Entrevistas com americanos brancos de Buffalo, em Nova York, causaram polêmica por observações consideradas racistas
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A decisão da Justiça americana de não acusar formalmente os policiais responsáveis pela morte de Michael Brown e de Eric Garner inflamou o debate sobre a desigualdade racial nos Estados Unidos. Agora, um projeto sobre “o que é ser branco” amplia a polêmica, com o objetivo de incluir os cidadãos brancos na discussão.
Neste sábado, milhares protestam em Washington contra as mortes de negros por policiais brancos em circunstâncias polêmicas desde 2012, como o jovem Trayvon Martin, de 17 anos, morto por um voluntário de segurança do bairro na Flórida e Tamir Rice, de 12 anos, que foi alvejado por policiais porque portava uma arma de brinquedo. Outros protestos em cidades como Nova York e Los Angeles exigem um fim ao que se considera um uso desproporcional da força pelos policiais de todo o país, em particular contra a população negra.
Muitas pessoas consideram que, apesar dos avanços das últimas décadas, o racismo nos Estados Unidos continua tão presente como há meio século, quando o movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King Jr., lutou para acabar com a segregação racial.
Em meio ao debate, um projeto audiovisual que fala sobre o que significa ser branco no país, que estreou há algumas semanas na TV, colocou mais lenha na fogueira.
O Whiteness Project (Projeto Brancura, em tradução livre), do documentarista Whitney Dow, reúne entrevistas com dezenas de americanos brancos – muitos deles de classe média – que falam diante das câmeras sobre seu sentimento de pertencimento a um grupo racial e sobre como percebem os privilégios que teriam em relação a outras minorias raciais.
As opiniões de alguns dos participantes – todos da cidade e Buffalo, em Nova York – soaram chocantes e polêmicas, talvez porque não seja comum ouvi-las publicamente.
Uma das mulheres, por exemplo, diz ter medo dos negros pela maneira como eles fazem propostas sexuais a ela. Outro homem diz que hoje são os brancos que sofrem discriminação nos Estados Unidos.
Há também uma jovem que diz que sabe tão bem como os negros o que é ser discriminada, por causa das tatuagens que tem no corpo. E uma garota que gostaria que os brancos se sentissem tão orgulhosos de ser brancos quanto os afrodescendentes se sentem por serem negros.
Muitos dos entrevistados dizem ser contrários a ações afirmativas como cotas para minorias raciais, já que, para eles, tais medidas dão oportunidades a algumas pessoas não por seus próprios méritos, e, sim, por sua cor de pele.
Outros participantes mostram pontos de vista mais moderados, como um jovem que lamenta o fato de não haver uma integração racial maior em Buffalo e uma mulher que diz não se sentir à vontade quando o ambiente em que está é formado apenas por brancos.
Ao fim de cada uma das entrevistas do Whiteness Project são apresentadas estatísticas que mostram até que ponto persistem as divisões e estereótipos raciais nos Estados Unidos, de acordo com o que os participantes do projeto expressam.
Mais de 40% dos brancos americanos acredita que os homens negros são violentos e 75% afirma não ter contato com pessoas negras em seu círculo mais próximo.
Além disso, 60% de brancos de classe média diz que a discriminação contra eles é tão grave quanto a discriminação contra os negros.
E 73% das pessoas diz que não se deve dar “tratamento especial” aos negros para acabar com as desigualdades.
O vídeo pode ser assistido na página www.whitenessproject.org.
Opiniões controversas
A estreia da primeira parte do projeto na TV aberta americana causou polêmica, especialmente nas redes sociais.
Alguns críticos se perguntaram até que ponto é necessário escutar pessoas brancas dizerem, em voz alta, opiniões que podem parecer racistas.
Arielle Newton, colunista do portal The Huffington Post, disse temer que o projeto ajude a perpetuar estereótipos que muitos têm nos Estados Unidos sobre as minorias raciais, por falta de contexto histórico.
“O diálogo entre as raças é importante e tem o benefício de mostrar a perspectiva do outro. Mas essa perspectiva deve ser reforçada com algo de inteligência. (…) Assistindo aos vídeos, tudo o que eu escutei foi um discurso usado contra as minorias, uma vitimização egoísta equivocada e uma defesa até a morte da raça branca”, escreveu em um artigo.
Os responsáveis pelo projeto se defenderam destacando que sua intenção é que “os brancos participem ativamente do debate sobre o papel da raça na sociedade americana”, para a qual consideram necessário “levar em conta as ideias que muitos cidadãos têm sobre as questões raciais”.
“Com esse projeto, eu queria dar a oportunidade aos brancos de refletirem sobre sua identidade racial”, disse Whitney Dow, diretor do projeto, à BBC Mundo. Ele enfatiza que nem todas as ideias expressadas pelos participantes são racistas.
Após a recepção controversa do projeto, Dow – que é branco e nas últimas décadas realizou diversos documentários sobre questões raciais junto ao cineasta negro Marco Williams – diz que em entrevistas futuras quer incluir pontos de vista mais diversos.
No entanto, ele reitera que seu objetivo é iniciar um debate sobre conceitos de raça que não costumam ser discutidos abertamente.
“A realidade é que os pontos de vista que são apresentados ali são compartilhados por muitos brancos americanos. Se queremos acabar com o racismo precisamos falar dele e de suas origens. Acho que os negros são conscientes do racismo que existe, mas os brancos, nem tanto”, afirma.
“A maioria dos brancos americanos acham que não têm raça. Eles acham que são os outros que têm raça. Não pode haver uma discussão sobre justiça social e racismo nesse país sem que os brancos reconheçam que são uma raça que tem sua própria experiência.”
Entrevistas ‘fascinantes’
Steven W. Trasher, colunista afro-americano do jornal britânico The Guardian diz que as entrevistas do Whiteness Project são “fascinantes”, porque “as pessoas falam de assuntos que, em geral, não se discute”.
“Elas (as entrevistas) têm valor pela maneira como mostram o privilégio dos brancos e o quão fácil às vezes é dizer certas coisas em público sem pensar nas consequências”, disse à BBC Mundo.
“Além disso, acho que o projeto é valioso porque mostra que o racismo não pode ser atribuído somente a pessoas pobres e sem educação do sul do país, mas a pessoas de todas as origens e condições sociais.”
Heidi R. Lewis, professora da faculdade Colorado College – onde dá um curso sobre estudos críticos da raça branca – diz que “um dos riscos deste projeto é que os brancos monopolizem a conversa sobre questões raciais”.
Lewis, que também é afrodescendente, resiste em qualificar o projeto como algo positivo – já que considera que as opiniões expressadas nele já são bastante conhecidas –, mas diz que a intenção do documentário pode ser boa.
“Até agora parecia que eram os negros que tinham a tarefa de falar dos privilégios dos brancos, mas já é hora que os próprios brancos questionem esses privilégios”, afirma.
“Algumas das ideias que os participantes expressam, como a mulher que diz ter medo dos homens negros, explicam por que acontecem incidentes como os que resultaram na morte de Trayvon Martin ou de Michael Brown.”
Até agora, Whitney Dow realizou 75 entrevistas das mil que pretende incluir noWhiteness Project.
Nos próximos meses, ele viajará por todo o país para conhecer a opinião de seus cidadãos brancos, que ele espera trazer para um debate do qual eles estiveram ausentes por tempo demais.