APRESENTAÇÃO DO LIVRO “JOVENS E TRAJETÓRIA DE VIOLÊNCIA. OS CASOS DE BISSAU E DA PRAIA”, Pureza, J.M; Roque, S.; Cardoso, K. (Orgs), Coimbra, Almedina/CES, 2012.
por António Sousa Ribeiro
Entre as muitas ilusões perdidas ao longo da história catastrófica do breve século XX, avulta, sem dúvida, a da utopia iluminista que via na violência o resquício pré-moderno de um estádio ante-civilizacional, sempre em vias de ser definitivamento superado pela marcha imparável do progresso. Hoje bem de mais sabemos que a dimensão da violência é consubstancial ao projecto da modernidade e que – como, aliás, em justo tempo foi assinalado por Walter Benjamin – não é possível pensar a cultura sem pensar, ao mesmo tempo, a barbárie que constitui o seu reverso inseparável.
Estas mesmas reflexões deveriam bastar por si sós para entendermos o alcance limitado de certas tentativas de definição, como, à cabeça, as que, particularmente em certa escola alemã inspirada por Heinrich Popitz, limitam o alcance do conceito à existência de violência física. Esta simples menção bastará para sublinhar todo o horizonte de controvérsia que permanece vivo em torno da definição de violência e para apontar a acrescida necessidade de um trabalho teórico que, apesar da abundante produção das últimas décadas, permanece insuficiente. Constitui quase um lugar comum afirmar que o conceito de violência está entre os mais complexos da teoria contemporânea e que a dimensão polissémica deste conceito só é acessível a perspectivas transversais sensíveis a essa mesma complexidade.
Na verdade, mais do que o comprazimento no pathos da definição, importa, sim, que os estudos sobre a violência, se querem captar verdadeiramente o seu objecto, se mostrem capazes explorar o alcance do conceito através de uma abordagem específica dos contextos diferenciados em que determinadas práticas ou comportamento, determinados actos ou discursos, certas acções e omissões, são percebidos como violentos. Só este trabalho de contextualização permite captar o carácter multidimensional do problema e, nomeadamente, evitar lugares comuns e chavões persistentes, como, por exemplo, os que localizam em certas camadas jovens ou em certos grupos étnicos ou sociais uma particular tendência ou potencial de violência, muitas vezes vistos como inatos ou como imanentemente
Contra tais respostas fáceis, impõe-se uma metodologia eminentemente interrogativa, atenta aos sinais de complexidade e às dificuldades extremas do seu objecto e disponível para encarar as conclusões a que chega como sempre longe de definitivas. Ora, é justamente num lugar assim definido que se coloca o livro que me coube apresentar e cujas várias virtudes começam pelo facto de reunir um conjunto de estudos resultantes de um trabalho de campo prolongado e de uma convivência muito próxima com os processos que estuda, o que lhe permite, assim, situar-se num espaço de reflexão marcado por uma consciência muito viva dos problemas que atrás sucintamente abordei. Nalguns momentos, encontramos descrição densa no melhor dos sentidos; noutros, avançam-se, sempre com cautela, hipóteses explicativas; noutros ainda, apontam-se caminhos a prosseguir e enunciam-se precauções metodológica fundamentais. No conjunto, o livro constitui um contributo de muita relevância para o conhecimento de um problema ? as trajectórias de violência de jovens nas cidades de Bissau e da Praia ? só escassamente abordado com o rigor sociológico de que dão provas os estudos aqui incluídos.
O livro, que conta com uma esclarecida introdução de José Manuel Pureza, distribui-se por sete capítulos, correspondentes a outros tantos estudos de caso, complementados por uma sucinta conclusão das co-organizadoras, Sílvia Roque e Katia Cardoso, na qual são de novo sublinhados os desafios teóricos e práticos a que a investigação procurou responder a partir do propósito inicial de “dar conta das limitações de uma perspectiva única, unívoca e restrita das causas e das trajectórias da violência ou da não-violência juvenil” (p. 293). Os três desafios sinteticamente apresentados na conclusão constituem, em si mesmos, um programa exigente de investigação-acção: “não transformar uma análise da ‘normalidade’ ou da ‘normalização’ da violência em reforço da sua naturalização e aceitação social e política”; “enfrentar a progressiva despolitização e consequente deslegitimação e criminalização”; “superar a tentação dominante de ler [esta realidade] segundo grelhas que sacralizam a internalização das causas e actores da violência e a externalização das respostas” (p. 295-96).
Não é possível, nesta breve apresentação, referir com pormenor cada um dos contributos reunidos no volume, mas alguns aspectos estruturantes merecem ser sublinhados. Por um lado, a unidade interna da obra: independentemente do seu foco específico, cada um dos estudos se articula coerentemente com o conjunto e partilha de um sofisticado quadro teórico-interpretativo comum. Por outro lado, a dimensão comparativa: ao debruçar-se sobre diferentes aspectos dos casos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, nos seus paralelismos e diferenças, a análise sai enriquecida em múltiplas vertentes pela iluminação recíproca que resulta dos vários entrecruzamentos. Por outro lado, ainda, a preocupação de não ficar apenas por um retrato aprofundado da situação contemporânea, mas integrá-la também na lógica de uma média duração histórica vista num corte diacrónico que permite evitar as limitações de um simples presentismo e mantém sempre visível a perspectiva da historicidade.
Em todas estas vertentes, muito há que o leitor atento pode colher com proveito. Em particular a articulação recorrentemente estabelecida entre a questão da violência juvenil, a política do Estado e o papel das instituições deste, tanto as de carácter securitário como as de vocação preventiva ou formativa, assume merecido relevo. Em muitos aspectos do problema é, justamente, de um fracasso do Estado que se trata, como, numa perspectiva ampla, é diagnosticado por Ulrich Schiefer (“Falhanço em cascata: como sociedades agrárias africanas perdem o controlo sobre os seus cadetes”), e especificamente desenvolvido na generalidade dos capítulos. Mas também a questão dosmedia (Marta Peça, “Entre o real e o percepcionado: Estudo exploratório do discurso mediático sobre a violência urbana na Praia”) ou a vertente, muitas vezes negligenciada, da diferença sexual (Sílvia Roque e Joana Vasconcelos, “Dinâmicas violentas das negociações geracionais e de género na Guiné-Bissau”) são objecto de análises específicas.
Estes são apenas alguns aspectos de uma visão de conjunto que cumpre de modo exemplar não apenas o desiderato de contribuir, sobre uma base empírica sólida, para o desenvolvimento de uma sociologia da violência, mas também a exigência ética, própria do terreno dos estudos para a paz em estão radicados/as os/as autores/as, de combater aquele “olhar redutor e estigmatizante sobre a violência juvenil” referido no excelente capítulo inicial da autoria de Katia Cardoso (p. 51). É, de facto, de um outro olhar que aqui se trata e é a procura séria e bem fundamentada desse olhar que faz deste volume muito mais um ponto de partida do que um ponto de chegada.
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