Empresas são chamadas a cortar relações comerciais – diretas ou indiretas, através das cadeias produtivas de fornecedores ou da importação direta de produtos – com empregadores envolvidos em casos de trabalho escravo
Por Maurício Hashizume
As portas do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo estão abertas para empresas estrangeiras que queiram agir no combate à prática criminosa. O documento com os marcos para a adesão de companhias não brasileiras foi apresentado no IV Seminário Internacional da iniciativa, ocorrido na capital federal na última quinta-feira (19).
Agentes são chamados a cortar relações comerciais – diretas ou indiretas, seja através das cadeias de suprimentos de seus parceiros fornecedores ou da importação direta de produtos – com empregadores específicos envolvidos em casos de escravidão, sem que sejam adotadas barreiras setoriais que podem trazer prejuízos indiscriminados e injustos.
O engajamento das filiais brasileiras, a organização de processos para checar o cumprimento dos marcos do trabalho decente (com obrigações contratuais, cobranças, avaliações de risco e transparência), o suporte a campanhas de informação sobre o tema e o apoio a programas de geração de oportunidades de renda também fazem parte da convocação.
Sucessivos rastreamentos de cadeias produtivas a partir de empregadores envolvidos em casos de escravidão realçam o risco de existência da conexão entre compradores de fora do país e essa produção “suja”, manchada pelo desrespeito ao direito ao trabalho digno.
A internacionalização aumenta o potencial do pacto, que se tornou uma referência de comprometimento do setor privado, avalia Caio Magri, do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Juntamente com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Instituto Observatório Social (IOS) e a ONGRepórter Brasil, o Instituto Ethos compõe o Comitê de Coordenação e Monitoramento do acordo.
Caio ressalta que os participantes do acordo reagiram quando foram chamados a se posicionar e que as pesquisas referentes às cadeias produtivas propiciaram acúmulo significativo para a base de conhecimentos na área.
Ele sublinha que o exercício do diálogo em busca de melhorias tem sido constantemente praticado pelo conjunto de participantes do Pacto Nacional, que vem inspirando tanto a adoção de políticas corporativas contra a escravidão como o aperfeiçoamento de políticas públicas com o mesmo fim. Esses e outros pontos positivos, projeta o gerente do Instituto Ethos, asseguram a credibilidade e utilidade da ferramenta para além das fronteiras brasileiras.
Referência
A abertura para adesão internacional amplia o alcance da experiência brasileira – considerada pela OIT como uma das mais avançadas do mundo em termos de envolvimento do empresariado. A relevância do compromisso está presente não apenas em relatórios globais do órgão ligado às Nações Unidas (ONU), como também já vem servindo como exemplo de boas práticas, por meio de programas de cooperação Sul-Sul apoiados pelo governo brasileiro, a outras nações da América Latina e da Ásia.
Segundo Laís Abramo, diretora do Escritório da OIT no Brasil, a relevância da iniciativa reside na existência de um trabalho de monitoramento, avaliação e intercâmbio de informações para a implementação de ações concretas, muito além das intenções registradas no papel. No próximo dia 20 de junho, o Pacto Nacional será apresentado nos Estados Unidos para membros do governo e representantes de corporações.
Outro traço que distingue o compromisso, completa Aparecido Donizeti da Silva, do IOS, é a valorização do ponto de vista dos trabalhadores. De acordo com ele, nem sempre as mesas de negociações que envolvem governos e setores econômicos acolhem a posição dos empregados. A pluralidade de integrantes, adiciona, tem ajudado companhias privadas dispostas a assumir a tarefa de intervir em suas respectivas matrizes produtivas, enfrentando possíveis resistências internas e externas.
Na avaliação do sociólogo norte-americano Kevin Bales, reconhecido especialista na questão do trabalho escravo contemporâneo, o Pacto Nacional reforça o papel do Brasil como pioneiro no combate ao crime. “Nos EUA, estamos literalmente há mais de 200 anos tentando fazer um pacto assim. Sonhamos com isso”, declarou Kevin, que é fundador e presidente da ONG Free The Slaves e deu palestra no seminário realizado no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Por meio dos produtos, o trabalho escravo toca as nossas vidas”, sustentou o sociólogo. Uma imagem de jovens estudantes reunidos no intervalo das aulas foi utilizada pelo palestrante para mostrar a variedade de itens (telefones celulares, camisas de algodão, café com açúcar etc.) que podem ter alguma ligação com o trabalho escravo contemporâneo. À plateia do evento que marcou o 6º aniversário do Pacto, Kevin compartilhou ainda experiências como a do International Cocoa Initiative, que tem obtido resultados de uma perspectiva mais setorial centrada no cacau. “Acredito, e estou sendo muito sincero, que o mundo tem muito a aprender com o Brasil. E que o Brasil também tem um pouco a aprender com o mundo”.
