Por Padre Dário Bossi e Danilo Chammas, Justiça nos Trilhos
No estado de Minas Gerais (Brasil) existe uma pequena comunidade, Córrego do Feijão, recentemente ameaçada por uma nova mineradora que quer se instalar em seu território: a “Green Metals”.
A vida cotidiana, em sua maior simplicidade (o feijão, raiz e cultura de nosso povo) é ameaçada pelo desconhecido, estrangeiro e incompreensível, chegando sem permissão nem consulta, muitas vezes presta-nome de grandes corporações como a Vale S.A., que domina a região toda. Um micro exemplo do que está acontecendo no inteiro continente latinoamericano e no resto do mundo.
A América Latina é a maior fonte de minerais metálicos no mundo. Os mais cobiçados são ouro e prata. Para sua extração, cerca de 90% das minas são a céu aberto e contaminam águas superficiais e subterrâneas, bem como solo e ar. O caso do ouro é o mais paradoxal: somente 10% do extraído é utilizado em tecnologia, 40% em joalheria e 50% serve como investimento. “Sai do subsolo de territórios e ecossistemas vivos para acabar no subsolo de territórios financeiros: os bancos. O capitalismo tem sede de acumulação” .
A obsessão por minério no mundo é crescente. Isso se deve sobretudo ao crescimento de uma nova classe média mundial, localizada principalmente na Asia e “inspirada” pelos modelos de consumo dos países industrializados. A previsão é que em 20 anos os BRIICS sozinhos (Brasil, Rússia, Índia, Indonésia, China e África do Sul) dobrarão seu consumo total de minérios metálicos (de 2,2 bilhões de toneladas em 2002 até 4,4 previstos em 2020). Se esse for o ritmo de extração, as reservas mundiais de minério de ferro serão exauridas em 41 anos, de alumínio em 48 anos, de cobre e zinco respectivamente em 18 e 16 anos.
O mecanismo é perverso, pois o crescimento da demanda global, a redução das melhores reservas minerais e a possibilidade de escassez de alguns minérios a médio prazo estão aumentando os preços em nível mundial. Isso provocará, provavelmente, uma rápida expansão das minas existentes e a intensificação da prospecção de novas jazidas.
Depois da colonização e do saque de minérios e outros bens comuns para enriquecer os cofres das metrópoles, novamente o continente acolhe o modelo primário-exportador como solução imediata para a geração de renda líquida fácil. A realidade se faz perversa mesmo nos países em que o pretexto para a intensificação da extração de minérios ou hidrocarburos seja o investimento pelo Estado em programas sociais de combate à pobreza.
O modelo econômico extrativista está baseado em profundas injustiças ambientais: “sociedades desiguais do ponto de vista econômico e social destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis” .
Conforme a teoria do “ecologismo dos pobres”, a maior parte dos conflitos sociais de hoje em América Latina se deve a ameaças e impactos ecológicos: os pobres tentam manter o controle dos recursos ambientais de que precisam para viver, frente à ameaça de que esses passem a ser propriedade do Estado ou propriedade privada capitalista .
A mineração não gera somente impactos pontuais nos territórios ao redor das minas. Na maior parte dos casos, trata-se de um modelo econômico com fortes influências sobre as decisões políticas dos Estados, portanto incide sobre equilíbrios e destinos de inteiras sociedades. Além disso, todo grande projeto de mineração necessita de uma maciça infraestrutura de suporte, seja para a geração e fornecimento de energia , para a acumulação de água de lavagem ou transporte do minério por minerodutos ou para seu escoamento através de estradas, ferrovias e portos.
No Brasil, por exemplo, o trem mais longo do mundo tem 330 vagões serpenteando ao longo de 900 Km de ferrovia em concessão à companhia Vale para exportar o minério de ferro amazônico de Carajás até China, Japão e Europa. Uma ferrovia do mesmo tamanho está sendo construída entre Moçambique e Malawi, pela mesma empresa, para escoamento de carvão mineral.
No Peru, o tão contestado gasoduto de Camisea se destina principalmente a alimentar os grandes projetos mineiros do sul do país. Mão na mão com o famigerado projeto da mina Conga, que mobilizou milhares de pessoas em contundentes manifestações (“Conga no va!”), caminha o projeto da hidrelétrica de Chadin, da empreiteira brasileira Odebrecht, com uma enorme barragem que vai prejudicar a vazão do rio Marañon, um dos maiores afluentes do Amazonas.
São muitas e diferentes as pessoas e comunidades que se consideram atingidas por mineração! Não conseguimos detalhar todo tipo de impacto, escolhemos os principais, que trataremos muito sinteticamente, oferecendo alguma referência como exemplo para pesquisa.
