por Djaimilia Pereira de Almeida – Buala*
O meu irmão branco descobriu que éramos de raças diferentes, no jardim-de-infância, aos cinco anos. Chegou a casa de beicinho por eu nunca lho ter contado, dizendo-me «tu afinal és preta e nunca me disseste». Nunca me ocorrera dizer-lhe. Sempre pensei nesta anedota como na descoberta por ele da minha raça e não como na descoberta dele de alguma coisa sobre si mesmo, apesar de a memória do seu desconsolo com a revelação inesperada se confundir retrospectivamente com o seu reconhecimento de que me tinha falhado de algum modo.
Segundo me contou, tal segredo foi-lhe revelado por um colega, um especialista encartado, como qualquer criança de cinco anos, em revelar o que é, em simultâneo, altamente evidente e altamente contra-intuitivo. Porém o que aparenta ser evidência na percepção da raça de uma pessoa — os seus traços físicos e culturais distintivos — pode ser vivido exactamente como uma descoberta contra-intuitiva. Pode acontecer que cheguemos atrasados à nossa raça, apesar de todas as evidências em contrário. O discurso habitual sobre a raça baseia-se, todavia, na presunção de esta ter um valor facial: qualquer coisa que percebemos de imediato sobre quem está à nossa volta. A descoberta do meu irmão aponta num caminho diverso, o de a raça não estar propriamente disponível aos sentidos. Vendo bem, e com igual propriedade, o meu irmão poderia ter chegado a casa vindo do jardim-de-infância e surpreender-me dizendo “tu afinal és branca e nunca me disseste”, coisa que de um modo ou de outro me tem sido repetida muitas vezes ao longo da vida. Assim se explica, poderíamos continuar, que uma pessoa não se aperceba da sua raça, apesar de todos o perceberem com tamanha facilidade.
No episódio do meu irmão, a noção de raça relacionava-se com uma questão de aspecto, de que ele nunca se apercebera. Porém é possível que cheguemos atrasados à nossa raça, como alguém que apenas quando está irreconhecível se apercebe de que de facto envelheceu. Tal como descobrir que se envelheceu, descobrir que se é negro pode não equivaler a descobrirmos seja o que for sobre o nosso aspecto. É neste sentido de um racismo inqualificável afirmar que é para cada um auto-evidente a raça a que pertence, independentemente de vivermos num mundo em que todos parecem ter a certeza absoluta de como se distinguem etnias e culturas.
A descoberta do meu irmão parece descrever uma possibilidade de justiça desejável, a de darmos com o que somos como uma surpresa imprevista, qualquer coisa que nunca havíamos antecipado, como se a sua experiência primordial fosse desejável enquanto princípio social e enquanto uma forma de epifania, e não simplesmente como um resultado do convívio com os outros. O equivalente político da sua perplexidade parece ser o ideal de legislarmos a partir do esquecimento das diferenças que nos distinguem dos outros — um princípio de igualdade de aplicabilidade complexa; e ainda um princípio de justiça quotidiana segundo o qual ajuizamos sobre os outros a partir do esquecimento de tais diferenças. E, no entanto, no teatro privado de cada um, tal carreira de esquecimento representa a possibilidade retrospectivamente lamentável de, ao chegarmos atrasados à nossa raça, chegarmos atrasados a qualquer coisa de essencial sobre nós mesmos.
Sem que o pudesse alguma vez prever, aconteceu-me a certa altura ter-me sido dado viver a descoberta do meu irmão a meu próprio respeito. Não sei dizer se saí do armário nesse momento. Se o seu reconhecimento da minha raça teve para o meu irmão o impacto de uma descoberta, na minha vida tal reconhecimento assemelhou-se a ver uma evidência desmascarada aos meus próprios olhos. Apercebi-me então da minha raça a um terço do caminho, tal como ele me descobriu a mim aos cinco anos.
Chegar atrasado à própria raça pode, contudo, implicar danos práticos importantes. Perante estes danos, a mera ideia de parecenças naturais de aspecto são um pormenor. Se perdi alguma coisa ao chegar atrasada à minha raça, tal significa que esta apenas aparentemente me era acessível. A forma de teimosia que é, por vezes, o quotidiano de um negro na Europa relaciona-se com o modo como, apesar de a sua manifestação física ser em última análise despicienda, a raça de uma pessoa, por esquiva que seja a sua definição, tocar em qualquer coisa de essencial sobre cada um. Tal forma de teimosia não está evidentemente limitada a negros: também é possível que, apesar de tudo apontar nesse sentido, também uma pessoa branca perceba a custo, e tardiamente, que é branca. Não se trata por isso, no caso da descoberta do meu irmão, de ele ter recuperado de uma cegueira aspectual mas de, ao surpreender-me com o facto de que sou negra, ele me ter revelado qualquer coisa de fundamental sobre a pessoa que sou, algo que eu levaria contudo muito tempo a reconhecer. A descoberta do meu irmão foi reveladora porque nada tem que ver com biologia, como de resto pouco tem a raça de uma pessoa.
