Se não pode ajudar, deixe o meu cabelo em paz!

Ailton Ferreira, A Tarde

Se um cantor negro deixasse a barba crescer, vestisse um shortinho, amarrasse um lencinho na cabeça e subisse num trio elétrico durante o carnaval de Salvador nos anos 80, certamente seria chamado de ridículo e idiota.

Se esse mesmo cantor, negro de barba e lencinho, arrastasse uma multidão com o seu potente som e deixasse um rastro de pancadaria, murros, socos e ponta-pés e uma multidão sem as suas carteiras e bolsas durante a passagem do seu trio, vixe!

Estaríamos diante de um caso para intervenção no carnaval, pois o tal cantor seria convidado a se retirar do circuito sob a acusação de quebra da ordem pública, crime de desordem e outras tipificações.

Mas aqui em Salvador isso acontece, as pessoas tomam porrada, perdem os seus pertences e no final tudo vira uma brincadeira. As soluções são da logística do carnaval para adequar as estruturas e situações de mobilidade ao furacão musical chamado Bell.

O cantor que provocou rios de lágrimas baianas ao deixar a sua antiga banda, agora resolveu devolver ao povo, que por ele tanto chorou, o seu “agradecimento”, ao provocar a negritude baiana e brasileira, debochando de valores que nos custam tão caros. Resolveu mexer não com as cinturas incautas, mas com a nossa afirmação estética. Resolveu convidar as negras a alisarem os seus cabelos, numa atualização retrógrada e descontextualizada daquela antiga marchinha de carnaval, composta em 1929, que dizia: “O teu cabelo não nega mulata…” Uma pena, quanta ignorância, quanto afastamento do Brasil real, quanta falta de leitura ou quanta perversidade. Parece até que não souberam das Marchas do Empoderamento Crespo que sacudiram o

Brasil, parece que não viram a Marcha das Mulheres Negras em Brasília, no mês passado. Parece mesmo?

Se o cantor Bell soubesse da dor da minha mãe grávida – alisando o cabelo com ferro quente para ir à maternidade parir o meu irmão, pois sabia ela que, com o seus cabelos crespos, o tratamento no hospital não seria dos melhores –, talvez entendesse a delícia de ser como ela é, talvez não brincasse com coisa séria.

Ele, por ser uma voz ouvida, não tem o direito de machucar as pessoas em público, de ferir as mulheres negras naquilo que é o mais profundo na sua afirmação estética, em um país que hierarquizou e estereotipou pessoas pela cor da pele, em especial as mulheres, profundamente agredidas em sua identidade, onde o cabelo tem um lugar muito especial.

Saio da avenida para o Candeal, no bairro de Brotas, onde uma revolução estética musicada, coma participação do cantor e compositor Carlinhos Brown, animou as tardes e noites da comunidade com as presenças de gente da Bahia e de turistas; onde os moradores tinham ocupação e renda, melhoraram as suas casas, vendiam os seus produtos em dias de espetáculos com artistas famosos que, para o gueto, eram atraídos pela genialidade de Carlinhos Brown – Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Zeca Baleeiro, Margareth Menezes, Sandra de Sá e tanta gente boa que deixou de ir ao Candeal. Lá os shows foram proibidos em defesa da ordem pública. Nunca soube de murros, facadas e ponta-pés, muito menos de arrastões, mas soube que o barulho incomodava os moradores do entorno.

Quando um cantor negro incomoda, o racismo sabe como agir. Parece até piada.

Parece?

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.