Esse brasileiro de origem iraniana nos ensina como discutir com sobriedade acerca dos direitos fundamentais do homem, nos convida a refletir sobre a necessária construção diária de um mundo mais harmonioso e livre de perseguições e preconceitos diversos. Iradj R. Eghari é um cidadão do mundo que oferece a todos nós doses da sabedoria oriunda de um coração amaciado por Deus e pela dor da perseguição imposta a seus irmãos do Irã.Vamos à entrevista:
Oykosmiguel: Fale-me de sua origem e como sua família chegou no Brasil?
Iradj Roberto Eghrari: Meus pais são iranianos, na década de 50 meu pai havia terminado o doutorado em engenharia civil na Alemanha e foi do primeiro grupo de jovens do pós-guerra a sair do Irã para estudar naquele País. Ao término de seus estudos ele volta para o Irã, mas sente que lá não é um local onde pudesse realizar seu verdadeiro potencial. Devido aos meus pais serem ambos bahá’ís, e o Irã dificultar a verdadeira liberdade religiosa, atenderam a um chamado de saírem do País e se estabelecerem em outros cantos do mundo onde pudessem efetivamente ser pessoas que contribuíssem para a sociedade por meio de sua expressão religiosa, que se dá no seu cotidiano. Eles não eram missionários, mas com os estudos que possuíam – minha mãe havia estudado artes, era pintora – poderiam oferecer o que tinham de melhor a uma nova sociedade.
Haviam decidido imigrar para a Argentina, afinal Buenos Aires era a capital da América do Sul em 1955. Mas como meu pai não conseguiu contato com a embaixada por não haver representação diplomática no Irã, ele foi à embaixada brasileira pegar o visto para o Brasil e aqui tentar ir para Buenos Aires. O embaixador deu a ele então um visto permanente, ele disse: “Você é engenheiro e o Brasil precisa de engenheiros, toma aqui um visto permanente”. Ao vir de navio para o Brasil, conheceu engenheiros alemães donos de uma empresa chamada Servix Engenharia, a maior empresa no ramo que fazia construção de barragens – meu pai havia feito o doutorado dele em barragens para hidrelétricas – e eles buscavam um engenheiro que falasse alemão. Juntou-se a fome com a vontade de comer!! e meu pai desembarcou no Rio de Janeiro, alegre e feliz da vida já com emprego e visto, decidido que não iria mais para Buenos Aires. E eu nasci em 1956, carioca.
Oykosmiguel: A bandeira dos direitos humanos não é fácil de se carregar…Como você vê essa tarefa, já que você tem dedicação substancial nesses processos?
Iradj: Meu envolvimento com a bandeira dos direitos humanos se dá obviamente pelo trabalho com a Comunidade Bahá’í, o fato de sermos duramente perseguidos no Irã e o fato de que no Brasil temos a possibilidade de defendermos os direitos humanos de forma bastante clara, aberta, veemente, franca e de buscarmos apoios para que os bahá’ís iranianos não sofram o que vem sofrendo mesmo antes da Revolução Iraniana; esta foi a minha porta de entrada para trabalhar a questão dos direitos humanos. Mas obviamente depois me apaixonei por outros temas brasileiros: a questão do racismo pra mim é um tema muito caro ao meu coração; a questão de gênero, a igualdade entre homens e mulheres; a questão geracional, dos direitos da criança e do adolescente, dos jovens, dos idosos… que são todos temas que a Comunidade Bahá’í trata de forma muito presente. Buscamos influenciar as políticas públicas deste país por meio de leis ou programas de governo que sejam capazes de refletir esse princípio bahá’í da unidade de todos os seres humanos, que todos são iguais. O princípio fundamental dos direitos humanos é que todos nascem iguais, não há por que haver discriminações por cor de pele, sexo, idade, passado religioso, classe social ou pelo que quer que seja. Então me envolvo nessa bandeira há cerca de 25 anos, quando me mudei para Brasília para trabalhar exatamente no contato que a Comunidade Bahá’í precisava fazer com o governo federal e trabalhar a ideia de influenciar políticas públicas e transformar as leis brasileiras para que elas refletissem melhor esse princípio universal de que todos os homens são iguais e nascem iguais. Então juntamos mão a mão, ombro a ombro com várias outras organizações sediadas em Brasília ou Brasil a fora, e que trabalhavam isso. Hoje a Comunidade Bahá’í é conhecida como uma força que lidera esses processos de defesa de direitos humanos no país.
