Polícia do Rio fuzila nas favelas

As entidades Justiça Global eTortura Nunca Mais e quatro órgãos de direitos humanos locais condenaram o que definem como execuções sumários e descreveram “um clima de terror por causa da ocupação policial”. A reportagem é de Gustavo Veiga, publicada no jornal Página/12, 15-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Desde que os tanques irromperam nas favelas do Rio de Janeiro, com o propósito de expulsar o narcotráfico, surgem duas comprovações de ferro: estende-se a certeza de que houve graves violações aos direitos humanos no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro, e as Unidades de Polícia Pacificadora – UPP vão consolidando aos poucos a sua presença nos morros que rodeiam a cidade.

As entidades Justiça Global e Tortura Nunca Mais e quatro órgãos de direitos humanos locais condenaram o que definem como execuções sumários e descreveram “um clima de terror por causa da ocupação policial”. Em junho de 2007, ocorreram 19 mortes em uma operação no mesmo cenário, segundo reconheceu a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que admitiu vários fuzilamentos.

Em novembro passado, revelaram-se 34 casos em uma ofensiva de novo tipo: as forças combinadas permanecem  nas posições que ocuparam. Abandonaram as incursões-relâmpago nesses bairros pobres. “Até hoje não se sabe de forma exata quantas pessoas foram mortas em operações policiais desde o dia 22 de novembro”, informa o documento firmado no dia 22 de dezembro, que teve – segundo os denunciantes – quase nenhuma divulgação na imprensa brasileira.

O “manifesto público”, como é chamado pelas organizações, detalha que, desde o dia 28 de novembro, realizaram visitas ao Alemão e à Vila Cruzeiro, onde comprovaram uma realidade bem diferente da retratada pela mídia. “Casos de tortura, ameaças de morte, invasão a domicílio, lesões, corrupção, roubo, extorsão e humilhações”, menciona a denúncia, além de “execuções não registradas, ocultação de cadáveres e desaparecimentos”.

Mais adiante indica que, “para que se tenha uma ideia, em uma favela do Complexo do Alemão, representantes das organizações estiveram em uma casa completamente abandonada. No domingo, 28, houve uma execução sumária de um jovem. Duas semanas depois, a cena do homicídio permanecia da mesma forma, com a casa ainda bagunçada e, ao lado da cama, intacto, uma poça de sangue do menino morto”.

O documento questiona o comandante da Policia Militar do Rio de Janeiro, o coronel Mário Sérgio Duarte, que declarou publicamente que tinha a ordem de “varrer casa por casa” e lembra que os diversos governos cariocas mantém “firme uma mesma visão, que tem por objetivo tipificar como crime a pobreza”. O governador estadual, Sérgio Cabral, qualificou como “um dia histórico” o da ocupação das favelas. Por outro lado, o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é uma das vozes críticas da operação que mobilizou 3 mil efetivos. “Os militares têm uma função de defesa nacional, e a confusão de seu papel é perigosa”, advertiu. Depois, ironizou sobre o que teria acontecido “se a polícia entrasse casa por casa em Ipanema e Copacabana, bairros de classe média e alta na zona sul do Rio de Janeiro”.

O deputado Marcelo Freixo, do PSOL, uma cisão de esquerda do governante PT, afirma que “ter a sensação de segurança é muito diferente de ter segurança”. Segundo aAnistia Internacional, as denúncias do legislador contra o narcotráfico puseram a sua vida em risco. A organização denunciou que existem pistoleiros dispostos a assassiná-lo.

Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, com sede em Porto Alegre, em declarações ao Página/12, definiu como “pura ironia que chamem a operação de Pacificação, quando ela é composta por paraquedistas do Exército e policiais militares. E agora documentos confidenciais do Centro de Inteligência do Exército nos indicam que o tráfico de drogas voltou à região. Mudou o modo de atuação dos traficantes. O relatório indica que homens armados mantêm uma forma móvel de tráfico e utilizam mototáxis que trabalham como observadores dos movimentos das tropas. Também são utilizadas senhas e contrassenhas para a venda de drogas. Com isso, fica em evidência o erro de utilizar os militares em uma ação claramente policial”. A organização de Krischke é uma das que assinou o texto sobre os fatos violentos do Alemão e da Vila Cruzeiro.

“É um escândalo: equipes policiais de diversas corporações, de diversos batalhões, fazem turno em busca de dinheiro, joias, drogas e armas que os delinquentes haviam deixado para trás na fuga”, acusa o duro comunicado que, além disso, menciona a suspeita de uma fuga protagonizada por vários chefes narcotraficantes facilitada pelas forças militares e policiais. Durante a ocupação das favelas, os blindados M113 equipados com armamento de guerra eram conduzidos pelo Exército, enquanto as operações dentro do território tomado (localizado no norte do Rio) ficaram nas mãos da Polícia Militar. “Desta vez, estamos entrando para ganhar a guerra”, gritavam os soldados nas cabines dos tanques que ingressavam no Alemão e na Vila Cruzeiro.

O Brasil, além de suas Forças Armadas, conta com várias polícias em nível nacional e estadual. Em 1978, também foi criado o Batalhão de Operações Especiais – BOPE, que apareceu no Rio de Janeiro como uma força de elite. Sua razão de ser: o incremento do narcotráfico. Ainda em junho de 2007, o Complexo do Alemão, um conjunto de 13 favelas entre as quase mil que existem na cidade, havia sido o cenário de uma megaoperação com 1.400 policiais armados para uma guerra. Os 19 mortos de então ficaram na conta do governo Lula, surgiram várias denúncias por violações aos direitos humanos e houve um relatório final da Secretaria Especial dos Direitos Humanos nacional que falou de assassinatos de pessoas desarmadas. A diferença substancial com os episódios de novembro de 2010 é que as UPPs ainda não haviam sido criadas. Seriam recém concebidas em 2008, depois de uma viagem do governador do Rio de Janeiro à Colômbia, onde visitou Bogotá e Medellín. Cabral voltou à sua cidade estimulado com o modelo que combinava uma forte presença policial e obras de infraestrutura necessárias para combater o crime.

Esse corpo especial entrou nas favelas para ficar e combina repressão e atividades sociais no território. Três milhões de habitantes dos 14 milhões que existem no Rio vivem ali. As UPPs tentam familiarizar-se com seus habitantes, embora as vítimas tenham uma opinião bem diferente da polícia em geral. Para Thereza Cristina Barbosa, mãe de Rosangela Barbosa Alves, a menina de 14 morta com um tiro em plena operação enquanto estudava, “o tiro que atingiu a minha casa veio de baixo. Agora, minha filha está morta, e eu nem sequer posso velar o seu cadáver”, denunciou ao jornal O Dia. Se o tiro veio de baixo, não veio dos morros, onde se refugiavam os criminosos cercados.

A política de segurança para as favelas deixou de consistir em incursões esporádicas às alturas do Rio dominadas pelos narcotraficantes. O Estado começou a se estabelecer ali onde antes o Comando Vermelho ou seus circunstanciais e atuais aliados da organização criminosa Amigos dos Amigos impunham sua lei. Deu o primeiro passo para ficar nesses bairros tão pobres que esqueceu durante décadas.

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