Diante da atual conjuntura e de um ano que não acabará, é hora de superar a esperança
A esperança é consenso. Ao mesmo tempo amálgama, exortação e virtude. Aquele que acusa o outro de causar desesperança apresenta-se, ele mesmo, como um portador de esperança. Jamais, sob hipótese alguma, um desesperançado. O desesperançado é um pária político, é um pária social, é até mesmo um pária doméstico. O desesperançado não teria nada a oferecer a si mesmo, ao outro ou ao país. Só encontra alguma compaixão se, em vez de desesperançado, acatar o diagnóstico de “depressivo” e passar a consumir drogas lícitas para se “curar”. Aí, já não é mais desesperançado, mas “doente”. Para o doente, há perdão.
A esperança é a crença que une todos os credos, inclusive a falta de credo. Exige fé e, portanto, adesão. Se você a nega, torna-se um risco para todos os crentes.
Quero aqui fazer uma defesa da desesperança, neste momento tão agudo do Brasil.
Antes, algumas considerações sobre o abismo.
1. A falsa polarização
O ato contra o impedimento de Dilma Rousseff (PT) colocou mais gente nas ruas do Brasil que o ato a favor do impedimento. Nesse enfrentamento pontual, os “contra o golpe” venceram os “a favor do impeachment”. Entre “a favor do impeachment” e “contra o golpe”, onde estamos? No reino da falsa polarização, que só serve para reduzir a política e encobrir o buraco maior, aquele que continuará bem aqui, com ou sem o impedimento da presidente. É aí que reside a obscenidade.
O país parece condenado a reencenar a polarização, como uma espécie de encantamento macabro, um looping maldito. De certo modo, o que acontece agora, com o tema do impedimento, é um revival da campanha eleitoral de 2014. Dilma ganhou de Aécio Neves (PSDB) por uma margem pequena. Possivelmente teria perdido, não fosse o voto útil ou o voto crítico de parte da esquerda que, apesar de não ter nenhum respeito pelo seu primeiro mandato, acreditou que ela era a opção menos ruim. Ou acreditou na famosa “guinada à esquerda”.
Naquele momento, as redes sociais tinham se transformado numa carnificina, voavam pedaços de esquerda para todos os lados. Quem não apoiava Dilma era considerado “traidor”. Amigos romperam, casamentos balançaram, tornara-se difícil andar por qualquer rua, virtual ou concreta, sem sair com a alma ou com o corpo esfolado. Há quem chegue ao Natal do ano seguinte sem ter se reconciliado. Ainda assim, Dilma ganhou. E ainda assim 37 milhões – a soma dos votos nulos e brancos e das abstenções – não votaram nem em Dilma nem em Aécio. A tese da polarização oculta diferenças e complexidades, torna homogêneo o que não é. Falsifica a conjuntura do país. Escrevi sobre isso no artigo intitulado “A mais maldita das heranças do PT”, publicado após a primeira manifestação contra Dilma Rousseff e o partido, em março de 2015.
Hoje, há gente no próprio PT que lamenta a vitória, convicta de que o melhor seria ter mentido menos na campanha, mesmo à custa de uma derrota, e se recompor na oposição para 2018. Há quem acredite que teria sido melhor para o PT e melhor para o país, que poderia se beneficiar mais com o partido na oposição do que no poder. Mas, como se sabe, o “e se” não serve para nada.
“Há hoje duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo de Dilma Rousseff”
Ao final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, o pior primeiro ano de qualquer governo, pelo menos desde a redemocratização do país, a falsa polarização é reeditada em torno do “a favor do impeachment” versus “contra o golpe”. Tem acontecido algumas escaramuças nas redes sociais, tanto à direita quanto à esquerda. À direita, porque parte não aderiu à tese do impedimento por conta de vários fatores, entre eles o fato de que o comandante do processo é Eduardo Cunha, nossa versão particular de um vilão do Batman. À esquerda, porque muitos consideram impossível defender o governo de Dilma Rousseff. Ensaiou-se um “traidor” aqui, outro lá, aos que se recusaram a engrossar as fileiras do “a favor do impeachment” ou do “contra o golpe”, mas com muito menos convicção do que na campanha eleitoral. Uma frase que circula nas redes talvez resuma o impasse da parcela da sociedade que desafia a polarização: “Há hoje duas coisas indefensáveis: o impeachment e o governo de Dilma Rousseff”.
