Essa é a primeira parte de uma série de cinco que documenta a história e sequência das Unidades de Polícia Pacificadora
Patrick Ashcroft e Rachael Hilderbrand – Rio On Watch
O programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro começou no final de 2008. Hoje, unidades estão instaladas em 38 favelas. O programa já foi elogiado por diminuir as taxas de homicídio e por abrir o caminho para a entrada de infraestrutura e programas sociais, mas também foi criticado pela violência policial contínua, violações dos direitos humanos, falta de projetos sociais de acompanhamento e por, no final das contas, não cumprir a promessa de trazer paz às comunidades. Cada favela é única, e com isso cada comunidade tem experimentado um processo de pacificação diferente. O programa tem atravessado diferentes etapas e foi implementado em diferentes regiões do Rio.
Nesta série, o RioOnWatch traça a cronologia do programa de UPPs, desde a primeira unidade “modelo” no Santa Marta em 2008 até a última ocupação nas imensas e complexas favelas da Zona Norte eOeste. As três primeiras unidades da UPP foram instaladas em dezembro de 2008 e fevereiro de 2009 como testes do programa em combate aos traficantes e para tornar essas áreas mais seguras para os moradores, além de instalar serviços públicos que não estavam presentes. Pouco tempo depois, a ocupação das favelas e a redução dos conflitos violentos foi considerado um objetivo urgente de segurança para o Rio na preparação da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
Desde junho de 2009 até abril de 2010, o foco geográfico ficou nas áreas de elite e turísticas da Zona Sul. As primeiras unidades da UPP foram vistas como um sucesso por serem operações mais humanitárias e sem forças policiais corruptas. O resultado foi o boom imobiliário que aconteceu nas regiões aos arredores das favelas já pacificadas. As UPPs se estabeleceram nessas comunidades e com isso deram a imagem de ter conseguido seu objetivo principal: retomar o território que estava em mãos das facções do tráfico. Traficantes poderosos tiveram que fugir, e com eles o uso de armas e a venda de drogas. Embora não seja possível dizer que isso tudo foi completamente erradicado, o fato é que se tornou muito menos ostentoso e que a violência armada diminuiu dramaticamente. Essas implementações levaram à emersão de novos negócios nas comunidades e o aumento do turismo, o que fez que a divisão tradicional da cidade entre a favela e o asfalto (informal e formal) começou a desaparecer, especialmente na Zona Sul. Essas sete primeiras implementações também foram acompanhadas de um forte impulso publicitário, com inaugurações muito difundidas e importantes papéis para mulheres. Enquanto isso, na mídia não houve (ou quase) nenhuma informação negativa.
1. Santa Marta – Zona Sul
Data de instalação: 19 de dezembro de 2008
O Secretário de Segurança do Estado do Rio, José Mariano Beltrame, instalou a primeira UPP em Santa Marta, declarando-o como protótipo para pôr em prática em outras favelas. A invasão policial em Santa Marta, localizada no bairro Botafogo na Zona Sul, teve muita atenção da mídia e, segundo os pesquisadores Nicolas Bautés e Rafael Soares Gonçalves no seu estudo sobre o programa, a favela se tornou o “laboratório e mostruário da política de segurança publica da Policia Militar do Rio de Janeiro”. Santa Marta é considerada uma das principais histórias de sucesso do programa da UPP, talvez porque, como a primeira instalação, recebeu mais atenção do Estado, o que significou policiais melhor preparados. Possivelmente também seja por causa do seu tamanho e topografia, que facilita a imersão da polícia comunitária, ou talvez porque a implementação foi liderada por Priscilla de Oliveira Azevedo, uma policial muito respeitada. Azevedo se tornou rapidamente um dos rostos da pacificação e ganhou amplo reconhecimento pela sua função na comunidade. Tanto é que até recebeu o prêmio Mulher Internacional de Coragem da mão de Hillary Clinton em 2012. A pacificação do Santa Marta (onde a taxa de homicídios tem descido até zero desde a implementação da UPP) tem ajudado a tornar a comunidade um local turístico que gera negócios e também aumenta os preços das casas.