Outras três iniciativas norte-americanas voltadas à transparência global e responsabilidade empresarial tocante às cadeias produtivas foram abordadas por Andrea Cuba Sanchez, da OIT em Washington (EUA). Assinada pelo governador Arnold Schwarzenegger em 30 de setembro do ano passado, aLei Californiana de Transparência da Cadeia Produtiva (SB 657) estabelece que corporações com faturamento bruto global superior a US$ 100 milhões por ano que atuam no estado passem a divulgar o que estão fazendo para garantir que não há trabalho escravo em suas cadeias produtivas.
No interior da Lei Dodd-Frank (de reforma de Wall Street e de proteção aos consumidores), guiada no sentido de implementar maior transparência no setor financeiro após a crise que se agravou entre 2008 e 2009, há seções específicas que exigem que as empresas com ações no mercado divulguem com detalhes a origem caso utilizem em qualquer parte de sua cadeia produtiva matérias-primas minerais oriundas da República Democrática do Congo e de outros nove países africanos vizinhos. Diversas pesquisas, relatórios e alertas internacionais vêm associando o comércio desses minerais com estupros em massa, assassinatos e casos de tortura que desentabilizam a região e já resultaram na morte de milhões de pessoas.
Em adição, a legislação ratificada pelo presidente norte-americano Barack Obama cobra ainda que empresas petroleiras e mineradoras deem publicidade ao volume de tributos pagos a governos dos países em que atuam.
Há também, paralelamente, uma iniciativa do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) que ainda está buscando definir diretrizes para eliminar o trabalho infantil e o trabalho forçado no setor.
Monitoramento
Dados extraídos do processo de dois anos de acompanhamento também foram apresentados aos participantes do IV Seminário Internacional. Os objetivos voluntários firmados pelos cerca de 180 signatários atuais aparecem divididos em quatro dimensões: de monitoramento propriamente dito, normativa, de treinamento e de comunicação.
Marco Sayão Magri, do IOS, explicou que o volume de questionários respondidos foi menor em 2011, em comparação com 2010, em decorrência das fusões (em setores como o de frigoríficos, por exemplo) e a priorização de empresas e associações setoriais (em detrimento de outros tipos de entidades organizações sociais que aderiram ao compromisso).
A representatividade dos signatários, sublinhou Marco, pode ser aferida por meio da constatação de que, das dez maiores empresas do Brasil, quatro são signatárias do Pacto Nacional. Além disso, parte substantiva das companhias comprometidas atuam em setores-chave para o enfrentamento à escravidão como agropecuária, mineração e vendas no varejo.
Entre os que gravaram suas posições na plataforma digital de monitoramento, 81% declararam que estão aptas a realizar a suspensão imediata do contrato em caso de envolvimento de algum parceiro comercial na “lista suja” do trabalho escravo. O monitoramento por meio de outras auditorias como SA 8000 ou ISO 14001 é realizado por 59% das empresas.
Preocupam especialmente os números relativos a intermediários e fornecedores indiretos. Um total de 57,9% não estendem as exigências quanto à qualidade comprovada do processo produtivo a intermediários e/ou fornecedores indiretos. O controle sobre fornecedores pontuais, que são acionados esporadicamente, não ultrapassa o patamar de 48%.
No aspecto normativo, 72% das empresas responderam que dispõem de cláusulas contratuais com fornecedores e/ou clientes que estabelecem restrições à utilização de mão de obra escrava. No levantamento anterior, em 2010, esse índice mesmo índice alcançava somente 67%.
Quanto ao treinamento, o que se verificou, mais uma vez, foi que a sensibilidade ao tema verificada entre funcionários dedicados à responsabilidade social não vem sendo transferida a contento para outros departamentos cruciais como os de compra e venda. São muito raros ainda os programas de reintegração social e produtiva dos trabalhadores libertados. Apenas 35% alegam apoiar alguma ação com essa finalidade.
Resultados alarmantes também foram detectados no campo da comunicação. Projetos e campanhas de informações a trabalhadores vulneráveis foram ignorados por 71% dos signatários. É grande o percentual (67%) dos que não colaboram com esferas governamentais para políticas públicas.
http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1895