“No contexto brasileiro estamos falando no que deverá ser o pior desastre socioambiental (em termos de extensão territorial) do país. As perdas para o país ainda precisam ser estimadas e, com muita dificuldade, se conseguirá efetivamente mensurar a gravidade do que ocorreu”, afirma o pesquisador
Por Leslie Chaves – IHU On-Line
“Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG)”, esse é o título do relatório lançado durante a Plenária do Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração – CNDTM, em Mariana – MG, entre os dias 13 e 15 de dezembro.
O documento apresenta uma sistematização dos dados sobre os diversos aspectos envolvidos no rompimento da barragem do Fundão. O relatório, que inicialmente era um projeto menor, foi tomando dimensões maiores conforme as pesquisas sobre o desastre se aprofundavam e revelavam a complexidade e extensão do problema.
Segundo o pesquisador e um dos coordenadores do trabalho, Bruno Milanez, entre os objetivos do documento estão oferecer subsídios às lutas dos movimentos sociais e organizações não governamentais que debatem a questão mineral e contribuir para mudanças estruturais na prática da mineração no país. “Entendemos ser fundamental que todos os procedimentos relativos à extração mineral sejam revistos e que critérios mais rígidos sejam adotados. A proposta do relatório é exatamente essa, ele analisa diferentes elementos da Samarco e do rompimento da barragem do Fundão para refletir sobre mudanças necessárias na forma de se explorar minérios no Brasil”, ressalta o pesquisador, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
O documento é resultado do trabalho de pesquisa do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade – PoEMAS, ligado à Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, mas também é formado por pesquisadores das áreas de ciências sociais, ciências humanas aplicadas e engenharias, que atuam em outras instituições de ensino superior no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás. Com base nos dados sistematizados e no contexto atual das políticas públicas e legislações voltadas ao setor, como as discussões em torno do novo Código de Mineração, Milanez é categórico: “Tais mudanças na legislação vão tornar o processo de licenciamento menos exigente, o que vai piorar ainda mais a qualidade dos projetos e aumentar consideravelmente o risco de novos desastres”.
Bruno Milanez é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos e doutor em Política Ambiental pela Lincoln University. Atualmente leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que o relatório aborda especificamente sobre o desastre da barragem do Fundão? Com que objetivos e como foi construída essa análise? O documento se dirige a um público mais diretamente?
Bruno Milanez – Um dos objetivos do relatório é tentar sistematizar informações sobre o desastre da Samarco para colaborar com uma reflexão coletiva sobre a atividade mineral no Brasil. O relatório aborda diferentes aspectos da Samarco e do rompimento da barragem, tais como relação com a economia mineral; governança corporativa; processo produtivo e gestão de rejeitos de mineração, relações com trabalhadores, comunidade e Estado; licenciamento ambiental, monitoramento de barragens, planos de atendimentos a vítimas e potenciais impactos socioambientais.
Se considerarmos que a Samarco pertence à Vale (que detém 80% do mercado de ferro do país) e assumirmos que o modo de operação da Samarco reflete os padrões da Vale, podemos concluir que esses padrões são insuficientes para evitar catástrofes como a que ocorreu em Mariana. A partir dessa percepção entendemos ser fundamental que todos os procedimentos relativos à extração mineral sejam revistos e que critérios mais rígidos sejam adotados. A proposta do relatório é exatamente essa, ele analisa diferentes elementos da Samarco e do rompimento da barragem do Fundão para refletir sobre mudanças necessárias na forma de se explorar minérios no Brasil.
O relatório foi elaborado com o objetivo de subsidiar os movimentos sociais e as organizações não governamentais que debatem a questão mineral no país. Assim, esperamos que, se esses agentes concordarem com as premissas e propostas colocadas, as incorporem em suas contestações e demandas. Muitas das propostas dependem de decisões do Estado e das empresas; se esses agentes também lerem o relatório e incorporarem algumas de nossas recomendações, acho que diminuiremos a chance de novos desastres dessa magnitude.
IHU On-Line – De quem foi a iniciativa para a elaboração do relatório? Como é a equipe que participou desse trabalho?
Bruno Milanez – O Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade – PoEMAS é formado por pesquisadores das áreas de ciências sociais, ciências humanas aplicadas e engenharias. Seus membros atuam em instituições de ensino superior no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás, e se propõem a debater e avaliar os efeitos sociais, ambientais e econômicos das atividades extrativas minerais nas esferas local e nacional.
