Por Daniel Martins de Barros, Estadão
As definições de onde termina o sexo e começa a violência estão sendo modificadas. Ao aproximar o estupro a uma forma legítima de relação sexual, Bolsonaro rumou na contramão da sociedade, que hoje faz o contrário: aproxima formas de sexo há pouco consideradas legítimas ao estupro.
A denúncia por incitação ao estupro do deputado Jair Bolsonaro tem vários méritos. De todos, queria destacar um: cada vez mais fica evidente que o mundo mudou. Em outros tempos, um sujeito, deputado sobretudo, dizer que não estupraria uma mulher porque ela não merece,” porque ela é muito feia, não faz meu gênero”, seria quase uma piada. Não é mais. (Aliás, como bem sabe Rafinha Bastos, processado por dizer que estuprar mulher feia era um favor). Não só perdeu a graça como pode ser considerado crime de incitação.
Os críticos dizem que seria exagero considerar a fala de Bolsonaro como incitação ao crime de estupro. As declarações, posto que abjetas, não seriam suficientes para que um sujeito decidisse estuprar alguém após assistir seu pronunciamento na TV Câmara. Claro que não, mas o raciocínio é outro. A ideia de denunciá-lo por crime vem do fato que sua fala promove uma visão de mundo em que existem justificativas para estuprar alguém: se a mulher é bonita, se “faz o tipo” ou desperta desejos, ela seria digna de um estupro, seria “merecedora”, para usar a expressão análoga à fala de Bolsonaro. “Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”, declarou ele. Ou seja: quem é estuprador pode muito bem encontrar mulheres que merecem. A incitação ao estupro, nessa lógica, ocorre quando, ao propalar essa postura o deputado contribui para perpetuar uma mentalidade que aumenta o risco dos crimes de gênero, favorecendo a leniência diante de situações como o estupro.
Sinal dos tempos. As definições de onde termina o sexo e começa a violência estão sendo modificadas, fato do qual o deputado ou não se deu conta ou quer ser um bastião de resistência. Como nas denúncias que vêm surgindo nas universidades, da Califórnia à USP, um caso pode ser considerado estupro não apenas se a ausência de consentimento é flagrante, com o sexo sendo obtido num beco escuro sob ameaça de uma faca. Hoje em dia entende-se que a relação sexual deve ser consensual, literalmente, não bastando que uma das partes não ofereça resistência. Ao aproximar o estupro a uma forma legítima de relação sexual, Bolsonaro rumou na contramão da sociedade, que hoje faz o contrário: aproxima formas de sexo há pouco consideradas legítimas ao estupro. Já ouvi jovens preocupados, perguntando se transar com meninas bêbadas numa festa de arromba poderá ser considerado crime posteriormente. Poderá. Complicado? Pois é. A vida sempre se torna mais complicada quando decidimos levar o outro em conta.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.