Um dos diretores de uma organização internacional independente que já auxiliou mais de 30 países que criaram comitês para esclarecer e lidar com episódios traumáticos em sua história recente, o sociólogo peruano Eduardo González conhece bem os meandros que levaram ao relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade), apresentado na quarta-feira à presidente Dilma Rousseff, em Brasília
Jefferson Puff – BBC Brasil
Ele veio ao Brasil diversas vezes nos últimos anos, e, entre 2007 e 2012, participou de apresentações ao Congresso Nacional para ganhar apoio à criação da comissão, além de reuniões em Brasília e articulações com procuradores do Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo.
No processo que acabou levando ao início dos trabalhos da CNV, em maio de 2012, o diretor do Programa de Verdade e Memória do ICTJ (International Center for Transitional Justice, ou Centro Internacional de Justiça de Transição), com sede em Nova York, chegou a revisar e sugerir alterações no texto da Lei 12.528, de 18/11/2011, que criou a comissão.
Para ele, os olhos do mundo se voltam ao Brasil neste momento e é imprescindível que o país, pela importância regional e internacional, dê continuidade ao trabalho da CNV com uma nova interpretação da Lei da Anistia – possibilitando o julgamento dos acusados por violações graves de direitos humanos entre 1964 e 1985, entre eles tortura, execuções e desaparecimentos.
Mais do que isso, González diz que, a partir das recomendações do relatório, o Brasil tem nas mãos a chances de resolver “heranças da ditadura”, citando como exemplo o alto número de mortes e abusos cometidos pela Polícia Militar; os “autos de resistência”; a situação dos presídios e os crimes de homofobia, além da reforma de diversas estruturas do Estado brasileiro que perpetuam a lógica do regime militar até os dias de hoje.
Ele falou à BBC Brasil por telefone, de Túnis, capital da Tunísia, que três anos após dar início à Primavera Árabe, com a derrubada do governo de Zine el-Abidine Ben Ali (no poder entre 1986 e 2011), abriu os trabalhos de sua comissão da verdade – no mesmo dia em que a CNV encerrou as atividades no Brasil. Eis a entrevista.
Em comparação com Argentina e Chile, o Brasil demorou para instalar sua Comissão da Verdade. Na Argentina, 200 militares já foram julgados. Embora o país tenha feito a transição para a democracia e tenha obtido um papel de destaque regional, por que mantém esta “mancha” no currículo há mais de 30 anos?
A comparação com a Argentina e o Chile é válida, porque os dois também tiveram ditaduras militares. Mas na Argentina o regime caiu e acabou sem negociação alguma praticamente, enquanto no Chile até houve algum tipo de acordo entre o antigo regime e o novo governo composto pelas elites civis democráticas.
A razão pela qual o Brasil mantém uma situação tão particular no continente se deve à maneira extremamente controlada em que a transição ocorreu. Mesmo no Chile, onde houve uma espécie de negociação, uma comissão da verdade foi criada quase que imediatamente após o fim do regime. O processo de reparação também ocorreu muito cedo. E mesmo que as possibilidades de julgamento criminal fossem muito pequenas, isso não impediu a sociedade civil chilena de pressionar. O caminho foi o Judiciário, e eventualmente alguns juízes foram convencidos dos argumentos dos grupos de direitos humanos.
Então a diferença com o Brasil é muito grande. No Brasil, os primeiros governos democráticos foram muito lentos em agir contra a impunidade. Independente do espectro político que representaram, os governos não tiveram muita vontade de tocar neste assunto.
Nos outros países, as elites que sucederam os regimes autoritários e a opinião pública após a transição foram mais eficazes para gerar uma mobilização, e os familiares foram menos abandonados, ficaram menos isolados, e tiveram a capacidade de convencer os políticos de que eles tinham direitos. No Brasil optou-se por criar uma distância entre o presente e o passado.
Qual foi a participação da sociedade brasileira nesse silêncio com relação ao passado?
Há uma desconexão no Brasil entre o presente e o passado. A sociedade brasileira tem essa noção de que os problemas do presente não se relacionam com o passado, quando muitos dos problemas atuais, como abusos contra camponeses, violência contra indígenas, tortura em presídios e abusos da polícia, são coisas que aconteceram nos anos 1960 e 1970, e a impunidade faz com que eles continuem acontecendo.
A sociedade continua pensando tratar-se de problemas atuais, recusa-se em enxergar a conexão. Não se faz a genealogia do excesso policial, da tortura policial. Há abusos e brutalidade na repressão a uma grande manifestação, e as pessoas reclamam, mas não fazem a genealogia. Se assustam com grupos de extermínio e com milícias paramilitares, e não se perguntam as raízes destes problemas.
