Pelo Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), em População Negra e Saúde
O combate ao racismo enquanto determinante de saúde e produtor de desigualdades e a participação do movimento negro no processo de debate e formulação são alguns dos aspectos positivos da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, em 2006, e instituída por portaria do Ministério da Saúde, em 2009. O longo processo de mobilização para formalização da política, a atuação desses atores sociais na discussão de uma agenda comum e o monitoramento de sua implementação é tema da pesquisa de Marcos Vinícius Ribeiro de Araújo, mestre em Saúde Comunitária e doutor em Saúde Pública (ISC/UFBA), autor da tese “O movimento negro e a política nacional de saúde integral da população negra: heterogeneidade e convergências”, orientada pela professora Carmen Teixeira (CDV/IHAC/UFBA).
“Eu queria entender um pouco como é que, após essa formalização no papel, esses atores vinham atuando, tipo ‘tá bom, nós conseguimos a política. E agora?’. O que eu encontrei foi uma movimentação muito forte desses atores participando de um conjunto de conferências, fazendo formação nos movimentos sociais para o conhecimento da política, ou seja, os atores políticos desse processo não se limitaram somente a levantar uma agenda, apresentar propostas. […] Há uma compreensão do movimento de que o racismo institucional é uma barreira absurda para que a política seja implementada e a principal forma de quebrar essa barreira é fazer com que os movimentos e a população de um modo geral se apropriem desse debate e cobrem a implementação dessa política”.
Para o pesquisador, a política de saúde da população negra é um “super avanço”, na medida em que incorpora “o que há de mais avançado sob o ponto de vista do acúmulo do movimento negro, que é o combate ao racismo e o racismo como produtor dessas desigualdades sociais e raciais que geram esse quadro sanitário”, e também pretende chamar a atenção para a realidade brasileira. “Eu poderia dizer: olhem para o Brasil, olhem quem nós somos, olhem como nós estamos. Como é que vai pensar quadro sanitário sem pensar que país é esse?”.
Apesar de reconhecer os avanços, Marcos não nega as lacunas e pontos fracos das políticas. “Esse tema é, pela sua essência, intersetorial porque a raiz dele é o racismo e o racismo não se resolve setorialmente. Por exemplo, eu não vou ter profissionais de saúde que compreendam a questão da necessidade da equidade social como parte da promoção da saúde se eu não faço o enfrentamento, a mudança da lógica no modelo de atenção, a mudança da lógica social de compreensão do que é a história do negro no Brasil, qual é o papel do negro na formação desse país, as desvantagens que os negros sofreram, a inserção subalterna que foi imposta aos negros nesse país. […] Porque que no Brasil nós somos permissivos com a escravidão? Porque que os negros continuam sendo motivo de piada?”.
Lugar no Sistema Único de Saúde (SUS)
Outro ponto destacado pelo pesquisador é a necessidade de rever o lugar da política no SUS. O conteúdo principal da política de saúde da população negra é o enfrentamento ao racismo na saúde e às suas diversas expressões, principalmente o racismo institucional cuja influência vai da elaboração e formulação de política até a atuação dos profissionais nos serviços de saúde. Para Marcos Vinícius, essa amplitude faz com que a política precise ser alçada a outro patamar. “É como se fôssemos todos iguais, é como se o racismo não tivesse nenhum impacto sobre as diferenças socioeconômicas do ponto de vista da produção de saúde, parece que não existe isso. […] Há esse processo de invisibilidade, a altura em que está colocada essa política. Para o nível de enfrentamento que a política se propõe a fazer, ela necessita estar numa melhor localização dentro do arcabouço do Estado brasileiro”.
Se o caso específico de Salvador, umas das cidades brasileiras com maior população negra, for analisado como exemplo, a trajetória de incorporação da temática no SUS começa com pioneirismo e termina em retrocesso. Ainda em 2005, a política começou a ser formulada na capital baiana a partir da articulação com entidades locais. A construção da ‘Política de Saúde da População Negra’ foi marcada pela participação de atores e representantes de movimentos vinculados às questões raciais, que trabalharam em conjunto com o Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra, criado no âmbito da Secretaria Municipal de Saúde. Contudo, a sucessão de gestores municipais de saúde afetou esse trabalho e levou a um retrocesso da política no SUS, em Salvador.
“O que nós identificamos é que, em Salvador, havia atores políticos que estavam extremamente vinculados a esse movimento nacional, estavam filiados a essa ideia nacional de saúde da população negra e isso se combinou com uma gestão que favoreceu politicamente que esse tema fosse colocado na agenda. […] Nós tivemos um auge desse processo e depois as sucessivas gestões municipais foram acabando com ela. Por exemplo, em 2005, quando eu fiz essa pesquisa, o grupo responsável pela condução da política era uma assessoria especial diretamente vinculada ao secretário de saúde, para ver o grau da importância. Hoje se resume a uma ou duas pessoas diluídas dentro de uma outra modelagem organizativa e que tem um papel extremamente secundário, infelizmente”.
Histórico de mobilização
Marcos explica que as questões raciais sempre estiveram presentes no debate público, mas, a partir da década de 1980 a discussão ganha outra orientação, diferente da perspectiva higienista que predomina na saúde pública no início do século XX. Nesse período, “a efervescência do movimento pela redemocratização respinga sobre o movimento negro” e surge o movimento negro unificado, com destaque para o protagonismo das mulheres negras, trazendo a discussão sobre os direitos reprodutivos e combate aos processos de esterilização em massa e opressão das mulheres negras no Brasil.
“É importante falar que do ponto de vista acadêmico, da produção científica, não existe até agora nenhum estudo que tenha investigado a participação das organizações do movimento negro naquele período da década de 80, momento mais efusivo da Reforma Sanitária e da Constituição de 88. […] Não quer dizer que não havia mobilização do movimento negro nesse processo, a mobilização das mulheres negras, sobretudo a partir da década de 80, vinculada à discussão dos direitos reprodutivos, é um marco do ponto de vista das primeiras formulações sobre a questão racial sob uma outra perspectiva”.
Na década de 1990 essa movimentação ganha força com a Marcha do Zumbi dos Palmares (1995), a inserção de questões de saúde voltadas para a população negra na agenda do Estado, a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial e a realização da mesa-redonda “Saúde da população negra”. “Essa mesa-redonda, que é o primeiro marco institucional com a conformação desse nome ‘saúde da população negra’, ainda traz muito uma perspectiva de quais são as doenças que afetam os negros, quais doenças prevalentes sobre população negra, tentando encontrar inclusive causas genéticas para essas doenças”, lembra Marcos. Em 2001, com o debate em torno da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial e Xenofobia, em Durban, na África do Sul, a agenda ganha outra perspectiva de formulação, com maior atenção ao tema do racismo. “Passa a ter um peso muito forte sobre o tema do racismo como um determinante social, o racismo enquanto produtor de desigualdades sociais e raciais e que desenha esse quadro sanitário da população negra, sobretudo no Brasil”, explica.
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