Ponto de Vista de Lideranças Locais:
“A pacificação tem altos e baixos, há momentos que está bem e momentos que não, como quando mudam os policiais e os novos vêm com vícios de outras favelas” – José Mario Hilário dos Santos, Presidente da Associação de Moradores do Santa Marta
“Melhorou, meu filho pode correr. Isso é direito dele! Não é favor (do governo)!” – Repper Fiell, morador, cantor de rap e ativista
2. Cidade de Deus – Zona Oeste
Data de instalação: 16 de fevereiro de 2009
A Cidade de Deus foi a segunda favela a receber a UPP. Sua ocupação foi estratégica pela localização perto da Barra da Tijuca, bairro onde está sendo construído o complexo Olímpico, e pela má reputação internacional que trouxe o filme do mesmo nome em 2002. O processo de pacificação tem sido muito mais complicado na Cidade de Deus, e houve resistência à implementação do programa. Nos meses passados aconteceram dois ataques diferentes à sedes da UPP, e um deles deixou um policial ferido no ombro. As dificuldades encontradas na Cidade de Deus são principalmente devidos a seu tamanho (135.000 habitantes) e a força das facções do tráfico lá. É importante lembrar a história da favela: nasceu como condomínio residencial para os despejados de 23 favelas da Zona Sul (principalmente) durante a ditadura militar e o governo Carlos Lacerda nos anos 60.
Ponto de Vista de Lideranças Locais:
“Acho que a UPP é uma política não destinada à segurança pública das pessoas, mas sim um grande show que só fez com que os movimentos sociais ficassem mais frágeis. Hoje, as instituições comunitárias não falam sobre política. Hoje você vê as UPPs fazendo esporte, assistência médica… Mas a polícia não está aqui para divertir ou ser fofinhos, está aqui para garantir os direitos. Eu vejo a polícia como uma autoridade, e essa autoridade vêm com direitos. Não pode bater o pé na porta das pessoas. Todos estão atrás da UPP mas o que está acontecendo no Rio é uma grande sujeira. Quais são as funções da autoridade?” – Iara Oliveira, moradora e coordenadora da ONG Alfazendo.
3. Batan – Zona Oeste
Data de instalação: 18 de fevereiro de 2009
Batan foi a terceira área a receber a UPP. Veio como resposta a tortura e assassinato de jornalistas de O Dia por membros da milícia na comunidade em 2008. Mais tarde, o episódio foi a base do enredo do filme Tropa de Elite 2. Até recentemente, essa foi a única UPP instalada numa área dominada previamente pela milícia, e a ocupação foi usada muitas vezes como prova de que o alvo das UPPs é tanto as facções criminosas quanto suas próprias facções corruptas. A chegada da UPP preparou o caminho para a chegada de institutos de inclusão social variados. Hoje, Batan conta com uma nova creche, escola e Clínica da Família, que foi aberta ao público em 2012. Esse ano o SESI inaugurou um centro que oferece vários cursos acadêmicos e vocacionais de graça para moradores locais. Esses tipos de programas paralelos são essenciais para que as UPPs sejam efetivas. Em geral, a informação sobre o caso do Batan é positiva, embora em 2014 o sargento da UPP do Batan foi removido do seu posto após admitir ter assassinado um colega. Esse episódio mostra a dificuldade encarada pela instituição policial para tirar a tendência condicionada à violência letal dos seus policiais. A esmagadora mentalidade militar–fortalecida durante a ditadura–ainda perdura, e é responsável pelas violações de direitos humanos cometidos pela Policia Militar.