Ainda assim, parte dos movimentos sociais foi às ruas defender a bandeira de que o impedimento é um golpe disfarçado, para que a presidente compreendesse, finalmente, “quem estava com ela”. A tal “guinada à esquerda”. A queda de Joaquim Levy do Ministério da Fazenda é comemorada por alguns setores como um primeiro resultado desse apoio. Mas o histórico de Dilma Rousseff não é bom neste quesito. A cada vez que a coisa aperta, seja quando corria o risco de perder a eleição, ou agora, quando corre o risco de ser tirada do poder por impedimento, dá para ouvir o grito: “Chama os movimentos sociais pra defender o governo!”.
Com eles, torna-se possível apresentar a narrativa como uma luta entre forças conservadoras contra progressistas. Se valerem as experiências anteriores, em seguida a presidente esquece-se de que precisa conversar com as bases. Dilma é tão explícita na sua falta de paciência que, no discurso de vitória, em 2014, irritou-se com aqueles que, depois de terem dado o sangue na eleição (em alguns casos literalmente), interrompiam sua fala com aplausos e gritos de comemoração.
A realidade, porém, não se reduz ao pastiche que querem fazer dela.
2. Restou governo para ser defendido?
A pergunta mais difícil para quem não adere à tese do impeachment é: há governo a ser defendido? O que se perde, de fato, sem Dilma Rousseff na presidência?
A questão da legalidade, convém deixar explícito, não é pequena. Dilma venceu a eleição, e quem não está gostando vai ter de esperar a próxima para mudar o governante. Essa é uma lição importante da democracia: mesmo descobrindo que seu voto foi um desastre é preciso se responsabilizar por ele como gente grande. Mesmo perdendo, é preciso respeitar o voto da maioria. Respeitar essa regra básica é fundamental, mais ainda para uma democracia tão frágil como a brasileira. Há dúvidas consideráveis sobre a legitimidade das razões alegadas para um impedimento, do ponto de vista legal. E, ainda que se saiba que um impedimento é um rito muito mais político do que legal, vale a pena repetir que isso não é pouco nem é menor. O impedimento de um presidente é algo sério demais para não haver um consenso mínimo sobre a legitimidade do pleito, como havia no caso de Fernando Collor de Mello. Ao ampliar-se ainda mais as fissuras, em lugar do enfrentamento honesto de nossos conflitos históricos, pode se tornar mais difícil para o país seguir adiante.
Como defender o governo, se já não há governo para ser defendido?
Dito isso, vale a pena se deter sobre a pergunta: o que restou desse governo e dessa presidente? Para se manter no poder, Dilma Rousseff e o PT fizeram concessões além de qualquer limite, romperam a barreira da decência. Não entregaram tudo, mas quase. Dá para escrever vários livros sobre o balcão de chantagens em que foi negociado o inegociável, temas cruciais para o país comercializados como se fossem salsichas. No vale-tudo ao qual o PT se atirou diante da possibilidade concreta de perder o poder, o PT perdeu o governo. Não todo, mas é possível que tenha chegado ao ponto do não retorno. Assim, o final de 2015 desvela um cenário trágico: defender o quê, afinal? Como defender o governo se já não há governo para ser defendido?
Este é um dilema que tem tirado o sono e a razão mesmo de militantes fiéis. Talvez o exemplo mais emblemático seja a entrega do Ministério da Saúde ao PMDB na última reforma ministerial, feita sob medida para ter apoio num Congresso hostil, em que mesmo os bagrinhos viraram tubarões diante do cheiro do sangue. Não só o ministério de maior orçamento, como um ministério estratégico para políticas públicas essenciais e para o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual dependem dezenas de milhões de brasileiros para viver em vez de morrer. Um ministério estratégico para causas muito caras ao PT, aquelas de identidade, as que foram a própria razão de existir do partido.