Oykosmiguel: E o Brasil no cenário dos direitos humanos, onde estão os mitos e onde estão os fatos? Qual nossa distância para o ideal?
Iradj: O Brasil está muito distante de ser um País que reflita a integralidade dos direitos humanos. Existem três eixos fundamentais na ideia dos direitos humanos, que é a sua universalidade, indivisibilidade e a interdependência. Os direitos humanos são universais, todos nascem iguais, todos devem desfrutar desses direitos que aparecem com os trinta artigos da declaração universal com uma versão consolidada da idade moderna. Direitos humanos são conceitos que já existiam no passado, mas que se consolidaram com a declaração universal numa linguagem atual, que atende as demandas da humanidade nos tempos atuais. Mas o Brasil se encontra longe de ser um cumpridor de direitos, é um País campeão de desigualdades, a distância entre pobres e ricos no Brasil é maior que na Argentina, no Chile, Equador, Uruguai, Paraguai; maior que a distância entre pobres e ricos em todos os países africanos menos um, a Costa do Marfim. No Brasil, por exemplo, os 10% mais ricos chegam a ganhar 50 vezes mais que os 40% mais pobres. Essa distância na Argentina é de 25 vezes, e lá existe pobreza, mas não existe miséria como aqui. A miséria brasileira é pior que a miséria indiana. A Índia está em posição melhor nessa distância entre ricos e pobres. Então, se eu pegar só pelo viés da desigualdade social, o Brasil não é exemplo para ninguém; no viés da desigualdade racial, também não é exemplo. Setenta por cento da população pobre brasileira é negra, por quê? É só um resquício da escravidão, de políticas de segregação que o Brasil viveu durante essa época de colônia até chegar à república, ou é na verdade reflexo de um povo que introjetou no seu coração o racismo, e que busca de forma cordial dissimulá-lo? A Folha de São Paulo, por meio do Datafolha fez uma pesquisa que acabou sendo intitulada Racismo Cordial, como mencionei agora, em que se demonstrou que 95% da população brasileira disse que há racismo no Brasil, e 90% disse que não é racista. Que país é esse que tem racismo mas não tem racistas, que não assumem sua real face racista? É essa face racista que leva negros a serem preteridos em empregos no lugar de brancos, faz com que não recebam promoção em diversas instâncias, seja na área privada ou na área governamental. É então que vemos um país onde não há negros diretores, presidentes de empresas, gerentes de banco. Podemos contar nos dedos de uma mão – em uma cidade como Salvador, Bahia, que é tida como a “meca” da integração racial – a quantidade de negros gerentes de banco – há um ou outro, talvez. É um país que está muito atrasado na verdadeira consecução dos direitos humanos. Assim, nossos direitos aqui no Brasil não são universais e, pior, são fragmentados, divididos. Tem-se alguns direitos de forma parcial. Por exemplo, você tem o direito do acesso à educação, mas não tem o acesso ao trabalho digno que lhe permita continuar a educação de seus filhos e assim os tira da escola prematuramente para que ingressem no mercado de trabalho para ajudar na renda familiar. Isto contraria a indivisibilidade e interdependência de direitos.
Mas é um país que também tem tido avanços: saímos de uma realidade onde houve uma ditadura, onde foram suprimidas as liberdades fundamentais de expressão, reunião, de criar; fomos censurados em todos os aspectos em nome da proteção de uma nação, o que foi uma grande mentira, e nós vimos isso pelas barbaridades que aconteceram na ditadura e hoje podemos dizer que somos um país que começa a tatear a democracia, começa a entender como são as bases democráticas de funcionamento de um estado democrático. Mas ainda estamos distantes disso também. Ainda temos muito coronelismo nesse país; muitasubmissão das massas aos quereres e fazeres da elite, ainda somos um país muito distante na questão da educação, um país de semi-alfabetizados. Ainda há muito o que se trabalhar sobre a tortura, por exemplo. Que país é esse que precisa ter uma lei contra tortura? Se tem uma lei é porque há tortura. O que precisamos ainda avançar muito no Brasil, dada a pergunta mitos e avanços, é sairmos do mito de que somos uma população amorosa, cordial, cordata e reconhecermos que somos uma população que tem as suas violências e que precisa superá-las.