O desafio de elaborar tal relatório partiu do professor Rodrigo Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, que é um dos coordenadores do grupo. Inicialmente, pensávamos em um informe que deveria ter oito páginas. À medida que o grupo se debruçou sobre o problema, fomos vendo sua complexidade e a necessidade de nos aprofundarmos sobre os diferentes temas. Assim, o “informe” foi crescendo e, na versão final, o Sumário Executivo ficou com 10 páginas! Assim, a elaboração do relatório foi incorporada por nós como parte de nossas atividades de pesquisa e extensão.
IHU On-Line – O que representa em termos econômicos e socioambientais o rompimento da barragem do Fundão para o Brasil? E mundialmente?
Bruno Milanez – No contexto brasileiro estamos falando no que deverá ser o pior desastre socioambiental (em termos de extensão territorial) do país. As perdas para o país ainda precisam ser estimadas e, com muita dificuldade, se conseguirá efetivamente mensurar a gravidade do que ocorreu. O desafio de mensuração também se coloca do ponto de vista econômico, embora esse talvez seja mais fácil. Nesse caso, não basta pensar na paralisação da Samarco, temos de incluir também os milhares de pescadores que ficarão impedidos de trabalhar, assim como o impacto na vida dos agricultores que vivem nas margens do Rio Doce. O abastecimento de peixes, hortifrutigranjeiros, bem como de leite e derivados, sofrerá impactos significativos na região. Outras indústrias que também dependiam da água do Rio Doce para produzir também foram diretamente afetadas.
No contexto mundial, esse foi considerado o rompimento de barragem onde houve maior liberação de material e impactou a maior área. Possivelmente deverá ser também aquele que gerou as maiores perdas econômicas. Provavelmente, ao menos dentro do setor mineral, ele será lembrado durante muito tempo e usado como um exemplo do que não deve ser feito em relação à gestão de rejeitos de barragens e análise de risco.
IHU On-Line – A partir da sistematização de informações de diferentes ordens coletadas sobre esse desastre, quais pontos do relatório você destacaria com base nessa visão mais panorâmica da situação?
Bruno Milanez – O estudo tenta, a partir da análise do rompimento da barragem da Samarco, pensar questões mais gerais sobre a gestão de barragens de rejeitos no Brasil. Em algumas matérias de jornal, foi comum ler que teria havido uma série de erros. Entendo que essa série não está relacionada apenas ao rompimento em si, mas à gestão de barragens de rejeitos no Brasil.
O primeiro erro se dá no processo de licenciamento. As agências de licenciamento ambiental em Minas Gerais, e no Brasil em geral, estão sucateadas do ponto de vista técnico e sofrem intensa pressão política para liberar projetos que não são ambientalmente viáveis. O caso da barragem do Fundão, construída na mesma microbacia das outras duas barragens (Germano e Santarém) e ainda a montante de uma área povoada mostram uma situação de risco inaceitável. Apesar disso, ela foi aprovada, embora houvesse alternativas locacionais que minimizassem consideravelmente esse risco.
O segundo erro se dá no processo de monitoramento das barragens pelos órgãos governamentais. O monitoramento e controle da segurança em Minas Gerais é de responsabilidade da Fundação Estadual de Meio Ambiente – FEAM, que a realiza em conjunto com o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM. Anualmente, a FEAM publica o Inventário de Barragens do Estado de Minas Gerais, no qual essas estruturas são classificadas de acordo com seu tamanho e estabilidade. No inventário de 2014, a barragem do Fundão foi considerada estável, o que põe sérias dúvidas sobre a eficácia de tais sistemas de monitoramento. Mais ainda, o mesmo relatório apontava 27 barragens cuja estabilidade não estava garantida (sendo sete consideradas de grande impacto social e ambiental). A Vale, por exemplo, possui uma barragem em Congonhas que foi considerada não estável nos relatórios de 2012, 2013 e 2014. Se o sistema fosse sério, isso não deveria ser permitido. A fiscalização de barragens em Minas Gerais apresenta limitações estruturais, associadas à incapacidade e inação dos órgãos estaduais em garantir níveis mínimos de segurança das populações e ecossistemas a jusante das barragens de rejeito em operação no Estado.
