Lógicas de mercado em sociedades com déficit democrático, desigualdades e discriminações sociais, ambientais, étnicas e raciais possuem baixos padrões de segurança e proteção ambiental. Economicamente falando, o custo da destruição da vida e do meio ambiente é externalizado
por Marcelo Firpo Porto e Bruno Milanez*, no Le Monde Diplomatique Brasil
Assim como quase acidentes anunciam a gravidade do porvir, desastres repetidos, como as barragens em Minas Gerais, revelam as farsas da tragédia. Vários acidentes graves nos últimos anos com mortes e destruição ambiental anunciaram o caso da Samarco/Vale/BHP, a maior catástrofe socioambiental deste tipo no Brasil e talvez do mundo.
Mas como essa tragédia foi construída? O Brasil extrai muito minério de ferro, mais de 500 milhões de toneladas/ano, principalmente em Minas Gerais. A Vale é a maior produtora mundial, e o Brasil o segundo maior exportador. O modelo brasileiro é o da megamineração, temos as maiores minas do mundo. Naturalmente os impactos são mega: trabalhadores, muitos terceirizados, morrem; grandes áreas são desmatadas; caminhões e trens circulam; minerodutos usam muita água em tempos de crise hídrica; massas de rejeitos vão para as grandes barragens como lama; e quando rompem…
Portanto não são apenas os bilhões de reais do “progresso”: são perigos, mortes e destruição socioambiental.
Como lidar com isso? Caso vivêssemos numa sociedade com clara primazia dos direitos constitucionais à vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado, teríamos rigorosos padrões de gestão ambiental e tecnologias mais seguras, menos poluidoras e perigosas. O Estado, amparado por legislação robusta, assumiria com competência técnica a defesa constitucional dos direitos fundamentais. Os procedimentos de licenciamento seriam democráticos com a participação de trabalhadores, comunidades atingidas e ambientalistas. Empresas internalizariam as melhores práticas e tecnologias em todas as fases da produção, inclusive na redução dos rejeitos e sua reciclabilidade. O princípio da precaução seria aplicado: abandonar-se-iam as tecnologias consideradas não seguras, e permaneceriam aquelas cujo patamar de prevenção fosse elevado. Empresas não cumpridoras da legislação e dos compromissos do licenciamento seriam exemplarmente penalizadas, financeira, civil e criminalmente. Afinal, a vida valeira muito.
Certamente não foi esse o padrão por trás da tragédia da Samarco. Mas como isso pode acontecer? A resposta é tão simples quanto complexa. A simples: lógicas de mercado em sociedades com déficit democrático, desigualdades e discriminações sociais, ambientais, étnicas e raciais possuem baixos padrões de segurança e proteção ambiental. Economicamente falando, o custo da destruição da vida e do meio ambiente é externalizado. Quem arca com o ônus é a sociedade, trabalhadores e comunidades vulnerabilizados. Custos distribuem-se na previdência social, nos sistemas públicos de saúde e meio ambiente, além do sofrimento dos atingidos e da herança da terra arrasada para as futuras gerações. Num mundo dominado pelo dinheiro das grandes corporações, isso representa o triste preço da vida no comércio internacional injusto em nome do “progresso”.
Como ocorre esse ritual da externalização? Essa resposta é mais complexa. Primeiro, a legislação é restrita ou não cumprida. O licenciamento é feito sem que os órgãos responsáveis tenham condições financeiras e técnicas de analisar riscos, questionar os relatórios produzidos pelas empresas e exigir as melhores soluções para a proteção ambiental, da saúde dos trabalhadores e das populações. Ainda que tenham, são pressionados por políticos e gestores que defendem a importância do empreendimento e a rapidez do licenciamento. Pior: muitos foram absurdamente financiados pelas empresas. As audiências públicas são pouco democráticas, comunidades atingidas e ambientalistas têm poucos recursos para participar, questionar e exigir mudanças.
Segundo, após o licenciamento, empresas maximizam lucros operando “dentro da lei”: exigências de segurança são supostamente cumpridas, em boa parte autorreguladas e sem fiscalização adequada. Planos de emergência para eventuais desastres inexistem ou não são colocados em prática. Problemas nos territórios, nos trabalhadores e nas comunidades atingidas começam com as obras e continuam, mas são invisibilizados em nome das boas notícias do progresso que está chegando.
Surge a tragédia: mortes e destruição ambiental se espalham no jogo de cena midiático. Versões da empresa minimizam impactos (“lama atóxica”), naturalizam as causas do acidente (“abalo sísmico”), referendadas por diversos políticos e instituições que apoiaram o empreendimento e o licenciaram. Notícias espetacularizam dramas, heróis isolados e campanhas de doação. Quando mortes, destruição ambiental, desinformações, possíveis cenários graves e desconfianças tornam-se mais visíveis, surgem multas aparentemente elevadas e declarações públicas de que é preciso “rever procedimentos e tecnologias”. Até mesmo que o futuro será melhor depois da tragédia. Só falta dizer que valeu a pena…
Com o tempo a tragédia tende a silenciar-se, confinada em bastidores jurídicos e institucionais. Promessas de mudanças no marco legal e de maiores investimentos nas instituições reguladoras e fiscalizadoras acabam não se cumprindo ou são esquecidas. Sofrimentos e violações de direitos saem das manchetes. Isso tudo permite a permanência do padrão gerador de externalidades que sustenta a inserção do país no mercado mundial da grande mineração. Como, para que e para quem?
A saída passa, necessariamente, por valorizar a vida e a natureza com mais democracia e justiça ambiental. Mais que uma decisão econômica, é ética, política e civilizatória. Para reverter o atual padrão temos que enfrentar o lamaçal que vulnerabiliza as instituições que regulam, fiscalizam e deixam de impor mais precaução e prevenção aos empreendimentos. Enfrentar a enorme desigualdade socioespacial, a discriminação e o racismo ambiental que assolam os territórios dos grandes empreendimentos. Construir alternativas produtivas e econômicas mais justas, solidárias, saudáveis e sustentáveis.
Sem isso, a repetição das tragédias continuará a fazer do progresso uma farsa.
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*Marcelo Firpo Porto e Bruno Milanez, respectivamente, pesquisador da Fiocruz e coordenador do Grupo Saúde Coletiva, Ecologia Política, Justiça Ambiental e Promoção Emancipatória da Saúde; e professor da UFJF e coordenador do Grupo Política, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS).