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Outro dia, um internauta, possivelmente petista (o que não lhe dá mais ou menos crédito), criticou minhas postagens por serem muito negativas em relação ao PT. Talvez, o internauta não tenha lido minhas notas sobre os outros partidos políticos brasileiros. A questão de fundo é que tenho dúvidas se os partidos políticos – surgidos originalmente no século XVIII – mantêm o poder de representação político-social numa sociedade gelatinosa, móvel, provisória como a atual. As “estruturas totais” do mundo moderno, avalio, desmancham no ar.
Mas, minha breve análise neste texto será sobre o PT.
O que ocorre com o PT, em primeiro lugar, é desgaste de material.
Comecemos pela superfície: os filiados são cada vez mais velhos. Segundo dados da Justiça Eleitoral, desde 2011, a proporção de jovens entre 16 e 34 anos filiados ao PT caiu de 25,7% para 19,2%. Segundo a Folha de S. Paulo, foi a maior redução entre os cinco maiores partidos brasileiros (PT, PMDB, PP, PSDB e PDT). Embora seja um fenômeno generalizado – a redução de jovens filiados atingiu todos os partidos – vale registrar que o PT deixou de ser atrativo como instrumento de inovação.
Na outra ponta, o PSOL parece herdar este poder de atração de jovens: 40,3% de seus filiados estão na faixa etária indicada acima.
Destaco, aqui, três hipóteses explicativas.
A primeira: tantos anos de governo inocularam um espírito conservador no partido que almeja ser dos trabalhadores. Conservador no sentido de conservar o poder conquistado o que, na prática lulista, significou distribuir cargos a partir das correntes em função do seu poder de apoio ao governo. Foi assim com as forças aliadas – tanto partidárias como de órgãos de representação da sociedade civil – e foi assim em relação às correntes internas. Lula, inclusive, motivou disputas acirradas entre correntes internas para conquista de um ministério (eu acompanhei de perto o que ocorreu no início da segunda gestão Lula em relação ao Ministério do Desenvolvimento Agrário) de forma que o empossado assumia o cargo enfraquecido, já acompanhado de sua oposição interna. A estrutura de poder, enfim, enrijeceu a própria luta interna e a vinculou à ocupação de cargos governamentais. Na prática, o PT mergulhou nos escaninhos do poder palaciano e se afastou das disputas reais, longe da Corte, aquelas que ocorriam nas ruas. Perdeu os ouvidos e, logo depois, a musculatura. Assim, se tornou a fonte empírica dos estudos sobre cartelização dos partidos contemporâneos (o conceito de partido cartel foi criado originalmente por Richard Katz e Peter Mair, em meados dos anos 1990), aqueles que sobrevivem à sombra do Estado, tanto para se financiar, como para abastecer suas bases territoriais com políticas públicas. O PT envelheceu porque deixou de ser um elemento da paisagem cotidiana da vida do “homem simples” (roubo o termo de José de Souza Martins). Deixou de montar barracas, de distribuir jornais e abaixo-assinados, de intervir em reuniões de associações de bairro. E tomou gosto pela Corte.
Tais opções de sobrevivência partidária contaminaram o processo decisório do PT. As representações setoriais (como o da juventude) foram se submetendo e se subordinando às estruturas centrais. Esta é a segunda hipótese explicativa para o envelhecimento do PT. A autonomia, palavra usada ao limite do desgaste nas primeiras duas décadas de existência da sigla, foi substituída pela “linha justa”. De tal sorte que os expoentes da juventude petistas passaram a adotar todos os vícios da burocracia partidária: discursos fechados e autistas; vínculos diretos com gabinetes ministeriais e parlamentares; ação privilegiada no campo institucional; palavras de ordem focadas na defesa das estruturas de poder e não nas demandas sociais do segmento que procurava representar; incapacidade de formulação.
Enfim, as estruturas de poder internas tentaram enquadrar a realidade. Mesmo sendo tão óbvio que a realidade é muito mais dinâmica que as instituições, em especial, as partidárias (que em nosso país não merecem a confiança de mais de 5% da população). A rigidez de comando e o alinhamento entre governo, burocracia partidária e militância, esclerosaram este que foi o maior partido da esquerda nacional. Erro, aliás, histórico da esquerda mundial e que o PT tentou refutar quando da sua criação, quase que sendo textual em seu Manifesto de lançamento.
