3 de dezembro de 2014: o Governo Federal, o Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional, o que poderá restar de esperança?
Tacape atômico baixa no soho/ E o grito de socorro é universal (…)
Reteso o arco da nova aliança/ Dor signo flecha cruza o céu da aldeia global/
A esperança é que no fim do episódio Sonhos de Curumim. (Chico César)
Por Eduardo Fernandes de Araújo* e Maria Augusta Assirati**, especial para o Viomundo
Em outubro desse ano Dilma Roussef foi reeleita presidenta do Brasil com o apoio de setores da esquerda, do campo popular democrático e da classe trabalhadora, cuja militância na reta final das eleições foi fundamental para a definição de uma apertada disputa contra a direita tucana. A opção eleitoral enquanto resíduo das esperanças depositadas por mais de 20 anos no Partido dos Trabalhadores e no governo instaurado em 2003 com o Presidente Lula ganharam um último suspiro. Ou seja, a vitória de Dilma pode ter sido uma derrota da direita, no entanto, os fatos e práticas pós-eleitorais têm colocado em questão a capacidade que essa vitória terá de impedir retrocessos no campo político das conquistas históricas nas dimensões dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais.
Por certo que a reeleição e manutenção do Partido dos Trabalhadores no Governo Federal manifestou a opção pela continuidade de um projeto de Estado brasileiro centrado na afirmação, ampliação e consolidação de direitos humanos combinada com a participação democrática popular eficaz e maior efetividade, transparência e capilaridade das instituições do Estado-Governo. Porém, a conjuntura econômica internacional, a efervescente movimentação à direita e as relações que se estabelecem como um mantra pela garantia da governabilidade não favorecem ações que avancem na radicalização das conquistas sociais populares.
Num arco de coalizão governamental tão flexível, a difícil tarefa de composição ministerial demonstra que o passo à esquerda virou uma dança em que ninguém tira os pés do chão, e as inclinações, acenos e cenas centram as escolhas em nomes que representam o agronegócio, os bancos privados, a indústria e o mercado especulativo. No Congresso, as forças conservadoras ganharam terreno e continuam a pautar o governo e o poder judiciário.
Justamente por tudo isso, sinalizar qual será o campo em que cada qual irá jogar nos próximos quatro anos, é essencial na trilha da consolidação desse projeto democrático. Mas, ainda que não se chegue a tanto, é responsabilidade obrigatória desse governo tentar, ao menos, impedir retrocessos em relação ao que se conseguiu conquistar.
Uma ótima oportunidade para o governo federal externar sua posição está dada. Hoje (03/12), duas iniciativas explicitam mais uma vez que a bancada ruralista e seus aliados não medirão esforços para concretizar seus planos de expansão na concentração de terra. Não por acaso no mesmo dia, Legislativo e Judiciário se tornarão novamente arenas de disputa entre a possibilidade de aprofundar as garantias e a promoção de direitos, e o risco de retrocesso em relação a conquistas que aparentemente estavam consolidadas normativamente. O Congresso Nacional estará centrado na discussão de um projeto de lei do Senador Romero Jucá, que visa regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, e do Substitutivo do Deputado Osmar Serraglio à PEC 215. E o Supremo Tribunal Federal terá novamente na pauta a discussão da ADI 3239, interposta com a finalidade de que se declare a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03.
Essas medidas que estarão em pauta, se aprovadas e implementadas ou acatada no âmbito do STF, darão concretude ao retrocesso por meio da redução dos direitos que indígenas e quilombolas têm sobre suas terras, repercutindo em temas caros como o modelo de desenvolvimento, a relação da sociedade com o Estado, e as questões ambientais, fazendo perpetuar a violência física e simbólica contra essas comunidades, pois, trata-se de direitos expressamente consagrados no ordenamento jurídico brasileiro.
No que tange à questão indígena a PEC 215 e seu Substitutivo são, de igual modo, flagrantemente inconstitucionais. A proposta de regulamentação do parágrafo 6º do artigo 231 é repleta de impropriedades jurídicas, até pelo simples fato de extrapolar os limites daquilo que o próprio dispositivo assegura e prevê como objeto de intervenção infraconstitucional. São iniciativas de parlamentares conservadores, ligados e fortemente apoiados pela Confederação Nacional da Agricultura – CNA, pelo agronegócio, por agentes do campo da exploração ilícita de recursos naturais, como garimpo ilegal e extração irregular de madeira, e do latifúndio.