O programa nacional, sob responsabilidade da Agência Nacional de Águas – ANA é ainda mais frágil e não consegue nem mesmo compilar adequadamente os relatórios enviados pelos órgãos estaduais. Os dados sobre Minas Gerais apresentados no relatório da FEAM e no relatório da ANA, por exemplo, são incompatíveis.
Mas a questão não se limita à incapacidade do Estado. A responsabilidade pela gestão das barragens é da empresa, e ela não pode se eximir disso. Na ausência do controle público, a preocupação exclusiva no resultado econômico de curto prazo faz com que gestores dentro das companhias tomem decisões que aumentam os riscos de operação e, potencialmente, geram grandes danos para a sociedade, como no caso da barragem de Germano.
IHU On-Line – No relatório é apontada a necessidade de se compreender o caráter estrutural do rompimento da barragem do Fundão. Por quê? A que se refere precisamente esse caráter estrutural? Você poderia falar um pouco sobre essa questão?
Bruno Milanez – Em primeiro lugar, ele apresenta o rompimento de barragens como um elemento inerente à atividade mineral. Até o momento, a sociedade brasileira tem encarado os desastres com barragens de rejeito como algo fortuito, que acontece “por acaso”. Essa percepção fez com que vivêssemos diferentes eventos e pouco aprendêssemos com eles. Sendo assim, tivemos, apenas em Minas Gerais, seis desastres nos últimos quinze anos (um a cada dois anos e meio) e em momento algum paramos para questionar se as barragens e, particularmente, as megabarragens seriam a forma mais inteligente de lidar com rejeitos de mineração. O rompimento da barragem do Fundão mostra que não é, e precisamos aprender com isso.
Existe um estudo feito por Davies e Martin, em 2009, que sugere a existência de uma relação entre o aumento do número de rompimentos de barragens e o fim do ciclo de alta do preço dos minérios. Essa relação estaria associada à aceleração dos processos de licenciamento ambiental e à pressão sobre os órgãos licenciadores na fase de preços elevados, bem como à intensificação da produção e pressão por redução de custos no período de redução dos preços. Alguns desses elementos podem ser identificados no desastre tecnológico da Samarco e seu caráter estrutural sugere que outras empresas podem estar vivendo situações de risco semelhantes. Esse levantamento precisaria ser feito.
Em segundo lugar, análises feitas por Bowker e Chambers em 2015 indicam, no passado recente, um aumento do número de rompimentos de barragens de rejeitos considerados graves e muito graves. Essa tendência estaria associada ao fato de as inovações em beneficiamento de minérios terem avançado muito mais rapidamente do que aquelas voltadas para o tratamento dos mesmos. Assim, tem sido possível lavrar reservas com teor cada vez menor de minério, gerando uma quantidade crescente de rejeito por tonelada de minério beneficiada, e demandando barragens progressivamente maiores.
No cenário sugerido por esses estudos as falhas de barragens continuarão a acontecer, com frequência cíclica, porém com impactos em escala ampliada. Entender esse contexto é fundamental para que quaisquer mudanças na legislação ou nas práticas das empresas sejam efetivas.
IHU On-Line – O desastre de Mariana aconteceu em meio às discussões a respeito do Novo Código Mineração e, no Estado de Minas Gerais, ao Projeto de Lei 2.946/2015, que altera o Sistema Estadual do Meio Ambiente. Diante das análises do relatório, que reflexos socioeconômicos e ambientais a aprovação dessas legislações pode ocasionar?
Bruno Milanez – A aprovação, em 25 de novembro de 2015, do projeto de lei 2.946/2015 proposto pelo governo do Estado de Minas Gerais definiu um prazo máximo para o licenciamento ambiental de projetos estratégicos, após o qual, os projetos seriam licenciados por uma superintendência vinculada ao gabinete do Secretário de Estado de Meio Ambiente.
Deve ser levado em consideração que a campanha do governador Fernando Pimentel (PT) recebeu 3,1 milhões de Reais de empresas ligadas à Vale S.A. Apresentando uma proposta de mesma natureza, o Projeto de Lei do Senado 654/2015, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB/RR), foi aprovado, também em 25 de novembro, na Comissão de Desenvolvimento Nacional do Senado. Tais mudanças na legislação vão tornar o processo de licenciamento menos exigente, o que vai piorar ainda mais a qualidade dos projetos e aumentar consideravelmente o risco de novos desastres.
