“No afã de gastar gentes, bichos e coisas para lucrar, acabam com florestas mais portentosas da terra. Desmatam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.” Darcy Ribeiro
Rachel Gepp, Coletivo Carranca
A hidrelétrica Belo Monte foi um absurdo de desperdício de riquezas e de vidas humanas desgraçadas pela obra. O governo, radicalmente divorciado e oposto às nossas reais necessidades, nos traiu e nos assaltou à mão armada. Graças à resistência heroica de uma minoria, essa imensa calamidade ecológico social gerou um grande debate. Mas nossa passividade, desinteresse, resignação e apatia mundializada, não foi capaz de impedir que o pior acontecesse: etnocídio, desgraça social para a maioria e danos ecológicos irreparáveis para o planeta.
O limite ecológico e material do capitalismo está diante de nós; a exemplo: a alteração do regime hidrológico que está deixando cidades como São Paulo sem água em consequência do desmatamento da Amazônia. Por aceitarmos cegamente as demandas do capitalismo que destrói, subordina e elimina o mundo natural, estamos deixando um horizonte sombrio para as gerações futuras.
Enquanto isso, o capital continua seu expediente destrutivo procurando novas colônias para serem invadidas e exploradas, e nossa atitude tem sido fechar os olhos enquanto estamos sendo massacrados e nosso mundo ecologicamente devastado. Tudo isso financiado por nós mesmos, com nosso dinheiro público.
Então, o capitalismo dilacerante chegou no Tapajós, onde veremos acontecer a maior luta socioambiental depois de Belo Monte. Mas aqui a história que vamos contar pode ser diferente, porque vivendo nas florestas exuberantes do sudoeste do Pará existe um povo guerreiro chamado Munduruku. Eles declararam guerra ao governo avisando que os rios não pertencem às empresas, que eles pertencem às populações tradicionais, e que irão lutar para defendê-los até a morte. Os Munduruku sabem que sua sobrevivência depende de inteligência e de vontade. De consciência e resistência.
Cientes de que o governo não demarca seu território para não ter problemas com o licenciamento da obra, e que a Fundação Nacional do Índio (Funai) está atrasando a publicação do relatório devido aos interesses na área para a construção da hidrelétrica – como afirma a então presidente do órgão, Maria Augusta Assirati, em reunião gravada em setembro -, os Munduruku decidiram colocar limites no território por conta própria e iniciaram a autodemarcação da terra indígena Sairé Muybu.
Em cartas, os Munduruku relatam esse processo e mandam um recado ao governo: “Nunca abaixaremos a cabeça e abriremos a nossa mão, a luta continua! Somos os verdadeiros donos da Terra.”
TECENDO A RESISTÊNCIA
No último dia 27 de Novembro, uma caravana contra as barragens e em defesa dos povos uniu em São Luiz do Tapajós, onde o governo pretende construir a primeira das cinco hidrelétricas, lideranças indígenas e ribeirinhas. Foi um momento histórico e único onde as comunidades consumaram uma aliança inédita, buscando uma estratégia em conjunto de resistência.
Cantando o “Calundum da Mbóia” e trazendo uma grande cobra, que na lenda santarena devora todos os predadores, os ribeirinhos chegaram em São Luiz emocionando a todos os presentes. Enquanto isso, do outro lado, o povo Munduruku se organizava para subir a praia até a sombra da árvore onde aconteceria o ato político. Um participante da caravana trouxe uma bandeira do Brasil e sugeriu que o cacique a levasse consigo. Numa demonstração de força e a que veio seu povo, o cacique diz: “Bandeira do Brasil, não! Bandeira está aqui!”, batendo em seu peito pintado de jenipapo.
Para que o projeto da hidrelétrica possa ser leiloado, é preciso que o governo obtenha a licença prévia ambiental. Os estudos não foram concluídos. Não há nenhuma comprovação que vai acontecer. Mas o governo, fazendo um jogo de fumaças e mentiras, anuncia o empreendimento como se fosse uma decisão. Além disso, um grupo de estudos chamado Diálogos Tapajós, integrado pelas empresas Eletrobras, Eletronorte, GDF SUEZ, Cemig, Copel, Neoenergia, Endesa Brasil e Camargo Corrêa, está atuando nas comunidades desmobilizando a resistência e forjando um cadastro para as pessoas receberem compensações.