No discurso sobre formas de desenraizamento na diáspora sobrepõe-se por vezes o que pareceria ser uma forma íntima de cegueira aspectual com o carácter decisivo daquilo que a raça de uma pessoa comporta, apelando-se então a modos de racismo entre iguais e a diferenças e semelhanças físicas para as quais qualquer criança de cinco anos saberia apontar. O negro que ainda não percebeu que é negro é então tratado simplesmente, por negros e brancos, como o negro que gostaria de ser branco o que, não sendo uma impossibilidade, é uma maneira de passar por cima do género de descoberta que estou a tentar descrever. De um ponto de vista pessoal, no entanto, ‘chegar atrasado’ é uma condição muitas vezes afectada precisamente pelo modo como todos os contactos mundanos da pessoa que chega atrasada à sua raça parecem relembrá-la daquilo de que incompreensivelmente continua a esquecer-se. Percebermo-nos como negros parece depender pouco de os outros nos tratarem como negros. Também ninguém se apercebe de que chegou enfim a velho pela frequência com que os outros nos dão o lugar em transportes públicos. A experiência de percebermos que envelhecemos pode não coincidir de forma nenhuma com o modo como somos tratados.
Viver sob teimosia não é o mesmo que viver equivocado, mas sob uma forma de obscuridade a nosso próprio respeito que podendo ser até certo ponto aconselhável é, quando involuntária, uma fonte de sofrimento. A pessoa que chega atrasada à sua raça chega atrasada, com custo pessoal, a alguns dramas da raça. Chegar atrasado à própria pele é apenas estar a caminho da terra prometida de estar bem na própria pele e é, contudo, apesar de outros danos, um privilégio aberto a poucas pessoas. A minha vida em Portugal como uma pessoa negra foi por muito tempo essa carreira de teimosia, privilégio e esquecimento. Se a experiência do meu irmão aponta para um princípio de justiça quotidiana plausível, o facto de eu ter chegado atrasada à minha raça é, pelo contrário, um efeito colateral da igualdade na qual me aconteceu ter a felicidade de ser educada em Portugal e, em certa medida, é um efeito nefasto.
Para uma negra na Europa como sou, descobrir alguma coisa sobre o que se é relacionou-se com a experiência de uma nostalgia continuada em relação a uma pessoa que nunca conheci e que apenas por graça poderia imaginar que poderia ter sido, como se eu desejasse hoje ter percebido que era negra há mais tempo, por absurda que tal ideia possa parecer. O que perdi enquanto não percebi que era negra não foi por isso qualquer coisa de exterior à experiência de percebê-lo. Não perdi parte da minha vida enquanto a negra que sou, mas parte da minha relação com a pessoa que poderia ter sido se o tivesse percebido anteriormente: um monólogo de difícil tradução. Quem não fui é, todavia, uma parte importante de quem sou e, nesse sentido, chegar atrasada ao meu encontro com essa pessoa representa uma forma triste de auto-esquecimento. A via de extinção a que conduz a forma de teimosia a que me refiro, inadvertida e reparável, é tudo o que podemos saber sobre o que existe de essencial quanto à raça a que pertencemos. A pessoa que descobre que é negra a um terço do caminho não sai propriamente do armário a certa altura. O que lhe é dado perceber inadvertidamente é o modo como a raça a que se pertence consiste num modo de se interromper a si mesma. Pertencer à minha raça consiste em não ter pertencido à minha raça desde o princípio.
Eu não poderia ter previsto que a descoberta do meu irmão, que repeti a amigos estes anos todos, pudesse representar um prenúncio do que viria a ser a minha própria percepção da minha raça e, mais do que isso, representasse a síntese de uma possibilidade humana e minoritária: a de chegarmos atrasados a quem somos, a qual pode ligar as nossas jornadas sem percalços às jornadas árduas das pessoas com quem nos parecemos.
Publicado originalmente em Forma de Vida, nº 5
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Foto: Malick Sidibé