A redução da produtividade e da democracia. Entrevista com Ulrich Beck

A globalização é um bumerangue. Ontem, as nossas empresas o lançavam entusiastas rumo às deslocalizações chinesas ou do Leste Europeu, hoje volta para trás e cai na cabeça dos trabalhadores italianos. Um preço que já haviam pago antes, perdendo o posto em favor de operários estrangeiros. Agora, fazem de novo, com a chantagem quase dentro de casa: essa é a nova oferta, pegue ou largue. A reportagem é de Riccardo Staglianò, publicada no jornal La Repubblica, 10-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

É uma pena, observa Ulrich Beck, um dos maiores sociólogos vivos, que essa alternativa brutal seja o remédio para a futura irrelevância da nossa indústria. Porque quanto mais se cortam os direitos, mais se reduz a identificação do funcionário com quem oferece o trabalho. E, em último lugar, se retraem a produtividade e a criatividade, as únicas armas sensatas que nos restam para competir com os países emergentes.

Teorizando sobre a “sociedade do risco”, o estudioso alemão esteve entre os primeiros que nos colocaram em guarda contra a ilusão que os problemas distantes não nos tocassem. Perguntamos-lhe, portanto, agora que coube a Pomigliano e depois a Mirafiori, como o caso Fiat e os seus aparentemente inexoráveis ultimatos nos ajudam a pensar sobre a crescente separação entre capital e democracia. Eis a entrevista.

Já no fim dos anos 80, o senhor escrevia que os riscos globais são os nossos riscos. Hoje, a globalização entra nas nossas fábricas e muda as suas regras. Podemos resistir? E como?

A Fiat é um ótimo exemplo de como a globalização pode ser usada como novo jogo de poder para mudar as regras do poder. Assistimos à emancipação da economia dos vínculos nacionais e democráticos. Os estados do século XIX haviam produzido instituições para reduzir os danos que o capitalismo industrial podia provocar. O matrimônio de então entre poder e política está, porém, acabando em divórcio. O poder é sempre menos democrático, menos legal, mais informal, parcialmente transferido a um capital sempre mais móvel e ao mercado financeiro. E em parte aos indivíduos, que deveriam se proteger sozinhos.

Julgando como as coisas estão andando, não parece muito fácil se defender sozinho…

Certamente não é. Lembro-me de um caso semelhante ocorrido na Alemanha. Em 2001, a Volkswagen queria que os seus operários trabalhassem mais, por um salário menor e com menos direitos. Ou aceitavam entrar em uma newco apropriada, ou deslocariam aquela parte da produção para a Eslováquia ou a Índia. Todos, dos sindicatos ao chanceler social-democrata Gerhard Schröder, julgaram-na como uma ideia maravilhosa. E se congratularam depois por ter evitado aquela hemorragia rumo ao exterior. Vejo, porém, uma diferença importante. Dentro da Volkswagen há um conselho internacional de trabalhadores a ser interpelado todas as vezes que a empresa tenta deslocalizar a países onde o custo do trabalho é mais baixo. Um contrapoder ao management que, mesmo agindo dentro da lei, é sempre menos legitimado com relação à comunidade nacional que o expressa.

Em Risikogesellschaft, o senhor imaginava uma sociedade cosmopolita como “nexo global de responsabilidade em que os indivíduos, e não só os seus representantes, poderão participar diretamente das decisões políticas”. Aqui, porém, assistimos ao oposto. Os trabalhadores não têm nenhuma voz no capítulo. Os políticos, pouca ou nenhuma. É esse o futuro das relações entre capitais e direitos?

Devo admitir que é um bom contraexemplo ao meu otimismo de então. Acredito ainda que os indivíduos, por exemplo, os consumidores com uma consciência política, são um gigante adormecido. Se se reúnem, se se organizam, a sua decisão de comprar ou não comprar alguma coisa pode valer quase mais do que um voto. A mesma ação coordenada pode ser pensada para os trabalhadores. Em escala internacional, há uma competição de sistemas econômicos, e muitos indicam que o chinês é mais eficiente do que o ocidental. Mas o é a despeito da democracia. É preciso inventar outros modelos.

O Ocidente se orgulha de exportar a democracia, quando se utiliza também da ponta da baioneta. Por que não exportamos também a democracia ao mercado do trabalho que caracterizava a nossa civilização?

A democraticidade do capital não se decide mais dentro de uma nação. Essa questão deveria ser enfrentada pela União Europeia. Um dos motivos pelos quais a UE tem tantos problemas para ser aceita pela população é que ela se ocupa só do mercado, por uma perspectiva neoliberal. Se começasse a pensar em como garantir uma segurança social aos trabalhadores dos Estados membros, a sua reputação se favoreceria.

O senhor conhece a objeção dos empresários: para continuar competitivos, é preciso renunciar a alguns direitos. Isso lhe convence?

É um argumento imanente, bom só em contextos limitados. Pensando, pelo contrário, nos trabalhos de mais alta qualificação, aqueles em que podemos ainda ser competitivos, quanto mais se cortam os direitos, mais se reduz a identificação do empregado com a empresa. E com ela a flexibilidade e a criatividade que são úteis para prosperar. No fim, redefinindo Estado e sindicatos em uma dimensão transnacional, as empresas também se dariam conta de que democracia e produtividade são os dois lados da mesma moeda.

Enquanto isso, porém, assistimos a uma desvalorização do trabalho, entendido só como contrapartida de um salário. Antes, ele era também outra coisa, ou seja, um instrumento de dignidade e de liberdade. O que deu errado?

Talvez podemos recuperar de Marx a ideia de internacionalização da classe operária. Mas se quisermos reinventar a política do trabalho no início do século XXI devemos nos dar conta de que vivemos em um mundo policêntrico e tentar novas alianças: entre trabalhadores e consumidores, entre Estados, reorganizando a UE. O que falta nesse debate é uma esquerda não nostálgica do velho welfare state nacional, mas aberta a se tornar a contrapartida do atual capital transnacional.

Neste momento, entre nós, quem critica esse desmoronamento nos direitos é marcado como conservador, como alguém que rema contra o progresso. É assim?

Não, diria que é exatamente o contrário. Nos últimos 10, 20 anos, as políticas neoliberais foram apresentadas como o progresso, mas agora nos damos conta de que são categorias zumbis. Haviam nos prometido “mais mercado, menos pobres”, e ocorreu o oposto. O mesmo com a crise financeira. A visão neoliberal que a Europa também adotou fracassou em toda a sua linha. Deveremos tentar superá-la com uma visão social-democrática. Talvez com um acréscimo ambientalista. E, obviamente, transnacional.

A globalização se rege sobre a deslocalização rumo a países mais econômicos. Assim, as empresas economizam e enriquecem. Mas por que parte desse lucro não é redistribuído, segundo um princípio de vasos comunicantes, também entre os trabalhadores dos países em que essas empresas têm sede?

Em primeiro lugar, porque as companhias são sempre mais globalizadas também no seu interior. BP, hoje, não quer dizer mais British Petroleum, mas sim Beyond Petroleum. Ou seja, uma multinacional que paga os impostos na Suíça e opera em inúmeros Estados. É difícil, portanto, dizer qual é a real sede dessa companhia. Em segundo lugar, porque a redistribuição da riqueza foi tarefa dos Estados nacionais. Só uma União Europeia mais ambiciosa, com um balanço e taxas comuns, poderia enfrentar esse problema. Mas enquanto em Bruxelas reinar a ideologia neoliberal, ela continuará sendo a enésima possibilidade não aproveitada.

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