Direitos Humanos – Privatizar o sistema carcerário? Artigo de José Luiz Quadros de Magalhães

Por que as pessoas são levadas a agir contra seus próprios interesses? Por que as pessoas insistem em um projeto que já se mostrou ruim e excludente em todo o mundo e leva de forma acelerada a humanidade em direção à catástrofe ambiental, social e econômica?

O leitor deve se perguntar nesta altura o que isto tem a ver com o sistema carcerário. Tudo. A discussão proposta se insere dentro de um sistema econômico, político e social que se torna hegemônico na década de oitenta, do século passado, e que promoveu a maior concentração de riquezas da história, criando uma massa de excluídos, que ao contrário dos explorados do século XIX, nem para isto servem. Ou seja, são excessivos, o sistema não precisa destas pessoas nem para explorar a mão-de-obra no sistema produtivo tradicional do século XX.

Este mesmo sistema promove a desconstrução dos mecanismos de proteção social, saúde pública, educação pública e previdência social, assim como os direitos sociais e econômicos conquistados no decorrer dos dois séculos passados.

Este mesmo sistema promove um crescimento econômico fundado no aumento contínuo de consumo, estruturado sobre uma sociedade construída nos valores da competição, do egoísmo e individualismo exacerbado, onde a pessoa é reconhecida pelo ter e muito pouco pelo ser. A competição gera desigualdade e a criação ilimitada de mecanismos de acesso à propriedade, entre eles a criminalidade rotulada de organizada – um conceito completamente falido, para dizermos com o Ministro Zaffaroni – que já se apoderou da estrutura de governo de países, não só pobres mas incluindo algumas das grandes economias do planeta.

Esse crescimento econômico leva ao esgotamento de recursos naturais e na apropriação da água e em breve do ar puro, assim como promove acelerada destruição do meio ambiente, gerando conseqüências graves que já são sentidas em todo o planeta.

Este sistema econômico, na sua fúria apropriatória, privatizou seres vivos, genes, conhecimentos, curas e obras de arte e agora privatiza a guerra e a prisão.

Este é o ponto. Tudo está conectado. Não podemos compreender um problema sem entender o contexto, e o contexto é complexo. Isto torna tudo mais difícil no estabelecimento do diálogo necessário para a tomada de qualquer decisão em uma sociedade democrática: estamos mergulhados em uma ideologia que nos impede de mudar um sistema no qual é impossível continuar. Muitos podem concordar com tudo que foi dito acima, pela obviedade das proposições, mas continuarão diariamente a trabalhar pela continuidade do sistema. Esta incapacidade de reação, esta incapacidade de juntar a constatação do óbvio com ações concretas de construção de algo novo, funda-se na ideologia (enquanto distorção proposital da realidade) na qual estamos mergulhados até a cabeça, e que nos impede de fazer diferente. Podemos até pensar diferente, mas somos incapazes de agir diferente.

O mais grave é o fato de uma parcela expressiva da população não acreditar que é possível pensar e agir diferente: estes acreditaram na absurda proposição do fim da história. Nada é possível fora do que está posto, só nos resta administrar o possível, manter o sistema em uma crença cega de que um dia ele vai funcionar. Na crença impossível de que o sistema não funciona por causa da corrupção, pela culpa de pessoas que atrapalham o seu correto funcionamento. Não percebem que o sistema sempre criará a corrupção, o sistema se alimenta de todos os seus produtos e a única possibilidade de afastar a corrupção é mudando o sistema.

Interessante nesta proposição é o fato do sistema legalizar a corrupção, legalizar o crime, como vem ocorrendo na Itália de forma mais agressiva, mas que já ocorre em muitos Estados nacionais. Ora, se o crime, o grande crime, não é mais crime, o problema está resolvido e nos resta apenas culpar os pobres, os miseráveis pela insistência em pedir direitos.

A descriminalização dos juros extorsivos e criminalização dos movimentos sociais é um bom exemplo.

Dentro desta perspectiva assistimos agora a privatização da guerra e a privatização das prisões . No lugar de acabarmos com a guerra e com as prisões inserimos estas duas práticas no sistema como um negócio, como algo lucrativo. A partir deste momento a guerra e o crime são necessários ao funcionamento do sistema, vão oferecer lucros aos seus acionistas, vão alimentar legalmente o sistema que nos oferece maravilhas para comprar diariamente nos “shopings centers”.

