursões deliberadas, feitas pelos policiais naquelas áreas onde sabem que encontrarão oposição armada. Podem ser consideradas verdadeiros duelos programados, que nada, ou muito pouco tem a ver com a segurança da população. Com elas, consegue-se apenas tornar crônicos os conflitos armados, aumentando o número de mortos, expondo os policiais a maior risco e impondo maior grau de insegurança à população local.”
Algo se quebrou
São muitos os relatos de famílias destruídas pela ação da polícia em favelas cariocas. Ana Paula Gomes de Oliveira diz, de antemão, que não é mais a mesma pessoa depois da morte do seu filho. “Algo se quebrou em mim. Uma parte de mim está destruída. E é a mesma coisa para minha família”, disse. Seu filho Jhonatha de Oliveira Lima, de 19 anos, morreu em 14 de maio ao ser atingido por uma bala nas costas. Ele foi o quinto morto da UPP Manguinhos desde a sua instalação. Por quê? Como? Por azar, por passar no lugar errado, na hora errada.
Jhonatha era militar, não estava envolvido com o crime. Mas, nesse dia, havia um confronto entre policiais da UPP e moradores que atiraram pedras contra a polícia. Jhonatha estava a caminho da casa de sua avó quando foi atingido. Deliberadamente? Acidentalmente? A investigação ainda está em andamento. “O policial disse que Jhonatha tinha uma arma e atirou contra ele”, disse a mãe. A Secretaria de Segurança Pública e o MP (o promotor não quis dar entrevista) confirmaram que o policial foi indiciado pelo crime de homicídio culposo (sem intenção de matar).
Como explicam os diferentes estudos citados nesta reportagem, a presença de testemunhos diretos impede que o caso seja arquivado pelo MP. Mas, mesmo quando não se trata de auto de resistência, a Justiça se torna menos punitiva contra a polícia. Como explicar que o policial responsável pela morte de Jhonatha siga trabalhando na mesma UPP, como confirma a Secretaria de Segurança Pública? Para todos os outros policiais da UPP, sua presença depois de um homicídio não é a confirmação de que “se pode matar e nada vai acontecer”?
Depois da morte de seu filho, Ana Paula tornou-se ativista no Fórum Social de Manguinhos, e foi recentemente a Brasília para apoiar o projeto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) de acabar com os autos de resistência. Sua amiga Fátima dos Santos Pinho de Menezes também perdeu um filho de 18 anos nas mãos da polícia e foi testemunha da morte de Jhonatha. O filho dela, Paulo Roberto Pinho de Menezes, foi espancado até a morte e depois asfixiado por cinco policiais, que foram indiciados pelo crime de lesão corporal seguida de morte. Eles continuam trabalhando, mas em outros batalhões da PM, enquanto esperam pelo julgamento.
Tanto para Paulo Roberto como para Jhonatha, as duas mães sabem que a estratégia da polícia será a de apresentar seus filhos como criminosos para convencer o júri de que houve “legítima defesa”. Com isso, pode ser que, se nada mudar na mentalidade da sociedade e da Justiça, os policiais sejam absolvidos. “No Brasil, o criminoso é desprovido de todos os direitos, incluindo o direito maior, que é o direito à vida”, escreve Zaccone. Em sua tese, o delegado faz uma comparação interessante com uma pesquisa da Anistia Internacional de 2011, na qual se constatou que, nos 20 países que ainda mantêm a pena de morte em todo o planeta, foram executadas 676 pessoas, sem contabilizar as penas capitais infligidas na China, que se nega a fornecer os dados. No mesmo período, somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a partir de ações policiais, observando que em 2011 foi comemorado um decréscimo da violência letal a partir de ações policiais. “A pena de morte, proibida na Constituição brasileira, na realidade é legalizada pela ação da polícia e da Justiça”, conclui o delegado. Logo, um criminoso não merece viver, e pouco importa se era mesmo um criminoso ou não.
O diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque, reage à comparação feita por Zaccone. “É verdade que devemos defender os mais esquecidos na sociedade. O Brasil é um pais que pune muito. Somos a quarta maior população prisional do mundo. Não é verdade dizer que o Brasil é o país da impunidade total. É o país de uma certa impunidade, que exerce a impunidade de forma seletiva. A pessoa que comete um crime não está fora do direito, está sob cuidado do Estado, não pode ser vítima de execução. Um criminoso não tem os seus direitos suspensos.” Falta ensinar isso nas academias de polícia e lembrar a Justiça disso.
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Foto: Evento de arte ALALAÔ (galeria A Gentil Carioca). 30 nov 2013