Paxeo é o 7º integrante de grupo que já teve 2 mil índios, foi removido por hidrelétrica e hoje vive quase na miséria
Danilo Fariello
Minaçu (GO) – Os olhos apertados e amendoados de Paxeo, de 1 ano, refletem o resquício de uma etnia que já foi composta por mais de duas mil almas, no cerrado brasileiro, onde era conhecida como “a tribo invisível”, por sua capacidade de se esconder nas árvores. Já os olhos de Matxa, de 73 anos, a matriarca da aldeia, não podem mais ver esse sopro de esperança de perpetuação da comunidade que salvou do extermínio. Mas, mesmo que não estivesse cega por um glaucoma que resistiu a duas operações, sua percepção da vida permaneceria turva pela situação de miséria e impotência de sua aldeia nos últimos 20 anos, cerceada pela burocracia e lentidão da máquina pública, que deveria tornar viável a expansão daqueles sobreviventes, não só física, mas também cultural.
Desde 1992, os avás-canoeiros ficaram reduzidos a seis pessoas em uma reserva entre Minaçu e Colinas do Sul (GO) — outros dez avás perderam sua identidade cultural vivendo com caiapós e javaés na Ilha do Bananal (TO). Os índios goianos foram realocados pela construção da usina hidrelétrica de Serra da Mesa, em 1996, quando pareciam fadados ao desaparecimento, até que — com auxílio de programas específicos dos empreendedores da usina, Furnas e CPFL — Niwatima, de 24 anos, conheceu e se casou com o índio tapirapé Kapitomy’i, de 26 anos, relação da qual nasceu Avá-canoeiro Paxeo Tapirapé, em 28 de janeiro de 2012.
Funai não encontra relatórios de convênios
Há 17 anos, repórteres do GLOBO estiveram na aldeia mostrando a vida e as perspectivas de sobrevivência de Nakwatxa, hoje com 63 anos, Iawi, de 53, Tuia, de 43, e Thrumak, de 26, além de Matxa e Niwatima, que na época se chamava Putdjawa. Ali começava, de fato, um convênio entre Furnas e CPFL com a Fundação Nacional do Índio (Funai) que previa US$ 2 milhões para a proteção da reserva e o desenvolvimento da comunidade. Entre 1996 e o nascimento de Paxeo, foram investidos no território de 38 mil hectares — mais do que duas vezes a área de Niterói — R$ 6,9 milhões, resultado do convênio, da transferência de royalties pelo uso da água na hidrelétrica e da compra de terras para recompor parte da reserva que foi alagada em 10% do território. Esses recursos tornaram conhecida essa — que é uma das menores etnias do Brasil — como a mais rica de todas. Mas tantos milhões não tiraram os avás-canoeiros de uma vida que beira a miséria. Pior do que isso. Após o fim do convênio em 2002, os índios passaram a ter uma condição de dependência extrema do apoio externo, chegando a mendigar por cestas básicas junto ao povo vizinho à aldeia e à cidade de Minaçu.
Apesar da esperança de perpetuação genética com o nascimento de Paxeo, elementos da cultura avá-canoeiro permanecem adormecidos naquele grupo depois de anos de influência dos brancos e da ineficiência dos projetos socioambientais. Não deu resultado, por exemplo, o projeto para definição de uma ortografia da língua dos avás, uma ramificação do tupi-guarani. Sem isso, a língua tende ao desaparecimento, uma vez que Niwatima e Kapitomy’i já se falam em português. Além disso, de 1992 a 2002, os índios receberam periodicamente cestas básicas especiais, o que, segundo antropólogos, ajudou a reduzir o seu ímpeto à busca ou cultivo do alimento. Com o fim do convênio, não faltaram apenas alimentos, mas também ficaram prejudicados outros tipos de assistências, como a médica.
Indagada, a Funai não conseguiu encontrar os relatórios de balanço do convênio assinado em 1992, sem o qual a avaliação sobre os investimentos ou mesmo a confirmação de que eles chegaram de fato à aldeia fica impossível. A Funai explica que a busca não foi bem-sucedida por causa da recente alteração de seu comando, que ocorreu há quase um ano, e da transferência de documentos da atual sede em Brasília para outra onde os servidores ainda vão se instalar. A olhos nus, porém, fica clara a precariedade na aplicação de diversos programas previstos em 1992, sob responsabilidade da Funai.
— Eles passaram fome com dinheiro em caixa — reconhece Egipson Correia, técnico indigenista da Funai responsável pela aldeia.
As cestas básicas e a perda de tradições inibiram os índios de matar a fome com hábitos alimentares antes tradicionais. Niwatima e Iawi, por exemplo, comem atualmente morcegos e tatus — pratos comuns na comunidade até o contato com o branco — com a mesma frequência que um cidadão de classe média come lagosta no Brasil, ou seja, raramente. E, neste caso, não é por falta de oferta, uma vez que morcegos enfileiram-se no teto da cabana de alvenaria de um cômodo, onde os moradores espalham-se por suas redes.
Maria Augusta Assirati, diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, diz que nos últimos anos, sobretudo após a Constituição de 1988, há uma tentativa de aperfeiçoamento do Estado para promover a reprodução não só física, mas cultural de etnias indígenas.
— O Estado vem em um esforço de aperfeiçoar processos, com um diálogo mais aberto entre os atores envolvidos, mas ainda há necessidade de avanços — reconhece.
Apesar de Convênio, educação não ocorreu
Na ocasião do primeiro convênio, diz o indigenista Correia, os índios não foram ouvidos, por exemplo, sobre o local onde foi instalada a barraca de alvenaria com água encanada, mas com esgoto precário e sem luz, onde vivem hoje. Entre os 38 mil hectares de reserva disponível, a aldeia foi instalada pela Funai em um vale cercado de montanhas por todos os lados. Considerado o histórico de massacre dos avás-canoeiros, que quase desapareceram em conflitos com bandeirantes e garimpeiros no passado, a falta de um horizonte acaba levando os moradores a um estado de alerta constante e a uma necessidade de superar colinas para explorar a reserva.
— Aqui só dá milho pequenininho — disse Iawi, reclamando do local da casa.
Entre os milhões de reais reservados para os índios, mas que parecem não ter atravessado a porteira da reserva, estão recursos para educação. Hoje, só Niwatima sabe ler. Seu irmão, Thrumak, aprendeu matemática no convívio com brancos. Segundo Furnas, em 2001, foi feito um convênio com a Universidade Federal de Goiás com professoras que ensinavam os índios. “No período de um ano não foi constatado qualquer resultado para os índios, Funai ou Furnas. Por essa razão, a Funai solicitou a não renovação do convênio, bem como ainda não apresentou nova proposta para educação dos índios”, informa Furnas.
— Fazer das quatro pessoas que restaram de uma tribo objeto de uma proteção indigenista com verbas milionárias é uma forma bizarra de preservação e até uma forma de violência, porque desconsidera aspectos importantes da vida deles. Essa sociedade, que vive em situação de cativeiro, passou a ser dirigida por tutores — disse Cristhian Teófilo da Silva, professor de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), que defendeu tese de doutorado sobre o grupo.
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http://oglobo.globo.com/economia/esperanca-volta-com-bebe-ava-canoeiro-7659606
Enviada por Janete Melo.