Nesta introdução está presente minha indignação com a proposta, pois mais do que inconstitucional, a privatização do sistema prisional é imoral. Mas, afinal, o que é moralidade? Quem diz o que é moral? Ora, quem sempre diz quem pode dizer? Quem atribui significados aos significantes? Quem tem poder. Logo eles dirão que isto que era imoral não é mais: novos tempos. Eficiência e lucro. Se a extorsão era crime, não é mais. Já, lutar por direitos, lutar pela inclusão sempre foi crime, e continua sendo. Querem eles que continue sendo. Enquanto alguns agem pelos mecanismos institucionais para criminalizar os movimentos sociais, vamos – obviamente que não nós, que estamos aqui hoje – protegendo o lucro daqueles que investem na prisão dos pobres e quem sabe, daqueles que são presos por lutarem pelos seus direitos constitucionais à terra, ao trabalho, à dignidade e à igualdade.

No edital de Licitação da privatização do sistema penitenciário – Concorrência n. 01/2008 – SEDS/MG, do governo do Estado de Minas Gerais, encontramos a expressão, ou resumo de tudo que escrevemos até aqui. Note o leitor que não era necessário que estivesse escrito, mas estando expresso fica mais fácil de entender: “Plano de Negócios: projeções de todos os parâmetros e variáveis necessários à estruturação de um fluxo de caixa, tanto de negócio quanto de seus acionistas (incluindo, mas sem limitar, a TIR – Taxa Interna de Retorno, projeções de volumes, receitas, custos, despesas, investimentos necessários para construção e gestão do COMPLEXO PENAL, visando a analisar e a avaliar a viabilidade econômico-financeira no período da CONCESSÃO ADMINISTRATIVA.”

Ainda no edital, encontramos o “PARAMETRO DE EXCELÊNCIA OU “E”: parâmetro para a definição da bonificação a ser repassada à concessionária, pelo poder concedente, em virtude da atuação daquela relacionada tanto com o trabalho do sentenciado quanto com as características deste trabalho associadas à ressocialização dele, conforme MECANISMO DE PAGAMENTO, anexo a este EDITAL.”

Passemos à análise da inconstitucionalidade desta parceria público privada, que esconde o favorecimento de lucros privados sobre a atividade estatal, ampliando a esfera de obtenção de lucros sobre nova forma de exploração da pessoa, fundada na manutenção e ampliação do encarceramento em massa.

A inconstitucionalidade

Poderíamos reduzir esta abordagem a uma pergunta que deve ser respondida pelo leitor: por que não privatizamos a Presidência da República, o Governo do Estado, o Legislativo e o Judiciário? Tenho medo de perguntar e alguém gostar da idéia. Assim diminuiríamos os gastos públicos e geraríamos empregos. Substituiríamos os juízes, desembargadores e ministros por árbitros privados (declarando a morte da imparcialidade e da igualdade processual); mediríamos a eficiência do Legislativo pelos seus poucos gastos e pela quantidade de projetos de leis que favoreçam as empresas a aumentarem seus lucros e teríamos um gerente nos executivos que, não tendo mais que fazer opções políticas (uma vez que decretaríamos também a morte da política e logo o enterro da democracia) devem ser apenas bons gestores.

O leitor deve estar achando tudo isso absurdo, mas não é: afinal nesta idéia de privatizar a execução penal, a inconstitucionalidade é do mesmo calibre e marca um passo em direção a privatização do resto. Não acredite o leitor que isto é impossível: basta analisar o sistema estadunidense. Os legisladores federais representam grupos de pressão que representam setores econômicos e financiam suas campanhas, como a indústria farmacêutica; a indústria bélica; a indústria de petróleo e etc. A Presidência da República é acessível apenas aos dois partidos (Democrata e Republicano) que representam quase os mesmos interesses e mantêm quase a mesma política, que também é financiada pelos mesmos grupos econômicos. Quanto ao Judiciário, mais de noventa por cento dos conflitos são “solucionados” por arbitragem ou mediação privada. A conseqüência deste sistema é que 50% dos estadunidenses não votam (pois sabem que nada vai mudar em sua vida, pois a política foi extinta diante dos interesses econômicos); 50 milhões de estadunidenses não tem acesso a nenhum tipo de assistência à saúde; milhões são alijados do sistema legal de solução de conflitos, perdendo direitos, e outros milhões são empregados pelas empresas de encarceramento em massa.