1.1 Impactos ambientais
Os impactos mais evidentes da mineração são ambientais: desmatamento (Carajás, Brasil), pilhas de dejetos (o lago Sandy Pond no Canadá desaparecerá por causa do material estéril que a mineração vai descartar dentro dele), poluição gerada por indústrias da cadeia de mineração (casos de La Oroya em Peru e de Piquiá de Baixo ou de Santa Cruz no Brasil).
A extração de ouro é particularmente impactante: no caso do projeto mineiro Pascua Lama (Chile-Argentina), para obter um grama de ouro seria necessário remover 4 toneladas de rocha, consumir 380 litros de água, 1 kg de explosivo e quase a mesma quantidade de cianuro. A energia necessária para separar 1g de ouro seria a correspondente ao consumo semanal de uma família argentina média.
O fenômeno da drenagem ácida, devida à presença de pirita que degenera em ácido sulfúrico, afeta o lençol freático dos territórios onde há mineração. As consequências perduram por milhares de anos e são particularmente graves quando as minas estão postas nas cabeceiras de bacias, sendo assim contaminadas todas as águas da bacia.
Outro impacto se deve ao alto consumo de água: no Chile, por exemplo, as grandes mineradoras chegam a consumir 13 metros cúbicos de água por segundo, correspondente ao consumo médio de água por ano de mais de 6 milhões de pessoas!
1.2 Deslocamentos forçados
Para deixar espaço aos projetos de mineração e a toda a infraestrutura a eles conectada, em muitos casos se faz necessário expulsar famílias ou inteiras comunidades de seus territórios.
Comunidades rurais e urbanas são despejadas e reassentadas em condições e contextos em vários casos piores daqueles onde viviam: há o exemplo dos reassentamentos de Cateme e 25 de Setembro em Moçambique (para deixar espaço a minas de carvão), El Hatillo, Plan Bonito e Boquerón (Colômbia, também por projetos de carvão) e Piquiá de Baixo (Brasil, caso raro em que é a própria comunidade a pedir reassentamento pelo desespero das condições de poluição a que está condenada).
Apesar da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho recomendar que as comunidades indígenas e tradicionais devem ser consultadas sobre seu consentimento antes da instalação de qualquer tipo de atividade produtiva em seus territórios, o processo de consulta prévia é inexistente ou extremamente precário e propositalmente ineficaz na maioria dos países da região .
As comunidades indígenas são prejudicadas pelos projetos de mineração e sua infraestrutura, que provocam desmatamento, fuga dos animais de caça, perda de controle dos territórios e redução de seu tamanho. É o caso, por exemplo, do povo Shuar no Equador ou Awá-Guajá no Brasil.
1.3 Negação do futuro dos territórios e violência contra a juventude
A mineração instala verdadeiras economias de enclave nos territórios onde pretende atuar. Significa que a maior parte das iniciativas se volta para a mineração, a qual se constitui como perspectiva econômica quase exclusiva. Isso garante os interesses de algumas minorias influentes em nível econômico e político, nacional e internacional, mas muito raramente permite às pessoas e comunidades daqueles territórios se planejarem, diversificarem seus investimentos, qualificarem-se para atividades alternativas, como a agricultura familiar, a micro empresa em outros campos produtivos etc.
As políticas de desenvolvimento regional são definidas acima da possibilidade de participação de quem habita os territórios, favorecem incentivos fiscais e financiamentos aos empreendimentos ligados à mineração e boicotam outras visões e perspectivas.
Essa falta de alternativas joga a favor das mineradoras, gerando mão de obra barata que depende cada vez mais delas e se centraliza, geográfica e economicamente, em volta das minas ou suas infraestruturas, vinculando-se permanentemente a elas.
Essas migrações desmedidas rumo a modernos “Eldorados” em contextos de miséria e omissão do Estado geram a impressão de um falso desenvolvimento. Trata-se, ao contrário, de um crescimento descontrolado que provoca caos e violência.
Marabá e Parauapebas, por exemplo, são cidades do Estado do Pará (Brasil) mais próximas à maior mina de ferro do mundo, Carajás. Estão também entre as cidades mais violentas do Brasil: a probabilidade de um jovem ser morto nessas cidades, vítima de disparos de arma de fogo ou por facadas, é 25% maior do que no Iraque, país com uma das mais altas taxas de morte por conflito armado.
1.4 Criminalização dos atores sociais
Quem critica os grandes empreendimentos mineiros é exposto à perseguição judiciária, ameaças, calúnias, espionagem, assassinato. O banco de dados sobre conflitos mineiros em América Latina apresenta com detalhes 198 casos de conflitos ainda abertos no continente, afetando 297 comunidades.
O ataque aos movimentos sociais e às comunidades é escancarado e público. Em 2010, o então presidente do Peru Alan García qualificou os ambientalistas e defensores dos direitos dos indígenas como inimigos do desenvolvimento, afirmando que estes padeciam da síndrome do “perro de hortelano”. Entre os governos ditos progressistas, passa algo similar.
