Kátia Abreu, a Pelicão do Planalto, por José Ribamar Bessa Freire

Taqui Pra Ti

Pedro Américo. Do sobrenome eu não lembro, mas o nome era Pedro Américo, mais conhecido como Pelicão. Por onde andará o Pelicão? Faz mais de 55 anos que dele não tenho notícias. Seu pai, rico fazendeiro de Roraima, queria porque queria um filho padre e o internou no seminário redentorista de Coari (AM). Sua chegada naquele celeiro de meninos pobres foi espetacular, triunfal. Trazia seis malas cheias de roupa fina e cara, incluindo onze camisas coloridas de um time de futebol, joelheiras e tornozeleiras. Com isso, apesar de ruim de bola, ganhou o lugar de goleiro titular da seleção do seminário.

O apelido surgiu numa sessão de Hora Amadora, organizada a cada semestre, com programação que incluía esquetes teatrais, canto, dança, narrativas e recital de poesia apresentados pelos alunos mais exibidos. Em sua primeira atuação, Pedro Américo, vestindo espalhafatosa camisa de seda estampada de onça, contou a história dramática do pelicão, ave de grande porte, sanguinária, bico comprido, que não encontrando peixes para se alimentar, mata os próprios filhotes e bebe com avidez o sangue deles. Tanta crueldade provocou lágrimas em cascatas no distinto público.

Ninguém ali conhecia aquela história, salvo Aristides, o Xerife, leitor contumaz do Tesouro da Juventude que se apressou em subir ao palco e dizer que estava tudo errado. Não era pelicão. A ave, parente do biguá e do mergulhão, se chamava pelicano. E não matava a prole. A contrário, na falta de comida, furava o próprio peito para extrair o sangue com que alimentava seus filhotes. Morria, dando a vida por suas crias. Por isso, era o símbolo da Paixão de Cristo. Foi aí que Pedro Américo, desmoralizado, levou a maior vaia da paróquia e ficou com o apelido de Pelicão.

Mundo ao revés

No internato de Coari, a palavra Pelicão passou a simbolizar engano, inversão dos fatos, distorção da realidade, o mundo de revestrés. Assim, Pedro Américo, que era um grande “engolidor de frangos”, fazia pose de goleiro elástico capaz de dar voos acrobáticos para pegar a bola lá no ninho da coruja. Era o Castilho do Solimões. Tudo potoca, invencionice, lorota.

Eis o que eu queria dizer: a ministra da Agricultura Kátia Abreu, afilhada de casamento da presidente Dilma, é o próprio pelicão sobrevoando o planalto. Ela não se limita apenas a negar o que existe. Vai além: afirma que a realidade é o contrário daquilo que efetivamente é.

Mal assumiu a pasta, Kátia Abreu declarou em entrevista à Mônica Bérgamo (FSP 5/01) que “não existe mais latifúndio no Brasil”, o que torna desnecessária a reforma agrária, e atribuiu os conflitos fundiários com os índios ao fato de que “eles saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção”, quando a realidade é justamente o contrário. Tudo o que ela diz deve ser lido ao revés.

Mas enquanto Pedro Américo enganou porque estava enganado, Kátia tenta enganar os outros, mas não se engana. A Pelicão do Planalto conhece os dados do Atlas da Terra Brasil (2015), embora ainda inédito, organizado pelo pesquisador da USP/CNPq, Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Baseado nos quatro censos agropecuários já realizados, ele mostra que 175.9 milhões de hectares são improdutivos no Brasil e que 66 mil imóveis considerados improdutivos não atendem aos critérios de uso social da terra (Tatiana Farah – O Globo 9/1/15).

Portanto, o latifúndio não apenas existe, como cresceu enormemente na última década. No primeiro governo Dilma houve um aumento de 2.5% de concentração de terras em grandes propriedades privadas. Dados do próprio INCRA indicam que entre 2010 e 2014 uma área equivalente a três Sergipes passou para as mãos de grandes proprietários. No governo Lula, o aumento foi ainda maior, pulando de 214, 8 milhões em 2003 para 318 milhões de hectares em 2010. Por isso, Kátia Abreu retribuiu o apoio à Dilma e a convidou para ser sua dinda de casamento.

Rainha da motosserra

Quanto aos índios, a Pelicão do Planalto também inverte escandalosamente a questão. Para ela, não são as terras indígenas que estão sendo invadidas pelo agronegócio e pelas fazendas. Os índios é que estão deixando a floresta para “ocupar áreas de produção”. Tal afirmação que beira o cinismo deixou irritado o bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Dom Erwin Kräutler, que chamou a ministra de “rainha da motosserra” e declarou que ela é “ridícula, ao negar o direito dos povos indígenas”.

Sua foto que ocupa meia página da Folha de SP exibe uma Kátia Abreu toda produzida coberta de joias espalhafatosas – relógio, colar, anel, brincos. Ela condena o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e diz que, além da terra, a água também deve ser privatizada, os rios devem se transformar em mercadoria, numa declaração que deixou radiante o governador do Amazonas, José Melo Merenda:
“A presidente [Dilma] inclusive enviará proposta ao Congresso mudando a legislação de hidrovias. Temos vários ‘Mississipi’ maravilhosos. O correto é o governo fazer as hidrovias e depois concessionar para a iniciativa privada tocar”.

Dilma não desautorizou sua ministra, como o fez com o ministro do Planejamento Nelson Barbosa. Quem bancou o Xerife foi o ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, para quem “ignorar ou negar a permanência da desigualdade e a injustiça é uma forma de perpetuá-las. Por isso não basta derrubar as cercas dos latifúndios, mas derrubar as cercas que nos limitam a uma visão individualista e excludente do processo social”. Depois disso, só resta ao distinto público vaiar a Pelicão do Planalto. Com uma ministra dessas, a direita não precisa ganhar eleição.

charge latifundio charlie

P.S. – Je suis Charlie. Solidariedade com os cartunistas assassinados do Charlie Hebdo, jornal que me alimentou semanalmente nos seis anos em que vivi em Paris. Humor, deboche, ironia, chacota, irreverência, gozação se combate com gozação, chacota, ironia, sátira, humor. Não com bombas. “As sociedades saudáveis – escreve David Brooks no New York Times – não suprimem os discursos, mas conferem diferentes graus de legitimidade para diferentes tipos de pessoas”. Com a liberdade de expressão, quem vai sofrer com essa história são os próprios muçulmanos e os Islã diante da onda crescente de xenofobia na Europa. Os dois terroristas deram um tiro no próprio pé.

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