A privatização do Estado não ocorre só nos EUA. Recentemente na Itália, com a eleição de Berlusconi, o Legislativo foi privatizado e as leis passaram a servir aos interesses exclusivos de pessoas e empresas privadas, incluindo especialmente os interesses do empresário primeiro-ministro que alcançou a imunidade/impunidade. O homem acima e além de qualquer crime: um inatingível. A Itália aos poucos vai revogando a idéia de Estado e de República. Povera Itália!

Como nós não queremos fazer o mesmo, pensemos então na inconstitucionalidade da privatização dos poderes públicos.

Isto pode parecer uma aula de Direito Constitucional para o ensino fundamental, me perdoem, vamos lá:

Privatizar os poderes do Estado significa acabar com a República. A privatização da execução penal é a privatização de uma função republicana, que pertence ao Estado enquanto tal. Privatizar o Estado significa acabar com a República, com a separação de poderes, com a democracia republicana. As funções do Estado não são privatizáveis, entre elas o Judiciário e a execução penal na esfera administrativa.

Mas o que é mesmo República?

No passado a palavra República significou uma forma de governo contraposta à Monarquia. Desta forma a República seria uma forma de governo do povo, onde este participaria do governo diretamente ou por meio de representantes, enquanto na Monarquia, haveria o governo de um só, fundado nos privilégios hereditários e numa fundamentação artificial do poder do soberano na vontade divina.

A idéia de República se contrapondo à monarquia, como sendo uma forma de estado onde o governo (unipessoal e ou colegiado) é escolhido pelo povo, se refere ao conceito moderno. Importante lembrar que o significado da palavra república mudou muito no decorrer da história. Alguns sentidos que encontramos são os seguintes:

* República antiga: Em Roma república significa a coisa do povo; a coisa pública; o bem comum; comunidade; conceito originário da cultura grega (uma das acepções do termo Politéia). É, portanto, um sentido que se afasta da tipologia das formas de governo. Não era, portanto, uma contraposição à Monarquia. Monarquia era naquele momento um princípio de governo. Assim a monarquia seria uma forma de governar, como a aristocracia e a democracia. Cícero, por exemplo, contrapunha a República aos governos injustos. A República seria a conformidade com a lei e com o interesse público pelo qual uma comunidade afirma sua justiça.

* República na Idade Média: Este significado dado por Cícero permaneceu até a Revolução Francesa, em 1789. Exaltou-se na Idade Média a idéia de “Respublica christiana” onde se procurou mostrar a unidade da sociedade cristã na coordenação dos poderes universais da Igreja e do Império, que trariam e manteriam a justiça e a paz ao mundo.

* A República moderna: Neste período o termo se seculariza, afastando-se dos significados religiosos. Entretanto é mantido o significado construído por Cícero na antiguidade: Bodin utilizava o termo República para designar a monarquia, a aristocracia e a democracia quando estas viviam sob um estado de direito, contrapondo-se aos regimes violentos, sem lei ou anárquicos. Este é um significado que permanece até Kant, filósofo que faz ressaltar como a “constituição” dá forma a República. Com Kant a República se torna um autêntico ideal da razão prática. É o consenso jurídico de Cícero se concretizando na Constituição moderna. O mito da República está estreitamente ligado, no século XVIII, à exaltação do pequeno estado, o único que comporta a democracia direta, a forma legítima de democracia para alguns. Rousseau se inspirou nesta idéia de República, em Genebra, nos seus escritos.

* A República liberal estadunidense: O sentido de República mudou completamente após a revolução norte-americana (EUA). Para os estadunidenses John Adams e Alexander Hamilton, república volta a ser uma oposição à monarquia, onde há a separação de poderes e uma democracia representativa controlada pela constituição e de cunho elitista. República passa a significar então uma democracia liberal.

* A República socialista: Com as revoluções socialistas e o constitucionalismo socialista, com a União Soviética, os estados socialistas da Europa oriental, China, sudeste asiático, África e Cuba, foi consagrada a República socialista. O objetivo desta República é a instituição de um estado completamente novo que criaria as condições necessárias para a implantação do comunismo, sistema social e econômico onde haveria a liberdade plena em uma sociedade sem hierarquia, sem estado e governo, sem patrões e empregados. Uma verdadeira República.

* Autoritarismo e República: Vários regimes políticos de direita e de esquerda se fundaram sobre práticas e idéias autoritárias. Estes sistemas são repúblicas nominais, uma vez que, como visto a idéia de República sempre se vinculou à origem popular da legitimação do poder.

