“Não consigo respirar” Eric Garner repetiu em vão. Os olhos do mundo inteiro assistiram, atônitos de indignação e repulsa, ao vídeo da execução pública de um homem negro pela polícia de Nova Iorque. O disco é velho e toca sempre o mesmo: uma vez mais, o sistema judicial estadunidense decidiu não julgar a polícia pelo estrangulamento de Garner, acusado postumamente de fugir aos impostos na venda de cigarros avulso.
Por António Santos, no Avante/Vermelho
Nos EUA, onde empresas multibilionárias como a General Electric, a Bristol-Meyers Squibb ou a Verizon são aplaudidas por não pagarem um dólar de impostos, a suspeita de vender cigarros não taxados serve de pretexto para matar um negro. Mas as mais de 500 mil pessoas que esta semana inundaram as ruas de todas as grandes cidades dos EUA não protestam apenas contra o racismo e a brutalidade policial. É o capitalismo estadunidense que se senta no banco dos réus: se a América não acusa os assassinos do povo, o povo acusa a América. No maior movimento de massas que os EUA conheceram em mais de uma década, os trabalhadores estadunidenses fazem suas as palavras de Eric Garner: também eles não conseguem respirar.
Foi-me contada uma vez por um antigo pantera negra, a história, antiga e verdadeira, dos escravos da tribo Igbo, que fugiram a pé da América por esse oceano Atlântico adentro, rumo à liberdade e ao continente a que foram roubados. Foi no ano de 1803: o latifundiário John Cooper tinha comprado por $100 a peça o recheio humano de um negreiro vindo do que é hoje a Nigéria. Mas a caminho da plantação da Ilha de St. Simmons, ao largo do Estado da Geórgia, os escravos amotinaram-se e mataram os seus captores. Rodney King, capataz de uma plantação vizinha, registou o episódio: com a embarcação encalhada no paul sulista e cercados por caçadores de escravos a quem haviam prometido $10 por cabeça, os Igbo saltaram para a água e, cantando em coro, caminharam em direção a África até já não serem mais escravos; até não terem pé e já não poderem respirar. 211 anos depois, permanece o sufoco. (mais…)