Ponto de Vista de Moradores Locais:
“O carioca, de um modo geral, estava acostumado a achar a polícia corrupta. Aqui não tem isso, eles (os policiais) não pedem nada, nem desconto. Pagam pelos produtos. É uma nova mentalidade, outra forma de agir, e com isso eles conquistaram a confiança e o respeito da população do Batan” – Edson Velasco, morador e dono de loja
“Tem uma repressão dos jovens. Os jovens são vistos pela polícia como vândalos… que só querem fazer bagunça. Não é uma pessoa… não é um cidadão. Eu acho que eles pensam que todo jovem de favela é bandido… que nasceu para isso. Praticamente é essa a política, que eu entendo, que os policiais pensam a respeito dos jovens” – Carlos Gabriel, morador, 18 anos
4. Babilônia/Chapéu-Mangueira – Zona Sul
Data de instalação: 10 de junho de 2009
Os três primeiros programas da UPP receberam muita cobertura mediática e foram amplamente vistos como um sucesso. As seguintes favelas que receberam as UPPs, entre junho de 2009 e abril de 2010, estavam todas na Zona Sul do Rio. As comunidades vizinhas, Babilônia e Chapéu-Mangueira, receberam a quarta UPP. A sua instalação nessa área resume a experiência das UPP na Zona Sul. Os preços das casas aumentaram dramaticamente devido a sua localização invejável, o turismo cresceu e com isso também aumentou a visibilidade para os estrangeiros, e nasceram novos negócios. Na Babilônia tem acontecido uma emersão do eco-turismo. Houveram episódios esporádicos de violência entre traficantes e policiais da UPP –a mais recente levou ao bloqueio dos moradores de uma rua em Copacabana– mas contudo a violência tem diminuido muito. Como o Edmilson assinala abaixo, possivelmente o impacto mais importante das UPPs tem sido remover, ou pelo menos limitar, o uso ostentoso das armas nas favelas, principalmente entre adolescentes. Essa mudança, embora seja principalmente estética, terá um efeito importante na geração atual de jovens, que cresceram num ambiente onde o controle social e a influência não são mais baseados na exibição de força armada.
Ponto de Vista de Moradores Locais:
“Ah, só de tirar o armamento da favela já foi uma grande coisa. Antes, lembro que adolescentes de 13 ou 14 anos portando fuzis já faziam parte da paisagem do morro”. – Edmílson Carlos da Silva, morador de Babilônia
“A primeira coisa que tem de se desmistificar é que a UPP seria uma nova polícia. Isso é mentira. Não mudou, não é uma polícia de proximidade”. – André Constantine, morador e fundador do Favela Não Se Cala
5. Pavão-Pavãozinho/Cantagalo – Zona Sul
Data de instalação: 23 de dezembro de 2009
A localização do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, no meio da área turística da Zona Sul do Rio, fez com que fosse uma prioridade pacificá-los e tornar as imediações mais seguras. As áreas em volta do Cantagalo/Pavão-Pavãozinho viveram um importante aumento dos preços imobiliários causado pela maior percepção de segurança. Os dois primeiros anos da pacificação foram relativamente tranquilos. Os últimos três, no entanto, foram cheios de histórias de violência policial. Primeiramente, a morte do André de Lima Cardoso Ferreira em junho de 2011, assassinado por dois policiais aparentemente bêbados que não estavam a serviço enquanto o homem ia comprar um cachorro quente para sua namorada grávida. Ainda no ano passado as tensões aumentaram, pois vários conflitos violentos nas duas comunidades deixaram muitos moradores duvidando do mandato da UPP.
Em janeiro, Petrick Costa dos Santos foi morto a tiros durante um confronto com a polícia, e em abril, Douglas Rafael Da Silva Pereira (conhecido como DG), dançarino do programa de TV Esquenta, foi morto a tiros por policiais da UPP durante uma incursão para prender traficantes. Reportagens alegam que Adauto do Nascimento Gonçalves, traficante de alto nível conhecido como Pitbull, voltou à comunidade apesar da presença da UPP, e que o DG foi morto durante o patrulhamento para encontrá-lo. A morte de DG provocou muitos protestos (numa das quais outro morador do Cantagalo recebeu um tiro fatal na cabeça) nas ruas de Copacabana, onde muitas pessoas pediram a remoção da UPP. A experiência do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho destaca a dificuldade que as UPPs encaram para se livrarem das redes criminosas até nas favelas de tamanho pequeno ou médio. Além do retorno do Pitbull, também existem rumores de um aumento de presença militar.