O presidente do Equador Rafael Correa, em 2007, disse: “Acabou o anarquismo. Todos os que se opõem ao progresso do País são terroristas. Todos os que farão manifestações com bloqueios nas estradas serão sancionados com todo o rigor da lei. Não são as comunidades que protestam, mas um pequeno grupo de terroristas, os ambientalistas românticos e os ecologistas infantis são aqueles que querem desestabilizar o governo”.
Em muitos casos, se põe estrategicamente um falso dilema entre o interesse coletivo e a defesa dos direitos humanos e da natureza.
Recentemente, militantes de movimentos sociais que no Brasil se opõem a grandes projetos de mineração foram espionados e agentes secretos das forças públicas e privadas de segurança infiltraram-se nas coordenações desses movimentos.
Da espionagem à perseguição e à violência física o passo é curto. Lembremos aqui somente alguns dos massacres mais graves, como o de Bágua (Peru, 2009, com dezenas de indígenas desaparecidos e 28 policiais assassinados), da ponte rodoferroviária de Marabá (Brasil, 1987, com a morte de vários garimpeiros) e de Eldorado dos Carajás (Brasil, 1996, realizado pela Polícia Militar Brasileira e aparentemente apoiado pela mineradora Vale S.A., com a morte de 21 trabalhadores rurais sem terra).
1.5 Violência contra a mulher
Raramente se percebe o tamanho do impacto dos empreendimentos mineiros contra as mulheres. A mineração em grande escala é uma violência também de gênero.
Os impactos descritos anteriormente recaem em grande parte prioritariamente e de maneira mais intensa sobre a vida das mulheres. Em muitos casos, elas sofreram o assassinato ou afastamento de seus maridos e são ameaçadas, em seguida, para que vendam suas terras às empresas mineiras.
Intensificou-se a agressão física e o aumento da exploração sexual nas áreas de mineração ou de instalação de grandes projetos.
O despojo das terras de famílias ou inteiras comunidades é uma violência sobretudo contra a mulher, que em muitos casos é a responsável pela saúde e a segurança alimentar da casa. Os grandes projetos tendem (em muitos casos propositalmente) a desmanchar o tecido social das comunidades; perde-se um entorno de proteção e segurança, bem como a possibilidade de participação. Também nesse caso, as principais vítimas são as mulheres.
2. As resistências
Não podemos falar só de conflitos, existe também vitalidade, criatividade e firmeza na resistência e nas alternativas propostas pelas comunidades.
Os mais importantes referentes no âmbito da resistência em nível regional são o Observatorio de Conflictos Mineros em America Latina (OCMAL), o Movimiento Mesoamericano contra el Modelo extractivo Minero (M4), a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, a recém criada rede de religiosas/os e leigas/os em luta contra a mineração no continente. Não há espaço para aprofundar, queremos somente citar três eixos de ação que se complementam.
Não à mineração: protestos contra grandes projetos, ainda não instalados, de mineração e infraestruturas; bloqueios, manifestações, ações judiciais para ver reconhecida a ilegalidade dos empreendimentos, lutas por leis que proíbam a mineração contaminante ou descontrolada, campanhas internacionais (por ex: “El água vale más que el oro”, que recebeu também o apoio de Papa Francisco);
Garantia de direitos (onde já há instalações consolidadas): apelo às instituições para a defesa dos direitos coletivos, luta por mitigação e pela reparação integral dos direitos violados, tentativas de retardar a expansão dos projetos e conjugar a mineração com outras atividades socioeconômicas e seus ritmos;
Pós-extrativismo: debate e ações de longo prazo para promover um novo modelo de vida e uma nova economia nas regiões e nos países mineradores.
A questão, em todos esses espaços de resistência, não é se somos contra ou a favor da mineração. É que um dia bem próximo deveremos saber viver sem mineração, porque os recursos estarão esgotados. O que fazer, então? Esperar até aquele dia para resolver o problema, ou transformarmos rápida e radicalmente o modelo extrativista de nosso continente?
“Midas, rei da Frígida, quis que o mundo fosse de ouro graças à magia de sua mão.
Ele precisava transformar em ouro tudo o que tocasse, e pediu ao deus Dionísio que lhe concedesse esse poder. E Dionísio, que acreditava no vinho e não no ouro, concedeu.
Então Midas arrancou um galho de fresno e o galho se transformou numa vara de ouro.
Tocou um tijolo e virou lingote. Lavou suas mãos e uma chuva de ouro brotou da fonte.
E quando sentou-se para comer, o manjar arrebentou seus dentes e nenhuma bebida conseguiu passar pela sua garganta.
E abraçou sua filha e era estátua de ouro.
Midas ia morrer de fome, sede e solidão.” (Eduardo Galeano, 2008)