A idéia de coisa pública e de igualdade continua presente no conceito de República. A República é um espaço onde não há privilégios hereditários ou qualquer outro. República, portanto, é um espaço de igualdade perante a lei. Ser republicano é reconhecer a coisa pública, os bens públicos, o patrimônio histórico, artístico e cultural como pertencente igualmente a cada pessoa e a todas as pessoas simultaneamente. Em uma República não se admite privilégios, de nenhuma espécie, seja por razão de sobrenome, de riqueza, de conhecimento, cargo, posição profissional ou qualquer outra diferenciação.

Em uma República a pessoa é reconhecida como portadora de direitos iguais seja qual for sua posição. Uma ilustração interessante da idéia republicana na contemporaneidade está na não aceitação de entradas “especiais”, “carteiradas”, filas furadas, salas especiais, ou espaços reservados para quem use terno e gravata ou prisão especial para quem tem curso superior. Uma coisa é tratar de forma diferente situações diferentes buscando a igualdade, outra coisa é agravar a diferença injustamente, com a criação de privilégios.

Falar-se então em República no Brasil vai além de uma simples idéia de uma forma de governo do povo, isto é reiterado pelo conceito de Estado Democrático e Social de Direito. República, além do povo no poder significa dizer que, este povo no poder não pode aceitar ou criar privilégios de nenhuma natureza. Cada um, mesmo que seja minoria, mesmo que seja o único, tem direitos iguais perante a lei. Tem direito de ser reconhecido como integrante da República e, portanto, como construtor do caminho coletivo da vontade estatal.

b) Privatizar a execução penal e qualquer outra função essencial republicana do estado significa ignorar não apenas um dispositivo ou princípio constitucional significa, também, agredir todo o sistema constitucional. Não há inconstitucionalidade mais grosseira. A nossa Constituição é uma Constituição Social e não uma Constituição Liberal, tipo constitucional que se esgotou no inicio do século passado. Para privatizar o Estado e suas funções essenciais, privatizando, por exemplo, a execução penal teríamos que fazer uma nova Constituição, uma vez que não é possível mudar o tipo constitucional por meio de emenda, pois isto significaria modificar os princípios fundamentais constitucionais e as chamadas cláusulas pétreas. Mesmo se fizéssemos uma nova Constituição para poder privatizar o Estado, muitos internacionalistas e constitucionalistas defendem que o poder constituinte originário não detém uma soberania ilimitada, e que toda nova Constituição deve respeitar os direitos conquistados no decorrer da história. A
bolir a República, mesmo por meio de um poder constituinte originário, parece ser absurdo perante toda a doutrina do Direito Constitucional democrático.

O que é um tipo constitucional, quais são os tipos constitucionais?

A tipologia constitucional: O Estado constitucional moderno viveu três grandes momentos nos quais podemos encontrar três tipos distintos de constituição, classificados a partir da estrutura do texto, especialmente da identificação dos grupos de direitos garantidos e o tratamento constitucional que cada um recebe.

No constitucionalismo liberal encontramos a declaração e garantia dos direitos individuais relativos à vida, à liberdade, à propriedade privada, à segurança individual, à privacidade e à intimidade. Não há referência, nem no texto, nem há nenhum tipo de efetividade de direitos sociais relativos à saúde, educação, trabalho, previdência entre outros. Não há tampouco proteção a direitos econômicos como emprego e justa remuneração. Os direitos políticos são limitados, sendo que o voto censitário vigorou em muitas “democracias” liberais até o século XX.

No constitucionalismo socialista encontramos a proteção aos direitos sociais e econômicos, sendo dever do estado garantir emprego, remuneração justa, igualdade material, saúde, educação, previdência entre outros direitos sociais. Os direitos econômicos são assumidos como dever do estado, não sendo permitido a privatização dos meios fundamentais de produção (a terra e a indústria) em boa parte dos estados de “socialismo real” do século XX. Os direitos individuais e políticos encontram-se constitucionalmente condicionados aos objetivos maiores da sociedade e do estado socialista na construção da sociedade comunista: uma sociedade sem estado, sem propriedade privada, sem patrão e sem empregados, fundada no autogoverno de todos os trabalhadores.