Ponto de Vista de Moradores Locais:
“A violência sempre existiu na comunidade. Mas agora que a polícia a pacificou, essa violência aumentou porque o governo está usando a propaganda. Quando você vê um representante (da polícia) na TV dizendo que bandido bom é bandido morto, mostram o que a policia está fazendo realmente na comunidade”. – Deize Carvalho, moradors do Cantagalo, membro da Rede Contra Violência
“Foi difícil, porque como membro da Associação de Moradores, tive que respeitar a autoridade dos traficantes, mas também ter a certeza de respeitar e obedecer a polícia. Agora que a UPP está na comunidade, é muito pacifica e segura, e muitos dão boas-vindas à sua presença”. – Luiz Bezerra do Nascimento, Presidente do Centro Social de Nossa Senhora Fátima no Cantagalo
6. Tabajaras/Cabritos – Zona Sul
Data de instalação: 14 de janeiro de 2010
Tabajaras e Morro dos Cabritos têm experimentado a faca de dois gumes da UPP. Os aspectos geralmente vistos como positivos podem ser os seguintes: a pacificação trouxe novos moradores à favela e aumentou o movimento no que era uma favela pequena e calma, trazendo mais negócios à comunidade. De qualquer forma, a comunidade está se esforçando para se adaptar a essas mudanças. A Clínica da Família João Barros Barreto chegou ao limites de pacientes, e os problemas com a água e o esgoto têm piorado. Além disso, existe uma preocupação sobre o perigo potencial da expansão desestruturada. Tabajaras é uma das poucas comunidades onde o baile funk é permitido, o que mostra a diversidade entre as UPPs, cada uma dependente da prerrogativa do comandante local. Tabajaras já teve alguns episódios de violência desde a pacificação. Porém, em setembro houveram notícias preocupantes com informações sobre uma batalha emergente na comunidade entre o Comando Vermelho e Amigos dos Amigos.
Ponto de Vista de Moradores Locais:
“Achei uma boa iniciativa e foi muito bom para a comunidade a chegada da UPP. Agora podemos criar nossos filhos e netos com dignidade”. – Waldir, morador do Tabajaras
“A gente via, em outras comunidades, que o comércio as vezes fechava. A pacificação veio para somar, para incentivar a gente a abrir nossa loja. Hoje a gente pode trabalhar com segurança. Muitas vezes, ficamos até tarde, tipo umas 22h”. – Arimar Antonio Linhares, morador do Tabajaras e dono de comércio
7. Providência – Centro
Data de instalação: 26 de abril de 2010
A pacificação da Providência foi estrategicamente planejada para coincidir com a celebração do Fórum Urbano Mundial na Zona Portuária do Rio. Foi vista também como uma medida necessária para garantir a segurança e a viabilidade em longo prazo do projeto de revitalização do Porto, o Porto Maravilha. Depois de dar as boas-vindas relutantemente à UPP (o presidente da Associação de Moradores não compareceu à cerimônia de inauguração), Providência parece ter aceitada a unidade gradualmente e agora desfruta uma relativa satisfação entre os moradores. À princípio, os níveis de violência desceram. O primeiro comandante da Providência, Glauco Schorcht, foi bastante dinâmico na organização de projetos comunitários, e isso, sem dúvida alguma, teve um impacto positivo.
Uma polêmica que sacudiu a Providência foi a demissão do Schorcht em 2012, por envolvimento de policiais no jogo de bicho na comunidade. Porém, depois de ajudar à identificação dos policiais envolvidos no jogo, Schorcht voltou ao seu cargo. Um incidente revelador no ano passado talvez mostre o porque o colocaram de volta na comunidade (o que também mostrou as caras às vezes contraditórias das UPPs): um vídeo mostra um jovem envolvido numa forte discussão com policiais da UPP, e sua mãe grita: “Chame ao Glauco”. Esse tipo de confiança pessoal na polícia teria sido quase impossível cinco anos antes. Porém, nos últimos meses, há tido um aumento no número de tiroteios na comunidade, levando visitantes a necessitar de pedir permissão ao tráfico e polícia para chegar na comunidade.
Ponto de Vista de Moradores Locais:
“Sou a favor do poder público, quando atuando corretamente, dentro da favela. Temos que caminhar de forma legal. Mas nesse projeto tem muita, muita coisa errada”, comenta, “Na rua fica esse ar de dúvida do que vai acontecer em dez minutos. Somos privados de, por exemplo, comemorar aniversário com festa que passe das dez da noite. E ficamos com medo de deixar as crianças sozinhas. Por que com o morro partido à gente sabia o que fazer, pra onde ir. Com esses homens de farda não se sabe como se comportar”. – Eron César dos Santos, morador de Providência
“É uma necessidade ruim. A UPP é uma necessidade ruim. Tinha que acontecer. Eu falo para todo mundo que a UPP chegou para nos proteger da nossa própria polícia. Desde que a UPP entrou, não tem mais tiroteios. Mas por quê? Porque era a polícia que atirava aqui, quando invadiram a comunidade. Se a UPP abandonar e outro grupo de policiais chegar para matar os traficantes, vai começar tudo de novo.” – morador da Providência