Os efeitos do desmantelamento do ministério e das políticas públicas em curso na área da saúde, para ficar apenas neste caso entre tantos, só começam a aparecer. Em 10 de dezembro, o novo ministro da Saúde, o psiquiatra Marcelo Castro (PMDB), nomeou para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas um nome que muitos acreditavam enterrado num passado sombrio: Valencius Wurch Duarte Filho. Sem deixar de reconhecer os limites da reforma psiquiátrica, que até hoje não foi concluída, a escolha de Wurch é um escárnio. Por si só já configura, simbolicamente, um retrocesso de pelo menos duas décadas. Wurch foi diretor nos anos 90 da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, no Rio de Janeiro, apontada como o maior manicômio privado da América Latina. Depois de várias denúncias de violações de direitos humanos ao longo dos anos, no contexto da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, o hospício finalmente foi fechado, em 2012. As cenas encontradas lá evocavam um campo de concentração.
A Ciência é como Deus. Na falta de argumento, há sempre quem chame uma ou outro
Mas eis que o passado é esquecido – ou lembrado? – e Valencius Wurch reaparece em 2015 não mais no comando de um manicômio, mas de algo muito maior, ao ser nomeado para comandar a pasta que determina a política de saúde mental do país. Diante dos protestos em vários estados e capitais do Brasil e também de figuras de referência internacional na área, o ministro Marcelo Castro invocou a “Ciência”. A Ciência é como Deus. Na falta de argumento, há sempre quem chame uma ou outro.
No campo minado – e altamente lucrativo, tanto para quem ganha dinheiro com internações psiquiátricas como para a indústria farmacêutica –, é comum uma parcela dos psiquiatras lançarem mão da “Ciência” para defender seu feudo diante do avanço de outras abordagens sobre o sofrimento psíquico. Desta vez, invocar a “Ciência” ou uma escolha “técnica” não funcionou, já que o desempenho “científico” de Wurch é pífio e o de seu antecessor destituído, Roberto Tykanori Kinoshita, bastante vistoso. Funcionários, pacientes e familiares ocuparam as salas da saúde mental no ministério como ato de resistência.
A escolha de um ex-diretor de manicômio para o maior cargo da área da saúde mental revela que hoje, em Brasília, quando todos os limites já foram superados, impera a certeza de que é possível dizer e fazer qualquer coisa e seguir incólume. Mas há um aspecto interessante nesta escolha do ministro que levou o ministério no balcão das chantagens: diante da perversão de sua própria nomeação, nada mais lógico do que chamar um diretor de hospício. Afinal, a escolha de Valencius Wurch pode ter sido apenas um ato-falho do psiquiatra.
Há exemplos como este em várias áreas caras à história do PT, e hoje os focos de resistência onde ainda restam alguns princípios de base são cada vez mais escassos. Mesmo que o impedimento não se concretize, e mesmo que Dilma Rousseff termine o mandato para o qual foi eleita, parece uma possibilidade remota na atual conjuntura que ela recupere o poder de fato. E também não se sabe o que restou do PT, no sentido daquilo que fez o PT representar o projeto político de pelo menos duas gerações de esquerda.
Políticas públicas como as que eram levadas adiante na área de saúde mental, para ficar no mesmo exemplo, era no que muitos se agarravam para dizer que ainda fazia diferença um governo do PT. Se até isso foi vendido no balcão de salsichas, o que sobra? Qual é o porquê? Se em nome da “governabilidade” perdeu-se o governo, a pergunta é séria e também honesta: restou algo para defender?
3) Quando havia um governo, ele era defensável?
Esta é uma questão ainda mais espinhosa. E não há uma resposta fácil – nem de “sim” ou “não”. Acredito que o Brasil, em muitos aspectos, é melhor depois do PT. Mas é possível dizer que, em vez de enfrentar conflitos históricos, estruturais, do país, a opção do PT no poder, com algumas exceções, foi por acomodá-los. E a acomodação é sempre temporária. Pode-se simplificar (espero que não demais), dizendo que a questão central no Brasil hoje continua a ser a de que, para diminuir a desigualdade, será necessário tocar nos privilégios. Não só econômicos e sociais, mas também culturais. As elites terão de perder – bem mais do que o “direito” de não ter um pobre e preto ao seu lado no avião.
