Operação Xavante: um etnógrafo a serviço da ditadura

Bernardo Carvalho – São Paulo

Esquecido por seus contemporâneos, o controverso etnógrafo Luís Gomes Santos (1941-84), autor de uma tese sobre um suposto “mito da recepção” xavante, teria sido um agente da ditadura incumbido de conciliar cientificamente a cosmogonia ameríndia aos propósitos militares de ocupação da Amazônia.

NÃO É À TOA QUE NINGUÉM, nem professores nem alunos da turma de 65 do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade de Brasília, se lembra dele. Os colegas procurados pela Folha ignoram o seu nome, como se ele realmente nunca tivesse existido. É natural. Com o golpe de 64, Luís Gomes Santos (1941-84) pôs seu trabalho intelectual a serviço dos interesses militares. E, durante mais de cinco anos, escreveu o que o governo quis ler –e divulgar– sobre os índios xavante.

Seu caso não corresponde ao modelo francês exposto por Vincent Debaene, é claro, mas ainda assim diz respeito a um antropólogo que recorreu a um “segundo livro” literário -mais precisamente, de ficção– para se redimir aos olhos da história da farsa que foi sua obra “científica”.

“Mito e Recepção entre os Xavantes”, a obra “científica” do jovem estudante de antropologia, apesar da indignação que causou entre seus pares na época (o livro foi publicado em 1967), já não desperta nenhuma lembrança. É impossível achar um exemplar. E, como quase não há informação (nem memória) sobre Gomes Santos, o pouco que se sabe do livro vem dos comentários desabonadores em dois ou três artigos (um deles, apenas uma nota) de jornal.

MITO DA RECEPÇÃO

Escrito por encomenda dos militares, o livro atribuía aos xavantes mitos incompatíveis com sua organização social e sua cosmogonia. Em especial, o espúrio “mito da recepção” imputava aos xavantes, numa interpretação bastante peculiar de seu espírito guerreiro, a vocação de “se dissolver nos outros”.

Na época, Gomes Santos foi acusado de “incitação sub-reptícia ao genocídio” por um colega (Rui Afonso Siqueira de Moraes, 1940-2007) que viu na impostura da tese um “aval científico” e um sinal verde para o projeto governamental de ocupação da região do cerrado, na fronteira entre Mato Grosso e Goiás, com grandes fazendas de gado.

O mesmo antropólogo acusa o autor de nunca ter feito trabalho de campo na bacia do rio das Mortes. Gomes Santos reivindicava ter descoberto na estrutura da língua Jê falada pelos membros da aldeia, onde dizia ter vivido por mais de oito meses às margens do rio Cristalino, a confirmação da vocação dos índios para o desaparecimento. Siqueira de Moraes viu aí o atestado teórico que justificava a ocupação da região pela pecuária como realização natural e esperada do mito xavante. Como já não há nenhum exemplar da obra, tampouco é possível julgá-la ou avaliar a veracidade dos comentários críticos.

INVOCAÇÃO DO MITO

O que se encontra ainda, com sorte, em sebos e entre vendedores ambulantes de livros usados, é o “segundo livro” de Gomes Santos, o romance “A Invocação do Mito”, de 1972.

Servindo-se de uma linguagem maçante e meramente expositiva para narrar fatos mais adequados ao ritmo eletrizante dos romances de espionagem, o autor nos revela com riqueza de detalhes todos os passos das negociações com militares, políticos e proprietários de terras, a começar por uma reunião improvável no lobby do Hotel Nacional, em Brasília, em julho de 1966.

Gomes Santos entrega, em linguagem pouquíssimo literária, os nomes de todos os envolvidos, entre eles, personalidades da vida pública e política da época.

A única coisa que faz o leitor lembrar que está diante de uma ficção é a volta do autor à aldeia (ou a ida, para os que não acreditam que algum dia ele tivesse feito ali seu trabalho de campo), para exortar os xavantes a atacar Brasília, conforme decidido na reunião do Hotel Nacional.

SUICÍDIO

O ataque sustentaria a ideia da guerra como suicídio (“dissolver-se nos outros”), confirmando a interpretação que Gomes Santos fazia do “mito da recepção” e servindo, por consequência, de justificativa para uma eventual reação militar. O absurdo da ficção, nesse caso, se não for apenas resultado da loucura real do autor, pode ser considerado também um forte elemento do reconhecimento do seu próprio ridículo.

No romance, quando o antropólogo chega à aldeia, os índios se comportam, para sua surpresa, exatamente como ele os descrevera na impostura de sua obra “científica”.

Correspondem a tudo o que escreveu sobre eles, como se representassem no teatro do mundo o papel que ele lhes atribuíra. Já na primeira noite, o antropólogo é convidado a assistir à “cerimônia da recepção”, que supunha ser invenção sua. E começa a fotografar.

Dia após dia, as páginas da tese encomendada pelos militares vão sendo ilustradas, para seu espanto, por rituais que qualquer um saberia que não têm nada a ver com os xavantes. E ele fotografa tudo, nem que seja para provar que não está louco.

NOVA EDIÇÃO

O romance termina, misteriosamente, com Gomes Santos de volta a Brasília, tentando convencer os militares a bancar uma nova edição de seu livro sobre os xavantes, agora com fotos, “para provar que não tinha mentido nem inventado nada”.

O que afinal ele não entende (é essa a moral e a tragédia do romance) é que as fotos não provam nada além do fato de que os índios têm tanto talento para fabular quanto ele.

O leitor há de perguntar onde está, nesse caso brasileiro, a redenção, a compensação ou a autocorreção do “segundo livro”, de acordo com o modelo francês proposto por Vincent Debaene. Mas isso só se a esta altura ainda não tiver entendido que o que acabou de ler não passa de ficção.

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/856630-operacao-xavante-um-etnografo-a-servico-da-ditadura.shtml

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