Oykosmiguel: Dê-nos um exemplo de país que tenha os direitos humanos plenos, há?
Iradj: Não há um país que tenha os direitos humanos plenos, todos os países são violadores. O país que se apresentar como o melhor, como aquele que superou tudo, ele ainda não conseguiu. Se buscarmos esse país no norte europeu, há uma xenofobia que grassa nesses países. Se eu falar que esse país se encontra numa pequena ilha do Pacífico, ainda podemos verificar questões ligadas a desigualdades sociais profundas. Infelizmente, o mundo ainda se divide entre dois blocos: dominadores e dominados. Os dominadores, que dominam econômica, política, científica, comercial, educacional e culturalmente, impõem uma regra de submissão aos países dominados, e estes não se pode dizer que estejam sendo tratados dentro de um ideário de direitos humanos. As novas formas de colonialismo que levam países maiores a dominarem os menores – risco esse que o próprio Brasil corre, de se tornar imperialista na sua própria região – leva todos nós a uma reflexão mais aprofundada sobre o que significa trabalhar o mundo inteiro em direção a uma verdadeira implantação de uma verdadeira sociedade mundial planetária respeitadora dos direitos humanos. Para que isso aconteça precisamos mudar os corações, não adianta mudar só as leis, que por si só não são suficientes. Pois podemos ter o código legal mais perfeito e as pessoas ainda discriminarem e ainda se odiarem. O que na verdade como bahá’í eu vejo, como sendo fundamental, é essa transformação de corações e espíritos: a busca de espiritualizar a relações humanas, aí sim nós vamos ver mudanças em todo mundo.
Oykosmiguel: No que temos que avançar com mais urgência para que o Brasil seja respeitado como um país que pratica os direitos humanos?
Iradj: Praticar direitos humanos! Para se ter o respeito da comunidade internacional temos de efetivamente praticar direitos humanos. Não podemos ter massacres como em Eldorado dos Carajás, ou no Carandiru ou na Candelária. Talvez a União se exima e diga que não tem responsabilidade, mas sim as unidades federativas e municípios é que violam os direitos humanos. Mas é papel de todos nós começarmos realmente a praticar direitos humanos. A União viola os direitos humanos quando ela impõe uma política econômica que não leva à promoção da igualdade social, ou quando não combate a pobreza e a miséria como ela deveria e permite que as coisas permaneçam no seu estado atual. Direitos humanos aparecem no ideário da humanidade a partir do Estado como violador de direitos, e esse é nosso maior desafio: como transformá-lo no verdadeiro promotor de direitos preocupado com todos e não somente com uma elite que o elege e o mantém no poder. Quem financia a campanha não é o povo, é a elite, que tem interesses. E é claro que o governo vai ter que manter o nível de compromissos, comprometimentos e de transigências com as elites porque são elas que pagam a conta final. Então precisamos também mudar o modelo político, que não atende mais aquilo que o povo necessita. O modelo político partidário está falido e se perdeu; precisamos encontrar novos modelos de governança capazes de realmente atender às necessidades de todos, tanto da elite quanto do povo, da massa e que seja um modelo que aproxime os extremos acabando com essa distância entre ricos e pobres. A partir daí eu posso dizer que o Brasil começa a se tornar um país respeitador de direitos.
Esse modelo é apresentado pela Comunidade Bahá’í, é um modelo revolucionário em termos de governança, baseada em outros critérios, que não o critério da candidatura, do apoio e da barganha política, mas os critérios dos valores do indivíduo. Cada pessoa tem os seus valores, que é melhor e capaz de contribuir para o bem comum.