Apenas para constar, Lênin, em novembro de 1920, já sustentava o desastre da burocratização partidária e sugeria um combate a este erro estratégico que denominou de “métodos burocráticos”, sobrepondo os escalões superiores do partido aos escalões superiores estatais (cf. “Nossa situação interna e externa e as Tarefas do Partido”, 21 de novembro de 1920). Esta passou a ser uma obsessão de Lênin. Tanto que em 1922, já afirmava que o pior inimigo interno era o burocrata (cf. “A situação interna e externa da República Soviética”, 6 de março de 1922). Finalmente, no ano seguinte, escreve seu último artigo, “Melhor Poucos Mas Bons”, denuncia os burocratas do partido, remetendo a outro artigo em que afirmava que o Estado Soviético se parecia cada vez mais com o velho aparelho czarista. Neste seu último artigo, chega a sustentar que nada pode ser esperado do comissariado do povo (se referindo à Inspeção Operária e Camponesa). Imagine, leitor, o impacto desta observação para aquele que dedicou sua vida à destruição das estruturas de poder que percebia ressurgir sob seu comando.
O PT “pragmático” da segunda metade dos anos 1990 desconsiderou toda esta história de erros e as repetiu, como abelhas em busca de mel, todos petistas alinhados num verdadeiro “estouro da manada”. O que acabou por transformar o discurso oficial num olhar seletivo e enviesado sobre a realidade, onde a análise rigorosa e longitudinal foi substituída pela eleição de fatos que tinham o mero objetivo de confirmar a “linha justa” adotada pela burocracia partidária. Assim, seus erros foram imputados às distorções dos noticiosos tupiniquins, do conluio do poder judiciário, da traição dos aliados, do cenário internacional desfavorável. O partido, enfim, era cercado por uma comédia de erros em que só sobrava a si mesmo como garantidor da saúde mental nacional. Surpreendentemente, esta lógica ao estilo machadiano (aquele do “O Alienista”) já havia se repetido quando o “Partidão” era liderado por Prestes e até mesmo pelo momento mais claustrofóbico das esquerdas brasileiras, quando algumas organizações se armaram para lutar pelos direitos da massa trabalhadora que os desconhecia. Haveria, enfim, uma necessidade histórica das esquerdas brasileiras saberem enfrentar o desafio de governar sem perder sua alma?
Estas duas situações oriundas de escolhas partidárias – a burocratização que se identifica com o próprio aparelho de Estado e a subordinação das estruturas de representação setorial ao controle central da burocracia partidária – apenas reforçam um problema social que foge ao seu controle: a mudança do ideário de nossa juventude mais engajada. Esta é minha terceira hipótese explicativa do envelhecimento petista.
Os jovens brasileiros sempre emergiram em crises políticas nacionais, desde 1950. Neste século, retornaram com algumas novidades. A primeira, de natureza identitária: não se atraem por partidos, mas por movimentos fluidos, rebeldes, radiculares, móveis e espetaculares. São mais autonomistas que os “caras pintados” dos anos 1990, que seguiam as organizações estudantis. São mais culturalistas, focados em aspectos comportamentais, retomando certa lógica dos jovens do final dos anos 1960 e início dos 1970. O PT teria tudo para atrair esta “nova juventude engajada” em virtude da autonomia ser um de seus princípios fundantes. Mas, como vimos, autonomia como valor ficou para as bibliotecas do partido.
A novidade em relação ao levante da juventude em meio à maior crise política brasileira desde o fim do regime militar é a emergência de um bloco fascista. Parte da juventude tupiniquim não se pauta exclusivamente pela garantia da democracia e ampliação dos direitos sociais.
Esta é uma mostra cabal das dificuldades do PT manter sua tradição e capacidade política original. Em algum momento de sua história recente, perdeu as ruas, seu olhar sobre elas e seu talento para dialogar com elas.
Assim, o partido que governa o Brasil há mais de uma década, até então o maior partido de esquerda da América Latina, aquele que foi considerado o sopro de inovação pela esquerda européia, encontra-se, neste momento, numa situação paradoxal, envelhecido pelo poder que adquiriu e relutante em considerar seus princípios e sua história. Debate-se para se manter onde chegou com discursos sem viço, que evidenciam falta de apuro ou mesmo esforço em tentar convencer. Debate-se como se pressentisse o abate. Não comove. E, pior, vive do passado, da memória afetiva dos mais velhos, assim como viveu por algum tempo o Partido Trabalhista Inglês (e outras agremiações de massas da esquerda internacional). A reação dos dirigentes atuais do PT às manifestações de junho de 2013 já indicava o buraco em que o partido se meteu. De antemão, revelaram que o novo se apresentava como um perigo. O novo, realmente, parece se apresentar como um perigo. Justamente porque o PT envelheceu e, neste momento, inveja os que ameaçam sucedê-lo.