ES – Ticumbi de São Benedito: heróica resistência entre os eucalitptais

Foto : Rogerio Medeiros/Apoena
Rogerio Medeiros

A principal novidade no folclore do norte do Estado está na sucessão do mestre do Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra, considerada uma das principais manifestações do Espírito Santo, não só por sua originalidade, mas, sobretudo, por representar uma das principais faces culturais da negritude capixaba. O anuncio foi feito pelo atual mestre, Terto Balbino (à esquerda), do alto de seus 76 anos de idade e 54 anos de Ticumbi,  no  último ensaio geral, no dia 31 de dezembro, na véspera de sua descida pelo rio Cricaré, rumo à sede do município para a sua apresentação de gala à frente da igreja de São Benedito.

A escolha recaiu no atual contra-guia, Berto Florentino (foto acima, à direita), há 45 anos no grupo e descendente de um dos principais troncos familiares que sustentam o Ticumbi desde o tempo da escravatura. Dele participaram o seu bisavô (que era escravo), o avô, o pai e mais três tios. Berto tem 17 filhos e um deles já foi seu violeiro, mas não permaneceu no grupo por absoluta falta de condições de trabalho na região após a substituição das atividades agrícolas pelos extensos eucaliptais da Aracruz Celulose (hoje, Fibria).

Berto é ainda um dos raros pequenos proprietários, nesta área tomada pelos eucaliptais da Aracruz Celulose, e habita uma região historicamente conhecida como território quilombola, situada entre os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, onde surgiram e proliferaram as principais manifestações folclóricas do Espírito Santo, entre as quais se encontra o Ticumbi. É pátria também de uma religião afro que aportou no Brasil, a Cabula, que, nos séculos XVIII e XIX, entrando pelo século XX, foi severamente combatida pelos católicos e destruída pelos jagunços das elites escravocratas e governos comprometidos com suas causas.

E também onde o escolhido sucessor do mestre Terto é parte importante do movimento em favor da retomada do território quilombola, em confronto direto com a Aracruz e sob a permanente mira da sua polícia privada e que, recentemente, teve a sua propriedade como palco de uma das maiores operações policiais realizadas na área quilombola com o intuito velado de afastá-lo da direção do movimento. Ele foi preso juntamente com familiares,o que acabou rendendo inúmeros protestos de entidades dos direitos humanos.

Com relação às conseqüências culturais pela perda do território quilombola, elas foram realmente de grande monta. A começar pelo próprio Ticumbi. Eram quatro, reduzindo-se hoje somente a este onde ocorre a sucessão de seu mestre. Destruiu-se praticamente a pirâmide social quilombola, onde se destacava uma elite negra que dominava os Ticumbis e que marcou presença nesse que é hoje conhecido como o Ticumbi de Conceição da Barra. Ele era constituído de vários clãs dessa elite, como no caso do próprio clã dos Florentino, da qual o Berto é a sua quarta geração.

Como o Ticumbi é formado por apenas 17 integrantes, é fácil imaginar a dificuldade para integrá-lo com negros de outras camadas sociais. Houve época em que dominavam esse sobrevivente Ticumbi de Conceição da Barra os clãs dos Andreza, dos Florentino e dos Gonçalves, além do próprio mestre Terto Balbino e do seu cunhado Benedito, que era o rei de Bamba.

Quanto aos demais Ticumbis da negritude, ou seja, de origem quilombola (existem três outros na Vila de Itaúnas, só que de origem cabocla), a chegada da Aracruz à região, que se dá ainda pelos anos 60, provocou uma verdadeira diáspora, como conseqüência da quebra, já mencionada, da pirâmide social quilombola. Enfraqueceu a elite negra a ponto de hoje esse Ticumbi ser composto por negros de outras camadas sociais.

Já desapareceu dele o clã dos Andreaza, enquanto o dos Florentino foi reduzido ao Berto, mantendo-se somente o dos Gonçalves, representado no embaixador do rei de Congo e no rei e embaixador do rei de Bamba e mais dois integrantes do cordão de pandeiros. Da família do mestre Terto, participa o filho Jonas, que é o seu rei de Congo.

A presença do clã dos Gonçalves mantém-se forte pela condução dada pelo seu líder, Acendino, que foi secretário do rei de Congo por 60 anos e nele permaneceu praticamente até a sua morte (2009). Só quando deixou de enxergar de vez é que aceitou entregar o lugar para o seu filho Arquimíno,  hoje um grande destaque no grupo do Ticumbi. Para valorizar o lugar que recebeu de seu pai e o seu pai de seu avô, mesmo cego, Acendino, nos dias da chamada apresentação de gala do Ticumbi, comparecia e sentava-se ao lado do rei de Congo.

A presença dele era sempre muito festejada por todos e sempre revestida de emoção. Era comovente presenciar o seu compromisso com o Ticumbi. Chegava sempre pelas mãos de um bisneto e saia também conduzido por ele. Acendino foi um Apolo negro com seus dois metros de altura e portador de uma beleza que encantava o mulheril. O detalhe na passagem do lugar para o filho Arquimindo é que ele impôs a entrega da espada somente quando estivesse dentro do caixão. Para as figuras do Ticumbi, que são os reis de Congo e de Bamba e os seus respectivos embaixadores, a espada é símbolo de seus cargos. E a espada acabou mesmo sendo entregue ao filho Araquimino por cima de seu cadáver dentro do caixão, onde Acendino encontrava-se devidamente paramentado, como participava das apresentações do Ticumbi.

Com Coxi como embaixador do rei de Bamba, Acendino trocou embaixadas e bateu espada por mais de 50 anos, formando a principal dupla de embaixadores da história do Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra. Um reconhecimento unânime entre os mais antigos que ainda hoje repetem algumas de suas históricas tiradas. Tanto nas embaixadas como no sapateado, eles foram insuperáveis. Também como Acendino, Coxi foi um belo homem. Como o outro, também arrancava suspiros do mulheril. Coxi morreu um pouco antes de Acendino.

O que tem sido observado ultimamente é a diminuição constante da negritude na sua apresentação no dia 1* de janeiro na porta da igreja de São Benedito, na sede do município de Conceição da Barra. Uma das hipóteses é o empobrecimento dessa população, pois, como ela é destinada à sua sociedade, tornou-se uma espécie de acordo tácito que os negros só devem comparecer com melhor de sua roupa, pois, sem roupa nova, perde o direito de ouvir, ao final da apresentação, o rei de Congo pronunciar a mesma palavra de ordem dos demais negros que passaram pelo seu lugar a partir da  escravatura:  – Viva a nossa bela sociedade!

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