Bolsonaros não existem por acaso

Herzog
Vlamidir Herzog, assassinado no DOI CODI do II, São Paulo, em 25/10/1975

Por Ricardo Melo, da Folha de S. Paulo/Contexto Livre

À luz do bom senso mais prosaico, nenhum argumento contra a revisão da Lei da Anistia fica em pé. O mais utilizado: a lei prega o esquecimento e se aplica “aos dois lados”.

A Lei da Anistia foi aprovada em plena vigência do regime militar. Só havia dois partidos autorizados a funcionar: Arena e MDB. Um terço dos senadores era biônico, indicado pelo regime na engenharia do pacote de abril de 1977. Em votação apertada, 206 a 201 votos no Congresso, os generais e o alto empresariado que os sustentava obrigaram um parlamento castrado a engolir a absolvição dos algozes.

Chamar isso de acordo é abusar da estupidez alheia. O maior interesse do texto sempre foi inocentar facínoras e seus mandantes, que se deleitavam com a barbárie cometida nas câmaras de tortura.

Ah, mas os mortos vítimas dos “terroristas”? A tentativa de simetria peca por todos os lados. Nunca se pode, pelo menos do ponto de vista da democracia, colocar no mesmo plano o poder de Estado e o de seus opositores — até por serem absolutamente desiguais. Claro que isso não alivia a perda de familiares, seja de que lado for. Mas omite-se o importante: os oposicionistas daquela época foram “julgados” e presos — na melhor das hipóteses. Outros tantos simplesmente desapareceram do mapa, nos porões militares, nos combates forjados ou executados a sangue frio. Foram mais do que “punidos”.

Já o batalhão de choque do regime, do Planalto à rua Tutoia, pretendeu escapar ileso com a lei 6683/79. Tenta até hoje, com a ajuda de um Supremo Tribunal Federal cujos veredictos são para lá de controversos. Nada disso esconde a hipocrisia do enredo, e a vergonha de o Brasil ser o único país do continente a avalizar práticas de torturas.

“Ah, mas isso é remexer no passado; com todo respeito aos mortos, vamos cuidar dos vivos.” Ocorre que é justamente pelos vivos que se defende a punição de quem institucionalizou a tortura. Por trás das humilhações cometidas cotidianamente contra acusados nas delegacias, inocentes ou culpados, está a jurisprudência de que maus tratos fazem parte do dia a dia policial. A certeza da impunidade de quem maltrata em nome do Estado sobrevive “em nome da lei”.

Pode-se até entender que muitas iniciativas políticas dependam da chamada “relação de forças”. É o jogo democrático. Preocupa perceber, no entanto, que a democracia esteja sendo usada para defender a barbárie. É inaceitável, por exemplo, que chefes militares simplesmente se recusem a liberar documentos e informações sobre a violência nos quartéis. E nada acontece. Pense num ministro refratário a fornecer dados sobre tal ou qual projeto. Num país civilizado, o cidadão seria imediatamente demitido.

Aqui, não. Os militares, constitucionalmente submetidos ao poder civil no papel, pintam e bordam. Pior: a presidente da República, chefe deles, não dá um pio. O mínimo a esperar era que, diante de um relatório como o da Comissão da Verdade, a presidente repudiasse publicamente os responsáveis pelos anos de chumbo. Em nome das Forças Armadas. Isto mesmo. Militar que não gostasse teria de se submeter, ou então vestir o pijama — para dizer o mínimo.

As concessões diante de um passado abominável têm alto preço no presente e no futuro. O deputado Bolsonaro está aí para provar. Por muito menos, por se deixar fotografar de cueca, um deputado certa vez teve o seu mandato cassado. Bolsonaro idolatra o estupro, ofende colegas e faz pouco dos direitos humanos sempre que pode. Um bandido. Seus herdeiros seguem pelo mesmo caminho, clamando pela intervenção militar. Num belo dia, a história pede licença para se repetir.

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