Grupo constrange antropólogos e defensores dos índios e assentados
Por André de Souza e Evandro Éboli, O Globo
De maioria ruralista, os deputados da CPI que investiga a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já demonstraram que não vão aliviar nos depoimentos daqueles que entendem ser seus algozes, como antropólogos que dão parecer para processos de demarcação de terras indígenas e dirigentes e ex-dirigentes dos dois órgãos. E será um ambiente de confronto e bate-boca entre os ruralistas e a minoria que defende indígenas e assentados.
Os ruralistas fazem da sua maioria um atropelo na CPI. Com facilidade, já aprovaram que Funai e Incra disponibilizem todos os documentos de demarcação de terras e de estudos fundiários dos últimos anos. O governo acompanha com preocupação a comissão. Representantes dos dois órgãos estão sempre nas sessões.
O grupo ruralista que controla a CPI da Funai/Incra é praticamente o mesmo que dominou a comissão que aprovou a PEC 215, que prevê a transferência das demarcações de terras indígenas do Executivo para o Legislativo. Dos 27 titulares da CPI, 19 são ruralistas e, destes, 13 participaram da comissão da PEC.
Até agora, houve apenas uma sessão de depoimento, mas que já mostra como será o resto dos trabalhos da comissão. A antropóloga Flávia Cristina de Melo foi acusada de ter feito o laudo antropológico no processo de demarcação da área de Mato Preto, no noroeste do Rio Grande do Sul, sob efeito de chá alucinógeno. Foi sugerido até mesmo que o trabalho dela pudesse ter sido influenciado por um possível relacionamento amoroso com um índio. Flávia negou ambas acusações.
— A senhora frequentava semanalmente a casa de Rosa e Alcindo fazendo aulas de guarani com um de seus filhos, Geraldo Karai, professor da escola indígena? Qual seu vínculo? A senhora teve algum relacionamento amoroso com ele? — questionou o ruralista Luís Carlos Heinze (PP-RS).
A deputada Érika Kokay (PT-DF) defendeu a depoente.
— A pergunta sobre relações amorosas é sexista, é machista. Se fosse um homem que aqui estivesse, talvez não tivesse sido feita essa pergunta (…) Eu lhe faço um desagravo, porque vossa senhoria está sendo agravada aqui no seu desenvolvimento, na sua capacidade profissional, na sua condição de mulher, na sua condição de antropóloga, simplesmente porque fez um laudo que fere os interesses dos ruralistas que estão aqui nesta Casa. Chega! — disse Kokay.
QUESTÕES ESTADUAIS NA CPI
Também é comum que os deputados usem a CPI para tratar de questões de seus estados. É o caso de três parlamentares do Sul: Alceu Moreira (PMDB-RS), que também é presidente da CPI, Luís Carlos Heinze e Valdir Colatto (PMDB-SC). A grande maioria dos requerimentos apresentados por eles tinham como objetivo convocar ou convidar pessoas que atuam ou trabalharam em seus estados.
Até agora, foram chamados nove antropólogos. A maioria a pedido dos ruralistas. A convocação desses profissionais incomodou a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que os prepara para enfrentar os ataques dos ruralistas.
— Os colegas que nunca enfrentaram esse tipo de coisa precisam de uma ajuda. É preciso explicar direitinho para eles, para não serem surpreendidos com aquele estilo de diálogo e intervenção. Mostrar quem é quem ali na CPI — disse Henyo Barretto, da Comissão de Assuntos Indígenas da ABA.
— Acho muito difícil que qualquer depoimento de um antropólogo vá influenciar o relatório final, que parece já definido, dada a maioria que domina a comissão. O que queremos é fazer um depoimento qualificado e verídico — completou.
A disputa entre os dois grupos se dá também nos requerimentos. A CPI já aprovou até agora 97, dos quais seis são de convocação e 69 de convites para ouvir 81 pessoas. O resto é requisição de documentos e de reuniões externas, até em reservas indígenas.
Além dos antropólogos, estão sendo chamados integrantes do Ministério Público, juízes, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), produtores rurais, sacerdotes da Igreja Católica, profissionais do Incra, da Funai e da Fundação Palmares (Ministério da Cultura) e até um delegado de polícia. Os ex-ministros do STF Joaquim Barbosa, Nelson Jobim (também ex-ministro da Justiça) e Ayres Britto estão nessa relação.
BATE-BOCA ENTRE DEPUTADOS
Os ânimos acirraram na sessão da última terça, quando Heinze e Marcon (PT-RS) bateram boca. Eles ouviam um cientista social crítico à forma como se deu a demarcação da terra indígena Mato Preto, no Rio Grande do Sul, quando Marcon questionou quem pagou o estudo dele. Foi o suficiente para começar a discussão.
— Não temos nada a esconder. Nosso negócio é limpo. Não é o dinheiro sujo que Lula pegou — disse Heinze.
— Vai falar da Lava-Jato! Vai falar na Polícia Federal da Lava-Jato! Tu tem que falar de Lula, de dinheiro sujo de Lula? — devolveu Marcon, acrescentando:
— Acha que eu sou palhaço? Eu não fui indiciado na Lava-Jato!
Heinze, que é alvo de um dos inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal (STF) por suspeita de envolvimento em irregularidades investigadas na Lava-Jato, e Marcon continuaram discutindo por mais de um minuto, trocando insultos. Coube ao presidente da CPI, Alceu Moreira (PMDB-RS), que também se envolveu em outros bate-bocas durante sessão, pedir respeito à CPI.
Em geral, os deputados contrários à CPI dizem que ela não tem razão de existir, por não ter uma fato determinado a ser investigado, como estabelece a Constituição. A bancada do PT na Câmara acionou até mesmo o STF para tentar impedir a instalação da CPI. O relator, o deputado ruralista Nilson Leitão (PSDB-MT), investigado no STF por suspeita de insuflar posseiros a ocuparem uma dessas terras, defende o ponto de vista contrário.
— A necessidade de existir (a CPI) é muito grande. Porque se há dez anos não consegue completar a demarcação de terra indígena no Brasil, porque está tudo nos tribunais, significa que o Estado de Direito faliu. E é necessário descobrir as falhas de ambos os lados. Por isso a CPI é importante. E é necessário que não se tenha medo dela – afirmou Leitão, durante a sessão da última terça-feira.
Entre tantas discussões, algumas conseguiam se destacar pelo bom humor.
— Eu quero dizer ao senhor que eu não tenho medo da cara feia que o senhor faz —disse a deputada Janete Capiberibe (PSB-AP) a Alceu Moreira, provocando risos na CPI.
— É a única que tenho. Se pudesse trocar, teria uma mais bonita só para lhe agradar — rebateu Alceu.
— Eu falei que o senhor faz. Não é que sua cara é feia — devolveu Janete, fazendo o próprio presidente da CPI rir.
Em nota, a Funai afirmou que a CPI é uma ofensiva desigual, violenta e inconstitucional contra os povos indígenas e quilombolas. E ataca os ruralistas. “Tais setores agem para flexibilizar direitos e tornar os territórios indígenas e quilombolas vulneráveis aos interesses empresariais e econômicos dominantes na nossa sociedade”, informou a Funai em nota. O Incra não se manifestou sobre a instalação da CPI.
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Imagem: Índios de várias tribos durante sessão da CPI da Funai e Incra – Michel Filho / Agência O Globo