Josias Manhuary, chefe dos guerreiros Munduruku, responde à declaração do Ministro Gilberto Carvalho: “Nós lutamos porque vemos que o governo está atropelando as leis. Lutamos por nossos filhos, as futuras gerações. Se fosse por nós não lutávamos. Gilberto Carvalho disse que não abre mão de construir Tapajós. Nós também não abrimos mão do rio. Somos caçadores de cabeça e vamos caçar mais!”
Além do superfaturamento e de todos os impactos ambientais que sabemos que essa obra vai causar, ainda pagamos um preço muito alto pelas megalomanias do governo, que é o custo da democracia. Temos que assistir a intervenção dos órgãos públicos aprovando esses licenciamentos, apesar de todas as ilegalidades, usando a Lei de Suspensão de Segurança. Um recurso autoritário da época da ditadura, que permite que o presidente de um tribunal suspenda uma decisão, inclusive de mérito, invocando uma suposta ameaça a segurança nacional. Essa é a manobra usada pelo governo para sustentar e avançar com esses empreendimentos.
SOMANDO FORÇAS
A caravana contou com a presença de especialistas, colabores fundamentais que estão produzindo informações que não são passadas pelo governo federal. Esse trabalho profundo está ajudando o Ministério Público a argumentar as ações judiciais propostas sobre a bacia do Tapajós, que já chegam a mais de trinta nesses últimos três anos.
Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor Célio Bermann, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), questiona os argumentos que o governo usa para justificar esse tipo de empreendimento: como que essa energia que será gerada é para atender a milhares de domicílios brasileiros. A USP realizou um estudo para saber o quanto de energia precisaria ser produzida para atender apenas o consumo residencial. O estudo apontou que o crescimento do consumo de energia residencial é de 24%, ao passo que o consumo industrial é de 50%. Então, boa parte dessa eletricidade vai na verdade para os eletrointensivos. Apontando alternativas, o professor explica que é possível satisfazer a necessidade da demanda de energia de todos os domicílios brasileiros construindo 70 usinas eólicas de 30 megawatts cada uma, próximas aos locais de consumo. Mas lembra que esse tipo de geração de energética também causa impactos sócio-ambientais e que se faz necessário uma avaliação responsável sobre os locais para instalação. Porém, a escala de problemas é muito menor do que essa mega obra que está para ser construída no Tapajós. Falando sobre os impactos, Célio supõe que uma barragem dessa vai alterar completamente o regime de águas desse rio. Tanto no reservatório rio acima, como em toda a área rio abaixo. Isso vai se mostrar mais presente se, pela alteração da usina, for necessário segurar a água para gerar energia, reduzindo o nível da água rio abaixo. Com isso, todas as maravilhas do lago verde, remansos e praias, que caracterizam o rio Tapajós, irão se perder – e para compensar a bacia, o rio Amazonas vai subir.
Brent Millikan, da International Rivers, organização que trabalha na relação entre direitos humanos e meio ambiente, critica uma tendência mundial entre os defensores de barragens – grandes empresas, governos e instituições financeiras internacionais –, de caracterizar esse tipo de empreendimento como uma espécie de solução para energia limpa. Como se fosse amigável do ponto de vista ambiental. Não por acaso, esse discurso de energia limpa e barata está sendo divulgado em campanhas publicitárias de orçamentos altíssimos, especialmente agora no momento de crise climática que estamos vivendo. Brent explica que, para esses grupos, no que diz respeito à eletricidade, a grande solução para diminuir emissão de gases seria construir mais barragens. Porém, a construção de barragem implica em inundar áreas muito grandes, afetando a vegetação biomassa que reduz dióxido de carbono CO2 e gás metano. Portanto, só por esses fatores sobre o clima, já temos questões para colocar em dúvida e desconstruir esse discurso de energia limpa. Ele ainda trás para a reflexão os impactos cumulativos que esses empreendimentos causam, e que pouco são abordados. Depois das barragens ainda vêm a mineração e as rodovias.
Christian Poirier, da Amazon Watch, lembra que o governo brasileiro não constrói hidrelétricas do porte que estão sendo construídas sozinho, e responsabiliza empresas internacionais pelas consequências nefastas sobre florestas, rios e populações que estão sendo definitivamente afetadas por esses empreendimentos. Um dos grandes desafios da ONG que apoia o movimento contra as barragens é criar campanhas de responsabilidade corporativa para ampliar nossa indignação a níveis internacionais, fazendo pressão para constranger essas empresas que vêm saquear o nosso país.