Lula, o conciliador, tentou fazer uma mágica, aquela que todos ganham sem que ninguém tenha de perder. Financiou essa mágica com as commodities e um irrecuperável custo-natureza. A mágica se esgotou, o encanto se desfez. E o Brasil, mais violento hoje, também porque mais gente tem o que perder – e está correndo o risco de perder –, encontra-se diante de sua chaga histórica, que pode ser resumida por um frase que virou quase um mantra: “Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.
O PT não fez reforma agrária nem tocou na renda dos mais ricos. O desempenho na demarcação de terras indígenas foi vergonhoso, em especial com Dilma Rousseff. O PT também recuou ao enfrentar temas como aborto, homofobia e drogas. E avançou muito pouco no flagelo nacional, fator fundamental de desigualdade, a educação. O slogan “Pátria Educadora”, deste mandato, já nasceu morto pelas mãos dos marqueteiros. A própria ascensão do que se convencionou chamar de “nova classe média” ou “classe C”, na medida de uma inclusão não só, mas principalmente pelo consumo, começa a ficar comprometida pela crise econômica. E o Bolsa Família, obrigatório diante da indigência criminosa de parte da população brasileira, avançou pouco para além da política compensatória.
Isso não significa deixar de reconhecer os avanços de um governo petista, no tempo em que o PT governou. É possível pensar que a ampliação do debate fundamental sobre o racismo, hoje colocado em outros termos, se deve muito ao protagonismo da primeira geração de negros que alcançou a universidade pelas cotas raciais. Parte dos movimentos políticos que hoje emergem, inclusive confrontando a política partidária, podem ser pensados (também) a partir da experiência de inclusão assegurada por ações afirmativas. Não há dúvida de que hoje uma parte da população que tinha pouco a perder tem mais a perder – e quer mais.
É possível defender um governo e um partido que se corrompeu, mesmo que tenha feito avanços importantes para o país?
A percepção destes avanços, porém, tem sido corroída pela crise política e econômica. Isso fica claro, por exemplo, numa recente pesquisa do Datafolha, ao mostrar que, concretamente, a renda de todos os brasileiros melhorou consideravelmente nos 13 anos do PT. Todos ganharam, mas os mais pobres ganharam mais (129%). Ainda assim, apenas 31% dos brasileiros reconhecem que sua vida melhorou. Essa é a tragédia do partido. Ou uma delas. Perderam, pelo menos temporariamente, a batalha da memória.
A corrupção, por sua vez, não é um dado menor. É fato que ela atravessa a maioria dos partidos brasileiros, como o Mensalão Mineiro, do PSDB, finalmente começa a mostrar – e as investigações da Lava Jato já provaram. Mas também é fato que do PT, que se apresentava como aquele que restauraria a ética na política, se exige, com toda a justiça, muito mais.
É possível defender um partido – e o governo de um partido que se corrompeu ao ser governo –, mesmo que tenha feito avanços importantes para o país? Ou este é um limite ético? Desta pergunta, incômoda, não dá para escapar nem tergiversar.
Mas é na opção pelo tipo de desenvolvimento que o PT se torna, para parte da esquerda, mas não só, indefensável. Toda anatomia que agora se desvela tem sido denunciada por lideranças na Amazônia há muitos anos, quando Lula e depois Dilma estavam no auge da sua popularidade. E recebida com ouvidos surdos, por que quem se importa com os gritos de indígenas e ribeirinhos, afinal? Quem se importa com o que acontece lá na floresta e nas cidades corroídas da região que sempre foi vista pelo centro-sul como um corpo para exploração e exportação de matérias-primas?