No constitucionalismo social encontramos um sistema híbrido, que combinou a proteção aos direitos individuais e o individualismo liberal com a proteção e garantia dos direitos sociais e econômicos oriundos das reivindicações socialistas, sobre bases de uma democracia representativa, participativa e dialógica com mecanismo semi-diretos ou mesmo diretos de participação nas decisões do estado.

Estes tipos constitucionais se encontram hoje em crise. O constitucionalismo liberal não existe mais; o constitucionalismo socialista se encontra reformado em Cuba, China e Vietnã após sua quase extinção nas décadas de 80 e 90 do século XX e o constitucionalismo social se encontra ameaçado pela onda neoliberal (neoconservadora) que destruiu as bases de bem-estar social construídas no pós segunda-guerra mundial, com o oferecimento de serviços públicos gratuitos de educação, saúde e previdência para toda a população, como foi, e ainda o é em alguns casos, exemplo, os países da Europa ocidental.

No artigo primeiro de nossa Constituição está inscrito o principio de respeito aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, que caracterizam, ao lado de vários outros dispositivos constitucionais, nossa Constituição como uma Constituição Social. Este princípio expressa a idéia de uma ordem social e econômica onde trabalho e iniciativa privada tenham a mesma importância, e onde estes dois elementos se realizam com a finalidade única do bem-estar social. O trabalho e a iniciativa privada, como valores sociais, não podem ser compreendidos fora da lógica sistêmica de proteção e construção do bem-estar para toda a sociedade. Logo trabalho e iniciativa privada não são valores em si mesmos, mas sempre protegidos e condicionados pela realização do bem estar social e pelo respeito aos valores republicanos.

A ideologia e a formação de falsos consensos hegemônicos: a eficiência privada neoliberal e a ineficiência estatal como falsos pressupostos ideológicos.

Voltamos a pergunta inicial: por que as pessoas são levadas a acreditar e a agir contra seus próprios interesses? Por que na história da humanidade milhões foram postos em marcha em nome de interesses que não eram os seus, nem da sociedade, nem de seus filhos?

A ideologia enquanto mecanismo de encobrimento do real é fator de dominação. A deturpação do real pode ser feita por meio de varias práticas, corriqueiras na atual fase de hegemonia conservadora econômica.

A naturalização das coisas é uma mentira que, contada repetidas vezes, se torna verdade. A naturalização do direito e da economia retira o debate por conquista de direitos e o debate econômico da esfera democrática. Contra uma lei natural nada podemos.

A matematização da economia também é outra mentira que desmobiliza e afasta do debate econômico a esfera dialógica democrática. Se a economia é uma questão de matemática, de uma ciência exata, de nada adianta fazermos uma lei, ou uma emenda a constituição para regulamentar a questão econômica. A aceitação deste pressuposto falso permite que se retire o debate sobre o modelo econômico da esfera do livre debate democrático.

A ideologia do fim da história se insere nesta prática ideológica: se a história acabou, se chegamos ao sistema econômico, político e social perfeitos, agora nada mais podemos fazer além de administrar o cotidiano. Isto também é desmobilizador. Vários são os mecanismos de manipulação, de encobrimento, de desmobilização. A percepção destas práticas nos ajudam a entender como caminhamos sorrindo – os patetas patéticos, para dizermos com Virgílio de Mattos – para o aquecimento global, para o caos social e para a ditadura econômica.

A política tradicional da democracia representativa dos Estados democráticos está cada vez mais esvaziada diante da impossibilidade (descrença) das pessoas influírem efetivamente na construção de um sistema econômico e social mais justo. Tudo está ao encargo dos técnicos, os únicos com autorização para se manifestarem.

Um outro mecanismo de encobrimento de extrema força é a nomeação. A compreensão deste mecanismo pode nos ajudar a perceber as razões de tratarmos pessoas como qualquer outra coisa que não sejam seres humanos. Importante notar como a pessoa presa não aparece nem como detalhe no edital de concorrência. Como o seu trabalho que possibilitará o lucro do negócio, a saúde financeira da empresa é uma discussão que não ocorre. Não está nem a margem. Por que a estas pessoas, e a muitas outras, é negada a condição de pessoa igual, em uma República.

A nomeação é um mecanismo de separação, de segregação, que nos impede de ver o outro ser humano como pessoa como nós. As nomeações de grupos, os nomes coletivos servem para desagregar, excluir e justificar genocídios e outras formas de violência. Dividimos o mundo entre “judeus”, “cristãos”, “muçulmanos”, “mocinhos”, “bandidos”, “terroristas”, “criminosos”, “tutsis”, “utus”, “arianos”, “brancos”, “negros”, “amarelos”, “vermelhos”… com isto perdemos a dimensão multifacetada, plural, complexa, que cada singularidade humana tem, e que nos faz únicos, e por isto mesmo iguais.

