“O descaso com a ocupação de áreas de risco pode ser explicado pelo baixo lucro eleitoral de medida preventiva”, escreve Jânio de Freitas, jornalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 16-01-2011.
“Se a explicação é atual – analisa o jornalista – o descaso é mais que secular. Aceito como parte da vida brasileira, sem reação alguma, jamais. Não houve catástrofe que mudasse a aceitação, sempre fortalecida pelos sentimentos de classe”. Mas, “está claro que não se estranhou, por exemplo, a reivindicação brasileira de fazer a Copa e a Olimpíada, ao custo de dezenas ainda incalculáveis de bilhões”. Eis o artigo.
Às vezes, acontece. A natureza desaba fora do lugar e estende os seus desastres a vales e colinas onde as condições prometiam tudo o que atrai as boas construções desejadas pelo poder aquisitivo. Quando acontece assim, a natureza contraria também o consenso que modelou, com o barro de cinco séculos, o nosso jeito brasileiro.
É a esse consenso, muito mais do que à natureza e ao acaso, que se deve a persistência dos desastres nas áreas de moradias frágeis, sobre terras sempre prontas a escorrer sob o chão batido e a encobrir os tetos e as vidas igualmente improvisados. É ao consenso, e não à mera “irresponsabilidade das ocupações permitidas de áreas de risco”, que se deve o encontro fácil e consentido entre as moradias pobres e a desgraça de desastres.
É certo que prevenir as calamidades da pobreza não dá voto. Mas há lógica em não o fazer. O governante que consente na ocupação de áreas de risco não teria por que voltar-se, em seguida, para a prevenção dos desastres previstos no risco. Seus motivos para o descaso são os mesmos que o poupam de interessar-se por esgotos e saneamento geral das áreas pobres, água tratada, auxílio à saúde, e outras sobras das zonas urbanas de boas classes.
O descaso com o modo de vida da pobreza é parte da nossa história de povo e de país. Os aglomerados de moradias por “ocupação de áreas de risco”, e também os de menores ou outros riscos, são continuadores dos aglomerados de ex-escravos. A libertação não significou o fim da visão racista, não incluiu o reconhecimento reparador da pobreza como dever do Estado, não incutiu sentido humano na aventura a que o ex-escravo seria entregue pela libertação. Já era, então, o descaso de hoje.
Um dos parágrafos duvidosos da historiografia atribui o surgimento do nome “favela” – palavra graciosa de injusto destino – ao aglomerado de barracos, no Rio, dos soldados vindos de Canudos e largados ao relento pelo Exército. Favela, como era chamada (se era) uma fava comum (se havia) na região da guerra. A favela criada no morro da Providência, onde, faz pouco, um tenente do Exército e sua patrulha prenderam três rapazes, vindos de uma festa. Os três cadáveres foram encontrados em um vazadouro de lixo longe do morro. Muito próprio da Providência e dos personagens.
O descaso com a ocupação de áreas de risco, favelas ou lá que denominação se dê, hoje pode ser explicado pelo baixo lucro eleitoral de medidas preventivas e saneadoras. Se a explicação é atual, o descaso é mais que secular. Aceito como parte da vida brasileira, sem reação alguma, jamais. Não houve catástrofe que mudasse a aceitação, sempre fortalecida pelos sentimentos de classe.
Está claro que não se estranhou, por exemplo, a reivindicação brasileira de fazer a Copa e a Olimpíada, ao custo de dezenas ainda incalculáveis de bilhões.
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