No caso do novo Código de Mineração, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados é formada por 27 titulares, dos quais 20 tiveram suas campanhas financiadas por empresas mineradoras. O relator, Leonardo Quintão (PMDB/MG), que teve 42% de sua campanha financiada por mineradoras, fez várias alterações ao projeto de lei do Executivo que ampliarão consideravelmente a mineração em áreas vulneráveis e diminuirão o controle social e estatal sobre a atuação das empresas mineradoras. Na última versão, o relator acrescentou alguns artigos relativos à segurança de barragem, mas uma leitura cuidadosa da proposta mostra que são quase todas inócuas, uma vez que não são criados instrumentos de fato para sua implementação.
IHU On-Line – Através das análises realizadas para compor o relatório é possível se ter uma ideia de quais desdobramentos podem derivar desse desastre? (Tanto para a empresa quanto para os atingidos, os danos ambientais e os rumos das políticas referentes ao setor de mineração no Brasil).
Bruno Milanez – A Samarco é uma empresa estritamente exportadora. Com a interrupção de sua produção, seus clientes irão passar a adquirir produtos em outros mercados, ela terá um grande trabalho em recuperá-los, principalmente no caso dos clientes europeus (21% das vendas), que tendem a ser mais exigentes com relação a padrões ambientais e dificilmente voltarão a confiar na empresa. Da mesma forma, a BHP e a Vale tiveram perda considerável de imagem e a recuperação da confiança de consumidores e investidores vai depender de suas ações na remediação e compensação dos impactos que causaram.
Por pior que possa soar esse cenário, creio que as empresas são as menos prejudicadas pelo rompimento. A partir das ações postas em prática e dos resultados alcançados nos primeiros 30 dias após o rompimento, eu vejo um cenário ainda mais negativo para atingidos, meio ambiente e as políticas. Passado o momento de comoção, todas as medidas estão sendo encaminhadas para os corredores da burocracia, onde possivelmente caminharão invisíveis e de forma muito lenta.
Os atingidos irão passar por um longo processo de adaptação à sua nova condição. O Estado brasileiro parece não ter entendido o rompimento da barragem como um “desastre” e os esforços para minimizar as perdas das vítimas são pífios. Estive nos dias 13 e 14 em Mariana e fui informado de que na cidade há somente três agentes do INSS. Pessoas que precisam ter acesso aos benefícios sociais, em decorrência do desastre, estão sendo agendadas para março. Da mesma forma, segundo o Sindicato Metabase Inconfidentes o rompimento da barragem forçou a redução da produção das minas da Vale em Mariana. Os trabalhadores dessas minas não foram incluídos no acordo de não demissão com o Ministério Público do Trabalho e os cortes de pessoal já foram iniciados.
Com relação aos danos ambientais, nossos órgãos públicos carecem de capacidade de manter ações de longo prazo, sendo caracterizados pelas descontinuidades de políticas e programas. Além disso, estamos falando de uma bacia que corta vários municípios e dois estados. Haverá dificuldades na atribuição de responsabilidades tanto pela execução, quanto pelo monitoramento.
Qualquer programa de recuperação se estenderá por muitos anos. Do ponto de vista de experiências semelhantes, considero que podemos nos basear no exemplo do Lago Batata, em Oriximiná, Pará. Lá, a Mineração Rio do Norte (outra joint-venture que envolve atualmente a Vale e a BHP, entre outras empresas) lançou rejeitos de mineração de bauxita por 10 anos, impactando “apenas” 30% do lago. Em 1989, foi iniciado um programa de remediação ambiental; passados 25 anos, o lago ainda está sendo recuperado. Dada a escala e a intensidade do impacto sobre a bacia do Rio Doce, podemos imaginar que a sua recuperação será ainda mais longa.
Por fim, eu tenho poucas esperanças do ponto de vista de mudanças efetivas imediatas nas políticas ambientais e de mineração. Como mencionei anteriormente, as propostas atuais de mudança na legislação vão no sentido da redução da capacidade de avaliação dos estudos de impacto ambiental e da intensificação da mineração no país. Ou seja, na direção contrária à que precisamos.
Minha esperança repousa na mudança da perspectiva da população sobre o papel da mineração no país. Se a sociedade brasileira, a partir dessa tragédia, se tornar mais crítica e exigente com relação à implantação e operação de projetos minerais e, consequentemente, passar a exigir a restrição dessas atividades e a elevação de padrões operacionais, talvez venhamos a ter avanços no médio e longo prazos.
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