Diante desta sociedade da classificação simplificadora lembro de uma manchete de um jornal de bairro em Belo Horizonte que dizia assim: “Menor agride adolescente”. Pergunto: quem é o menor e quem é o adolescente nesta história que se repete no nosso cotidiano classificatório e excludente?

Um dos grandes embates contemporâneos, não visível para grande parte das pessoas, é a luta pela construção do censo comum. Poucos dizem para nós e nossos filhos o que é bom, o que significa ser livre, o que significa desenvolvimento, o que é bom e mal, ético e não ético, moral e imoral. Temos que ter a coragem de desafiar as falsas verdades impostas. Em uma democracia efetiva quem diz o que é legal, normal, justo e constitucional somos nós, cada um de nós, de forma livre e dialógica. A efetividade democrática representa a superação das verdades construídas por poucos para a aceitação pacífica e cega de muitos.

O discurso hegemônico, repetido a exaustão pela grande mídia, de que o publico é ruim, incompetente e corrupto e o privado é eficiente e honesto carece de qualquer sustentação lógica. Somos seres históricos e podemos fazer de nossa realidade o que quisermos desde que tenhamos a clareza sobre os fatos e interesses que se confrontam no mundo contemporâneo. O Estado não é um ser vivo, ao Estado não podem ser atribuídos qualidades humanas, o Estado não é ruim nem bom; honesto nem desonesto; eficiente nem eficiente. O Estado é fruto do que as pessoas que se encontram no seu poder fazem com ele, e em uma democracia, o poder efetivo do estado só pode ser popular. A empresa privada também não é em si, nem eficiente ou ineficiente; competente ou incompetente, mas é fruto sempre de quem se encontra em seu poder. Entretanto uma diferença fundamental existe entre o sistema público e privado que determina o pano de fundo de toda a nossa discussão: a empresa privada, para a sua sobrevivência precisa atuar com a finalidade primeira do lucro, ou seja, com a apropriação privada, e logo no interesse de seus proprietários, do seu ganho. De outra forma, o poder público só pode atuar com a finalidade única do interesse público e bem estar social. Isto faz toda a diferença. O resto é ideologia.

Conclusão

O mais grave de toda esta situação é a transformação do crime, da guerra, do encarceramento, da privação da liberdade, em um negócio lucrativo. Acrescente-se ainda a falta de vergonha em se estabelecer uma empresa de capital aberto: assim todos podemos ser acionistas e lucrarmos com a exclusão e o desespero do outro. Aliás, será interessante, para a saúde financeira da empresa e de seus acionistas, que a exclusão, a violência e o desespero persistam.

A indignação ajuda a manutenção da sanidade.

A humanidade percorreu um longo caminho que passou pela formação do estado nacional, da imposição de uma religião, de um idioma, da construção artificial e violenta de uma identidade nacional até as sociedades cosmopolitas, multidentitárias, plurais, tão tolerantes que muitas vezes chegam ao desprezo e tão individualistas que chegam ao egoísmo.

Se, de um lado, fomos capazes de trilhar um caminho de conquistas de direitos, de afirmação do estado constitucional e mais importante, do discurso constitucional, da efetividade de alguns direitos individuais e políticos e do reconhecimento do poder pela legitimidade democrática e pela extensão das liberdades individuais, muito ainda há por fazer pela superação das brutais diferenças econômicas, pela indiferença à miséria, pela afirmação dos direitos sociais e econômicos desconstruídos nas últimas duas décadas pelo cruel projeto neoliberal ainda persistente em nosso Estado.