É na Amazônia que as contradições do PT no poder se revelaram em toda a sua complexidade e muito mais cedo
O olhar histórico do centro político-econômico do Brasil sobre a Amazônia é o do colonizador, e ainda hoje não mudou. O projeto de Lula e de Dilma para a região revelou-se muito semelhante ao da ditadura militar. A política das grandes obras, na aliança com as grandes empreiteiras que ocupam Brasília desde que a construíram, tem na Usina Hidrelétrica de Belo Monte a sua síntese maior, ainda por ser inteiramente desvendada. É também lá que os mais desamparados foram jogados para fora da lei. E é lá que o processo de conversão de indígenas e ribeirinhos em pobres nas periferias urbanas levanta questões sobre a visão de mundo do partido. É lá ainda, bem longe do centro-sul, que as contradições do PT no poder se revelaram em toda a sua complexidade e muito mais cedo.
Me refiro à Amazônia, mas vale a pena olhar com atenção também para o Nordeste e mais especificamente para a transposição do Rio São Francisco, como obra-símbolo de uma visão de mundo sem nenhuma sensibilidade socioambiental, nenhuma escuta dos que lá vivem, nenhum respeito pelo conhecimento de uma população reduzida pelo poder público a objeto.
Esta é a pergunta mais complicada. Agora não mais o que o PT abriu mão com a justificativa – questionável – da “governabilidade”, uma palavra que foi se tornando mais e mais obscena. Mas a pergunta sobre o que o PT efetivamente escolheu quando tinha todo o capital político para governar.
4) Há fundo no poço sem fundo?
Tem se afirmado que 2015 foi um ano de paralisia. Antes fosse. Andar para trás ainda é andar. O ano de 2015 foi de retrocesso acelerado, e não só no aumento do desemprego e da inflação, ou na queda do PIB. basta ver todos os projetos colocados em pauta graças a Eduardo Cunha e à Bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala), sem contar o terrorismo da lei antiterrorismo. Em 2015 se perdeu muito. Conquistas históricas dos trabalhadores foram atingidas. Chantageou-se com a legislação ambiental, ameaçou-se os direitos constitucionais dos indígenas, atacou-se a saúde reprodutiva, retomou-se um conceito de família da Bíblia. E a Licença de Operação de Belo Monte saiu sem o cumprimento de condicionantes.
Andar para trás ainda é andar. E 2015 foi um ano de retrocesso acelerado
O ano de 2015 foi também aquele em que as alternativas do espectro político-partidário, que já eram escassas, se arruinaram. Ao embarcar na chantagem do impeachment, compactuando com uma figura sinistra como Eduardo Cunha e fazendo declarações vergonhosas, o PSDB e seus próceres se apequenaram. Mesmo Fernando Henrique Cardoso, que sustentava um lugar simbólico de alguma respeitabilidade, manchou sua imagem. Geraldo Alckmin, Aécio Neves e José Serra perderam qualquer pudor ao escancarar que o impeachment ganhava legitimidade ou não conforme seus respectivos projetos de poder. Algo como “a medida sou eu”.
Com esse comportamento constrangedor, o PSDB, que já tinha perdido muito do respeito que chegou a ter em anos (bem) passados, quando era considerado uma alternativa de centro-esquerda, revelou que apodrece. Restou, como reserva ética, Marina Silva. Mas Marina saiu da campanha de 2014 desgastada, tanto pelos ataques abaixo da linha da cintura do PT quanto por seus próprios erros e contradições – e a Rede, partido que finalmente conseguiu viabilizar, nasceu sem o capital de novidade de quando foi lançada. Se Marina, que até hoje não conseguiu ecoar entre os mais pobres, ainda é capaz de representar uma alternativa para uma parte suficiente dos brasileiros é uma incógnita.
Se a opção imediata é um governo do PMDB de Michel Temer, o vice que entrega cartas “pedalando”, e se a alternativa à chantagem do pemedebista Eduardo Cunha é a do pemedebista Renan Calheiros, pelo menos até a Lava Jato alcançar o presidente nada probo do Senado, o Brasil não chegou ao fundo do poço porque os dias têm provado que o poço não tem fundo.
Qual é o projeto político capaz de enfrentar as velhas forças que se rearranjam para manter tudo como sempre foi?
O problema é menos o agora, e mais o depois. O impasse, como já escrevi, é infinitamente maior do que o impedimento ou não de Dilma Rousseff. Se fosse disso que se trata, seria até fácil. O drama maior, porém, é aquele que não acaba nem com Dilma ficando, nem com Dilma saindo. A tragédia é que neste teatro sobram vilões e faltam virtudes. O abismo é o país que por tantas gerações se viu como um futuro que nunca chegava, acreditou ter finalmente alcançado o presente e descobre-se atolado no passado.