Você vê esse mesmo processo em algum outro país?
Na Espanha, apesar dos crimes horrendos que ocorreram durante a Guerra Civil e a ditadura de Francisco Franco [1939-1975], foi articulado um discurso de que todos esses assuntos ficaram no passado, de que tudo foi resolvido, e a realidade é que isso não é verdade, pois ainda há milhares de famílias que sofrem com a perda de entes queridos, ainda há feridas abertas.
A impunidade ainda é um fato em muitas sociedades. Indonésia, Camboja, países onde crimes horrendos aconteceram no passado e as medidas judiciais são praticamente inexistentes ou simbólicas.
O Brasil não precisa estar nesse grupo. Não há motivos para isso. Em alguns países há falta de vontade política e de capacidade para lidar com grandes atrocidades ocorridas no passado. No caso do Brasil, há um sistema sofisticado de promotores públicos e o Judiciário é condizente com o de uma democracia bem estabelecida, então há apenas falta de vontade política, e este é o problema real.
Você é otimista com as chances de o Brasil promover reformas, como a desmilitarização da polícia e a criminalização da homofobia, duas das várias recomendações do relatório final da CNV?
Trata-se de um ciclo de impunidade. Há certos atos que se não forem punidos, serão sempre cometidos novamente. Como no caso da perseguição a pessoas LGBT. Se você aceitar a intolerância contra grupos, ou a violência contra as mulheres, tudo isso vai continuar acontecendo.
Ao não punir crimes do passado, a mensagem que damos aos jovens que estão se interessando por uma carreira militar, ou na polícia, é de que eles estarão acima da lei. E esta é uma mensagem que não podemos mais passar. O Brasil não pode perder essas oportunidades. No ano passado, foi possível ver a reação da polícia às manifestações. É um comportamento institucional que precisa ser mudado.
Você acha que o ICTJ (sigla inglesa para o Centro Internacional de Justiça de Transição) teve um papel decisivo para a criação da Comissão da Verdade no Brasil?
Para nós no ICTJ o Brasil é obviamente um país muito importante. É um país que tem uma tremenda visibilidade no cenário internacional, tem liderança regional e é o líder na comunidade dos países lusófonos. Nós vimos que as pessoas à frente da Comissão da Anistia estavam indo além do mandato inicial, que era buscar reparação e indenizações. Eles reconheceram que os familiares e vítimas tinham direito a mais do que as compensações.
Começaram a surgir questões. Como é uma comissão da verdade? Como funciona? E para nós foi basicamente uma oportunidade de compartilhar experiências, relatar o que aconteceu em outros países, e mais tarde foram os brasileiros que tomaram todas as decisões. Houve o trabalho crucial de procuradores do MPF de São Paulo, entre eles Marlon Weichert, e os familiares também fizeram algo muito importante, que foi ir até a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que mostrou ao Estado brasileiro que é algo que não se pode ignorar mais.
Você é otimista com relação às posições do Judiciário brasileiro, que a partir de agora pode abrir julgamentos dos acusados de graves violações de direitos humanos caso opte por uma nova interpretação da Lei da Anistia? Como caíram as anistias nos países vizinhos?
Anos atrás eram apenas dois ou três procuradores do MPF em São Paulo investigando as possibilidades de novas interpretações da Lei da Anistia. Mas com o passar do tempo, cada vez mais procuradores se tornaram interessados, e na cúpula do MPF em Brasília cresce o entendimento desta tese, de que os torturadores e agentes públicos precisam enfrentar a Justiça.
Então eu sou otimista, porque vejo que cresce no Brasil a compreensão de que as violações ocorridas na ditadura são um assunto jurídico, e não político. O problema é que no STF os juízes têm visto o assunto como algo político, como um acordo, e julgam-no sem aplicar um raciocínio puramente jurídico.
Na América Latina temos exemplos de anistias semelhantes que caíram ao longo do tempo, de diferentes maneiras, o que mostra que a História eventualmente derruba as anistias, mesmo que leve tempo.
No Peru, o governo acatou a decisão da Corte Interamericana que pressionou pelo fim do acordo; na Argentina, as investigações criaram um ambiente na sociedade contrário à anistia; no Uruguai, os presidentes começaram a simplesmente exercer sua capacidade de permitir as ações dos fiscais, de acordo com a lei; e no Chile os juízes declararam que a lei não poderia ser aplicada no caso dos desaparecidos.
Há muitas maneiras de lidar com as leis de anistia na nossa região, mas é nítido que quando há uma convicção de que a impunidade está errada, encontra-se um caminho para a justiça.