A construção de uma sociedade democrática includente e não violenta depende da superação destas diferenças sócio-econômicas. Para além da universalização dos direitos sócio-econômicos uma nova cultura humana precisa ser discutida e o reconhecimento de direitos humanos universais depende da nossa capacidade de percebermos o ser humano único, esta singularidade coletiva que somos, esta condição comum e ao mesmo tempo singular de sermos um nome próprio, construído por uma história única da qual participam muitas pessoas. Devemos ser capazes de enxergar, e lembrar de buscar sempre, esta singularidade escondida atrás dos nomes coletivos. Uma pessoa é múltipla, dinâmica, cada pessoa é um ser em constante transformação. Logo ninguém “é” apenas. As pessoas estão sempre se transformando, estão sempre virando alguma outra coisa conforme o contexto que se coloca diante delas. Não se pode reduzir uma pessoa a um nome coletivo, fulano não é juiz mas uma pessoa que exerce aquela função; cicrano não é bandido mas praticou determinados atos ilícitos; esta ou aquela pessoa são muito mais do que sua condição social, que seu gênero, que sua opção sexual, que sua cor, que sua religião, que seu grupo étnico ou sua nacionalidade. Quando formos capazes de vermos esta imensa diversidade e complexidade humana por detrás dos nomes coletivos, então não existirão mais genocídios, não existirá mais a miséria ou exclusão, pois ninguém suportará ver um igual na diferença em condição tão desigual.

Quando nos referimos às pessoas como “eles” estamos a um passo do genocídio: eles os judeus; eles os muçulmanos; eles os hutus; etc. Quando resumimos uma vida a um predicado como “bandido” estamos condenando uma pessoa a exclusão; quando chamamos outras pessoas de judeus, cristãos, muçulmanos, estamos construindo muros de difícil transposição. Somos todos pessoas. Pessoas únicas e complexas que podem ser simultaneamente um monte de coisas, mas seremos no final sempre uma pessoa como qualquer outra pessoa.

Insuscetíveis de sermos privatizados, assim espero. Conto com a ajuda de vocês.

Finalmente, convém concluirmos em relação ao aspecto constitucional, que pode e fará toda a diferença na defesa da república e todos os direitos que a acompanham.

Não é possível mudar o tipo constitucional ou ignorar os princípios fundamentais que norteiam o Estado constitucional por meio de portarias, editais, leis ou emendas à Constituição. Toda norma infraconstitucional, toda lei, ato administrativo, política pública, estão limitadas, condicionadas pelo sistema constitucional, seus princípios e regras, seus objetivos e fundamentos.

A Constituição, desde seu surgimento, representa garantia de direitos, segurança jurídica, representa que todo poder instituído, constituído, encontra limites na sua atuação e vontade no sistema constitucional. Nenhuma política governamental, nenhum ato do poder publico pode ir contra este sistema.

Privatizar a execução penal por meio de concessões ou diretamente, representa uma grave ruptura com os princípios constitucionais. O espaço público como espaço de todos, sem privilégios, é uma conquista do constitucionalismo, que se fez democrático no decorrer dos séculos XIX e XX. É por este motivo, por um motivo republicano, que os poderes (ou funções autônomas do Estado) são públicos. São públicos por que pertencem a todos, por que não podem ter finalidades privadas, por que não podem estar sujeitos a interesses privados, especialmente (e pior) o lucro. Se perdemos esta noção de interesse publico, se não enxergamos mais a democracia (como espaço e discussão publica) perdemos de vista uma conquista de mais de dois séculos. A lógica privada não pode ser aplicada às atividades republicanas. O espaço privado, a empresa privada não é democrática e não pode ser, uma vez que tem proprietários que visam o lucro. Nunca o privado pode substituir o que é publico por origem. Se isto acontece, os alicerces do Estado democrático e social estarão estremecidos.

A privatização da execução penal confronta a república e o estado social e democrático de direito. O primeiro princípio não pode ser afetado nem pelo poder constituinte originário soberano, por ser uma contradição essencial: o poder constituinte originário só será legitimo se for democrático, popular, e logo não pode acabar com a republica, base da democracia popular igualitária. O segundo princípio (o Estado Social e Democrático de Direito) não pode ser objeto de emenda pois a essência da tipologia constitucional reside nos direitos fundamentais (individuais, políticos, sociais e econômicos). Poderia mudar o tipo constitucional por meio de um poder constituinte originário, mas não para retroceder, voltando às bases liberais do constitucionalismo nos séculos XVIII e XIX. Se isto ocorreu em alguns países por força da política e pela política da força, isto não tem nenhuma sustentação lógica jurídica: seria ignorar dois séculos de luta por direitos.

A proposta, sob o aspecto jurídico é tão absurda, quanto é absurda do ponto de vista moral e ético, admitirmos o lucro (o negócio) sobre a morte e a prisão.

http://www.ecodebate.com.br/2011/01/25/direitos-humanos-privatizar-o-sistema-carcerario-artigo-de-jose-luiz-quadros-de-magalhaes/

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