Qual é o projeto político, de fato político, e não meramente um projeto de poder, para o presente-futuro do Brasil? Qual é o projeto político capaz de enfrentar as velhas forças que se rearranjam para manter tudo como sempre foi?
Este é o desafio para o qual não parece haver respostas convincentes. Por isso a sensação de que 2015 não vai acabar nunca – ou pelo menos vai levar muitos anos para acabar. Não é só uma questão de resgatar a política, no seu sentido amplo e profundo, como diálogo entre diferentes no espaço público, mas de criar uma nova política.
Mas como?
Diante do tamanho do abismo, me arrisco a apenas três afirmações que dizem respeito aos temas que acompanho como jornalista. Não há projeto de fato sem enfrentá-las. A primeira é a de que este país não pode mais adiar seus conflitos históricos: entre os principais, o racismo. A segunda é que não se enfrentará nem o racismo nem a desigualdade nem a violência nem a tragédia educacional, intimamente interligados que são, sem que as elites econômicas, políticas, sociais e também culturais compreendam que vão precisar perder privilégios. E não me refiro apenas à renda, mas perder privilégios menos contabilizáveis, que talvez sejam até mais difíceis, como o de falar sozinho, por exemplo, ou o de ter razão sozinho, ou o de estabelecer os limites até onde é permitido questionar os próprios privilégios. Privilégios mais sutis, daqueles que nem mesmo se acha que são privilégios, tão assimilados estão, que têm sido colocados à prova em embates do feminismo e do próprio racismo neste último ano. Ninguém – ninguém mesmo – está fora disso. E o terceiro é que não há saída sem sensibilidade socioambiental, que passa por reconhecer o conhecimento e a riqueza das experiências dos povos tradicionais. Não apenas para deter os vários etnocídios em curso, assim como encontrar maneiras para fazer o diálogo entre os Brasis, mas também para encontrar caminhos diante dos enormes desafios representados pela mudança climática.
5) A desesperança como imperativo ético
Agora, de volta ao princípio. Ou à ideia mais dura deste artigo, também a de maior potência.
Este é um país em que se declarar sem esperança é visto como uma falha de caráter, uma traição ao coletivo e a si mesmo. Como assim, você não tem esperança? A esperança é como a felicidade na lógica capitalista: objeto de consumo que mede o sucesso de uma vida. Esperança é palavra invocada por todos os lados na atual conjuntura do Brasil. Seja de forma espontânea, seja como construção marqueteira. Conforme a posição daquele que a evoca, a esperança seria algo a ser recuperado, tanto para o partido que perdeu o país recuperar seu lugar, como para o país recuperar a si mesmo. Esse resgate de um e de outro passaria pelo resgate da esperança. Mas também desponta como palavra de acusação ao PT, o partido que teria sequestrado a esperança dessa enigmática entidade a que se dá o nome de “povo brasileiro”. A reposição da esperança, e de quem a pode repor, supondo-se que perdida está, é campo de disputa. O que une essas tantas narrativas é de que seria ela, a esperança, aquela capaz de recosturar o tecido rasgado chamado Brasil.
Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança e fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem acreditar
A esperança como conceito alcança no Brasil suas próprias particularidades, que ainda merecem ser investigadas com maior profundidade. Como invocação, ela tem um lugar estratégico nos 13 anos do PT no poder. Marca a primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002: “a esperança para vencer o medo”. Era uma reação à afirmação da atriz Regina Duarte, no programa do oponente, o PSDB, ao dizer que tinha medo de uma vitória do petista. No pleito de 2014, para a reeleição de Dilma Rousseff, Lula afirmou: “Agora temos de fazer uma campanha para a esperança vencer o ódio”. Em 2015, um dos programas do PT, assombrado pela presidente mais impopular desde a redemocratização e sob ameaça de impeachment, apontava a saída para a crise pelo “caminho da esperança”.
Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido.
Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.
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Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com.