Morador de rua da capital vive sem documento, cobertor e dignidade

Fiscais da Regional Centro-Sul são acusados de tomar, à força, objetos pessoais de mendigos de Belo Horizonte
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Sem-teto acusam abordagem de servidores da Regional Centro-Sul de truculenta

Moradores de rua da área da Administração Regional Centro-Sul estão sendo privados de cobertores e até de documentos de identificação. A denúncia é de movimentos e entidades como a Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, a Toca de Assis e o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH).

Todos afirmam que fiscais da Gerência Regional de Ações Sociais no Hipercentro cometem abusos durante a abordagem dos moradores. Os funcionários da prefeitura estariam tirando à força objetos pessoais dessa população, prática tida como incabível pelo parecer 9.594 de 2010 da Procuradoria Geral do Município.

As acusações não procedem, segundo o chefe de gabinete da Regional, Luiz Fernando Starling. Mas o Ministério Público Estadual já abriu inquérito para apurar um caso, envolvendo 12 denunciantes. “Levaram documentos, remédios, pente e até escova de dentes. Que utilidade isso vai ter para eles?”, questiona Lourdes das Graças Albino de Faria, de 55 anos. Segundo ela, na manhã da última terça-feira, fiscais passaram com uma carreta recolhendo seus pertences e os de mais 30 pessoas que costumam dormir sob o Viaduto Castelo Branco.

A moradora de rua teme perder um emprego que lhe foi prometido por falta das carteiras de trabalho e de identidade. “Ontem, eu era a dona Lourdes. Hoje, sou ninguém”.

Uma das coordenadoras da Pastoral de Rua, Claudenice Rodrigues Lopes, afirma que a situação é recorrente desde 2005, quando a Gerência Regional de Ações Sociais no Hipercentro foi criada. A Regional Centro-Sul é a única que conta com o setor, que realiza ações diárias e com abordagem mais agressiva, segundo a coordenadora. “Sempre ouvimos denúncias de pessoas que não têm mais documentos ou cobertores, porque lhes foram retirados pela prefeitura”.

Há três anos acompanhando a população sem-teto, Irmão Ictus da Senhora de Fátima, da Toca de Assis, confirma a acusação. “Todos os dias a prefeitura passa com esse caminhão e joga os pertences dos irmãos de rua lá”.
Ação é diária

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Moradores de rua que vivem sob o viaduto Castelo Branco relatam que todos os dias cinco fiscais da Regional Centro-Sul fazem a “coleta” de objetos pessoais dos sem-teto. A ação acontece entre 8 e 9 horas, e os servidores não usam uniformes.

“Eles apavoram todo mundo”, diz um homem que se identificou como Joselito, de 29 anos. Ao resistir à retirada de sua bolsa, que continha pertences pessoais, ele teria recebido um chute na perna, dado por um dos fiscais, na última terça-feira.

Alguns moradores evitam carregar documentos com medo dos funcionários municipais. Elaine, de 30 anos, que dorme em uma calçada da Savassi, mantém na mochila apenas a cópia da carteira de identidade. “Já me tiraram uma vez e tive que fazer uma segunda via”. Luciano, de 19 anos, deixa a certidão de nascimento no ferro-velho onde trabalha.

A coordenadora do CNDDH, Karina Vieira, chegou a tentar intervir após presenciar um episódio de abuso. “Vi os fiscais pegando uma bolsa com roupas de bebê de uma mulher e jogando na carreta”, lembra.

Karina foi atrás do veículo e exigiu a devolução da sacola. Mas, como resposta, ouviu que a prática era uma aplicação do Código de Posturas do Município. Em seguida, a Polícia Militar a interceptou dizendo que a única atitude que ela poderia tomar seria fazer um boletim de ocorrência. “Essa ação dos agentes é contra a lei”, diz.

O chefe de gabinete da Regional Centro-Sul da Prefeitura de Belo Horizonte, Luiz Fernando Starling, diz que os profissionais da Gerência Regional de Ações Sociais no Hipercentro são orientados a recolher apenas objetos que estão obstruindo as vias, como caixas de papelão e eletrodomésticos. Segundo ele, é totalmente proibida a coleta de pertences pessoais. “Que a gente saiba, ninguém está fazendo isso”, assegura.

A gerente de Programas Sociais da Regional, Marcella de Castro, endossa o que diz o chefe de gabinete. “Não chegaram denúncias desse tipo aqui. Só sei que isso já aconteceu no passado”.

Apesar das negativas, na última reunião do Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua, realizada em 12 de maio, foi exibido um vídeo denunciando a abordagem dos fiscais. As cenas foram mostradas a representantes de todas as regionais da Prefeitura de Belo Horizonte, a entidades representativas e ao Governo municipal.

A gravação foi feita em 25 de abril deste ano, por volta das 15 horas, e flagrou o momento em que fiscais sem uniforme abordaram um grupo de 12 artesãos também em situação de rua que estavam em frente à Galeria Praça Sete, no Centro da capital.

Enquanto a Polícia Militar fazia a revista, os servidores recolheram mochilas, artesanato, matéria-prima para o trabalho e ferramentas. Também houve, conforme a denúncia, violência moral e ameaças. Uma das vítimas diz que foi interceptada por um fiscal que teria dito que “quem rouba de ladrão é sempre perdoado”.

Depois da reunião, o Governo municipal começou a se mobilizar para resolver a situação, segundo uma fonte da prefeitura. As acusações que pesam sobre os fiscais da Regional Centro-Sul teriam influenciado até na troca do secretário Fernando Cabral, que estava há dez anos no cargo, por Harley Andrade.

A fonte diz que está sendo elaborado um projeto para uma política municipal voltada para moradores de rua, seguindo diretrizes nacionais. O objetivo do trabalho é padronizar a abordagem praticada em todas as regionais. A prefeitura também teria orientado o secretário da Regional Centro-Sul a atuar na capacitação dos fiscais.

“A própria prefeitura já está sabendo”, confirma Irmão Ictus, da Toca de Assis, presente na reunião em que o vídeo foi exibido. Ictus, que já prestou o mesmo serviço de acolhimento em outras cidades, diz acreditar que Belo Horizonte é uma capital onde o poder público está realmente interessado em encontrar uma solução para o problema.

Exemplo disso teria sido a criação do Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua, que faz reuniões mensais desde outubro de 2010. Mas Ictus não deixa de criticar a atitude dos fiscais da Regional Centro-Sul. “Tirar o cobertor de alguém que dorme na rua é falta de humanidade. Eles perderam o controle”.

 

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