Para o Procurador da República, Felício Pontes, a caravana já começou com consequências positivas. Na véspera do ato político, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), sem apresentar uma explicação oficial, cancelou as audiências públicas que iriam acontecer em Itaituba (PA) para a licitação da Floresta Nacional (Flona) do Crepori. A Flona, que faz limite com a Terra Indígena Sawre Muybu, dos Munduruku, é uma área de beleza e riquezas extraordinárias e está para ser loteada e entregue a um megaempreendimento madeireiro. O processo de licitação escondeu que existem comunidades indígenas e ribeirinhas vivendo no interior da floresta. Para Felício, esse seria o segundo grande golpe do governo contra as comunidades do Tapajós. Ele afirma que o Ministério Público Federal (MPF) segue na luta pela homologação das terras e dos direitos constitucionais dos povos tradicionais, como a consulta livre, prévia e informada a que têm direito, de acordo com a legislação brasileira e acordos internacionais como a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Uma militante do Movimento Tapajós Vivo pergunta ao Procurador da República, Felício Pontes: “Perdemos no Madeira, perdemos no Xingu, como podemos nos estimular e pensar que a luta pelo Tapajós pode ser vitoriosa?”. A pergunta incomoda. Ela está aflita porque sua comunidade está sendo informada de que a desgraça virá e não há nada a fazer. Com um sorriso no rosto ele responde firmemente: “Nós temos os Munduruku! O governo não sabe com quem está lidando aqui.”.
MAS COM TANTAS EVIDÊNCIAS CONTRA ESSE TIPO DE PROJETO, POR QUE O GOVERNO AINDA INSISTE EM HIDRELÉTRICAS?
Porque as dez empresas que mais doaram em 2014 ajudaram a eleger 70% da Câmara. Como nos mostra a matéria do Estadão, entre as Top 10 estavam empreiteiras como OAS, Andrade e Gutierrez, Odebrecht, UTC Engenharia e Queiroz Galvão. Então, o que conta é a pressão das empresas no governo para fazer as obras e seus interesses por trás delas, e é esse jogo que esse movimento de resistência está dizendo que não quer mais.
O governo sem escrúpulos parte do conceito de que não há gente vivendo nesses territórios. As terras não são vazias, há milhares de pessoas vivendo lá. E não são invisíveis! Mas segundo a lógica reinante, esses indivíduos são massas sobrantes sem razão para viver nesse mundo. Não são necessários à economia que detém o poder.
Maria Leusa, líder das mulheres Munduruku, complementa: “Nós não trocamos a vida dos nossos filhos por dinheiro. Por isso, as mulheres têm que lutar junto com os homens. Estamos aqui de mãos fechadas para o governo. O governo só quer saber de destruir. Estão chorando nossa floresta. Mas estamos aqui para mostrar que vamos defender até a morte. Não vamos abaixar a cabeça. Sem luta não somos nada.”.
Nosso único ponto de apoio é a inteligência coletiva. Todos nós temos o desafio de procurar dados, evidências, que demonstram a inviabilidade ambiental do projeto e definir uma oposição e resistência clara e definitiva contra esse tipo de projeto. O Ministério Público Federal (MPF) do Pará, disponibilizou um dossiê on-line denunciando os impactos e ilegalidades desses projetos.
Mas não se trata apenas de pareceres técnicos e científicos. Temos que levar em conta a sabedoria dos povos e, fundamental, nossa sensibilidade. Só com consciência crítica e um forte sentimento de rejeição podemos mudar isso.
A cada dia mais pessoas compreendem que estamos vivendo no tempo da emergência de conservar nosso mundo. A cada dia mais pessoas tomam consciência do papel das populações originárias, que estão na primeira linha do combate à destruição capitalista do meio ambiente, em defesa dos rios e florestas, contra o agronegócio, as madeireiras e as mineradoras. A cada dia mais pessoas entendem a sinergia da luta dos povos originários com a nossa própria sobrevivência.
“Essa caravana aconteceu para que a Dilma saiba, para que o mundo saiba, que nós não vamos ficar de braços cruzados.”, expôs o padre Edilberto, do Movimento Tapajós Vivo. Temos hoje um desafio muito grande que é fazer aparecer a nossa indignação. É mostrar que existe esse movimento de contestação que nega esses projetos e tornar visível para a opinião pública, que desconhece essas informações, porque a alienação faz parte da lógica do sistema.
Precisamos fazer crescer esse movimento de reação e resistência!
SAWE!