A ação direta de inconstitucionalidade 3239/03 proposta pelo Partido Democratas para contestar a constitucionalidade do Decreto Presidencial n. 4.887/03 que regula a ADCT 68 tem enquanto amicus curiae (entidades que se colocam no processo para fortalecer o convencimento dos ministros) ao lado do DEM a Confederação Nacional da Indústria e a Associação Brasileira de Celulose e Papel. Ao lado do Decreto do Governo estão a Coordenação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso do Sul, a Concectas Direitos Humanos, a Justiça Global, o Instituto Socioambiental, a Terra de Direitos, a Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Pará, a Procuradoria do Estado do Pará, o Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Crioula, a Associação de Moradores Quilombolas de Santana, Associação dos Quilombos Unidos do Barro Petro e Indaiá, o INCRA, a Conferência Nacional dos Bispos e o Estado do Paraná, entre outros.
Para muito além, contudo, de entrar no mérito das complexas minúcias do debate técnico-jurídico pertinente a essas proposições, o que importa frisar é que essas mediadas pretendem circunscrever aos interesses do capital as condições do acesso de quilombolas e indígenas às terras a que têm direito. E, por isso, contrapõem-se, para dizer o mínimo, ao espírito democrático e social em que se funda nossa Constituição Federal de 1988, restando na contramão de um esforço normativo voltado à promoção de justiça social, de equidade, de minimização das desigualdades.
O êxito, portanto, da ADI 3239/03 e a aprovação das medidas que visam alterar os dispositivos constitucionais indigenistas inviabilizariam a regularização das terras quilombolas e as demarcações de terras indígenas. Certamente, esperamos que o Movimento Indígena e o Movimento Quilombola, assim como suas assessorias, coordenações, parceiros, parlamentares, Procuradoria Geral da República e outros atores, por meio das diversas formas de mobilizações contrárias a essas medidas, possam impedir o avanço dessas iniciativas e dar mais um passo fundamental na luta em defesa dos direitos dos indígenas e quilombolas.
E o Governo, Presidenta Dilma, tem posição sobre o tema? Esperamos que sim. Esperamos uma ótima resposta em defesa da constitucionalidade do Decreto 4887/03 junto ao STF, e uma manifestação pública e expressa de que o Governo Federal é contra a alteração da Constituição Federal no que se refere à demarcação de terras indígenas. Esperamos, ainda, a publicação dos atos que demarcam terras indígenas e regularizam terras quilombolas que se já encontrem aptos para tanto.
Precisamos acreditar, Presidenta, nós do mesmo campo democrático-popular que apostou em sua vitória como uma derrota da direita, que o Governo Dilma cumprirá seu papel na afirmação e defesa de uma posição firme contra os retrocessos, e em favor do aprofundamento das conquistas sociais. Que os resíduos de esperança sejam festejados em torés e saudações afro-brasileiras, sob os olhares sábios dos Encantados e ao som da música de Chico César Mama África: “Mama África, tem tanto o que fazer/Além de cuidar neném/Além de fazer denguim/Filhinho tem que entender/Mama África vai e vem/Mas não se afasta de você…”
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*Eduardo Fernandes de Araújo é professor do DCJ da UFPB, membro do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH/UFPB), orientador no Projeto Ymyrapytã: Povos Tradicionais e Meio Ambiente. Fundador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB). Pesquisador e coordenador do GT Povos e Comunidades Tradicionais, Questão Agrária e Conflitos Socioambientais do IPDMS. Diretor da Ong Dignitatis e integrante da Rede Nacional de Advogadas(os) Populares, atualmente é doutorando pela Universidade de Coimbra no Centro de Estudos Sociais (CES) do doutoramento Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI. ([email protected])
**Maria Augusta Assirati é advogada e mestre em Políticas Públicas pela Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ. Presidiu entre 2013 e 2014 a Fundação Nacional do Índio – Funai, onde antes foi Diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável. Exerceu cargo de Diretora na Secretaria Geral da Presidência da República e de Assessora Especial no Ministério da Justiça. Foi Coordenadora Geral na Secretaria de Gestão Participativa do SUS. Atualmente é doutoranda no Programa Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI pela Universidade de Coimbra no Centro de Estudos Sociais (CES).
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