Oykosmiguel: Como você enxerga a Amazônia… O que ela é pra você?
Iradj: A Amazônia é muito mais do que o pulmão do mundo, é muito mais do que uma área a ser preservada, ou um relicário: ela é parte deste país e deste planeta, e ela está sendo absolutamente desconsiderada, violada, destruída como se fosse uma terra de ninguém. Nosso primeiro desafio como brasileiros é integrarmos a Amazônia à nossa percepção enquanto cidadãos e cidadãs deste país, considerar os povos amazônicos como sendo nossos verdadeiros co-irmãos, compatriotas, para que possamos ver sua beleza pela beleza do seu povo e patrimônio.
Há uma armadilha muito grande em dizer que a Amazônia é um patrimônio mundial, porque aí eu perco a ideia de que existe uma integralidade de um país chamado Brasil e que tem que ter responsabilidade sobre seu território. A questão é que o conceito de soberania nacional também é um conceito ultrapassado. Se hoje o mundo diz não ao massacre de cidadãs e cidadãos livres na Líbia e decide intervir contra esse massacre, não seria direito do mundo intervir contra o massacre da fauna e da flora em qualquer parte do planeta, se considerarmos que também são seres vivos? Mas existe aí uma nuance, porque não há essa pureza de intenção por parte de todos os povos, nações e governos do planeta em verdadeiramente preservar e proteger, há interesse em ocupar, em subtrair. Então nós ainda estamos numa fase de entendimento e compreensão do que significa nos apropriamos do planeta enquanto um só país, de vermos a Terra como um só país como Bahá’u’lláh, fundador da religião bahá’í, preconizou: ver a Terra como um só país e os seres humanos os seus cidadãos. No momento em que entendermos isso eu não vou ver mais a Amazônia como sendo subtraída por parte de uma nação, de um governo ou de um povo por interesse próprio, mas como algo que pertence ao planeta. O dia em que vivermos efetivamente como uma federação de nações, o mundo será outro; por enquanto vivemos um conjunto de nações individualistas e conflituosas.
Oykosmiguel: O que você espera do governo Dilma?
Iradj: O que eu espero de qualquer outro governo que se instale nesse país: que promova a igualdade; que tenha como sua missão fundamental diminuir as diferenças a níveis toleráveis; de fazer com que o potencial de cada brasileiro possa ser revelado. Partindo da ideia bahá’í de que cada um de nós é uma mina rica em jóias de inestimável valor, espero que o governo trabalhe a educação como instrumento para encontrar essas jóias no coração de cada um, promovendo a transformação desse país.
O fato de Dilma ser a primeira mulher a assumir a presidência traz para nós a expectativa da alma feminina permeando esse universo tão masculinizado que é o mundo da política. Mas não nos deixemos enganar: não é somente através da alma feminina que serão resolvidos os grandes desafios, há que haver determinação política, e isso é o que todos devemos trabalhar para que nossos governantes sejam capazes de alcançar. Não podemos simplesmente agora deitar sobre os louros da glória de que a classe média brasileira aumentou com a migração das classes C e D para a classe B. O que aconteceu agora com a E e F que agora aparece? E a distância da E e F para B e A? Esse é que é o desafio, acabar com as desigualdades, que são o combustível que alimenta a tensão social nesse país.
Oykosmiguel: Quem é Deus pra você?
Iradj: Deus é o criador, é o Pai bondoso, é Aquele que deu vida a todos nós. Não é um velho barbudo sentado num trono com um cetro na mão dando ordens, mandando e desmandando, determinando o nascer e o morrer. Mas é essa força universal, essa força incognoscível. É tudo aquilo que não é o que eu estou tentando definir aqui agora, porque como pode o limitado entender o ilimitado? Mas posso dizer que as qualidades divinas as vejo na Sua própria criação, e esse é o mistério e o segredo da criação: podermos tê-la como o espelho do Divino. O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, o que significa que nós espelhamos as qualidades Divinas: amor, bondade, compaixão, misericórdia, cooperação, inteligência, sabedoria.
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