“Não é mais possível ignorar as classes populares. Então, todo o processo de mudança radical na política, dentro de uma democracia, terá de considerá-las”, diz o economista
Por Patricia Fachin – IHU On-Line
“O que vimos no final da década de 1990 foi o surgimento de governos progressistas com base no fracasso do modelo anterior; o que estamos vendo hoje é a reorganização de governos conservadores com base no sucesso do modelo atual, tanto no sucesso econômico — de aumentar o dinamismo econômico — quanto no sucesso de retomar a coesão social, reduzir desigualdades e aumentar a inclusão social”, afirma André Bojikian Calixtre, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.
Segundo ele, com a eleição de Mauricio Macri na Argentina e as disputas políticas nos países sul-americanos já é possível vislumbrar uma “virada na política externa”, sinalizada pelo anúncio de Macri de “suspender a Venezuela do Mercosul e o anúncio de que quer aproximar os países do bloco do Acordo Transpacífico; ou seja, a região será reconectada à zona de influência norte-americana da forma como era perseguida nos anos 1990. Então, na política externa os sinais já são bastante claros com a mudança de orientação”.
Na avaliação de Calixtre, a continuidade dos governos progressistas ainda é a melhor alternativa para os países sul-americanos, contudo é preciso avançar na resolução dos conflitos sociais que ainda não foram solucionados por esses governos. “Esse não é um modelo sem conflitos, pelo contrário, ele aprofunda conflitos sociais, mas não mais o conflito da ruptura do tecido social, que foi o dos anos 1990, do aumento da desigualdade; é justamente o conflito distributivo que entra nessa jogada histórica. O conflito distributivo, por exemplo, no Brasil, é muito claro com a divisão da parcela do orçamento que vai para os juros e a parcela do orçamento que vai para o bem-estar social; este é um conflito distributivo claro, que tem se acirrado no país”, pontua.
O economista ressalta ainda que apesar de ter havido um processo de ascensão econômica e social de governos progressistas na última década, “a base desta ascensão está muito ligada a fatores econômicos e, portanto, não necessariamente há uma identificação dessas novas classes emergentes com o projeto progressista que as fizeram emergir. Muitas vezes a ideologia que está por trás desse processo de ascensão é uma ideologia que até desconstrói esse processo, que é aquela ideologia do individualismo, daquela ideia de que o indivíduo consegue mudar de vida apenas por conta do seu próprio esforço. Esse discurso individualista está sendo muito bem disputado pelas forças conservadoras e isso está acontecendo em todos os países, mas muito forte no Brasil”.
Na entrevista a seguir, André Bojikian Calixtre comenta ainda a importância da solidificação do Mercosul para os países sul-americanos e o tipo de relação que eles devem buscar junto à China, para projetar os próximos 15 anos de desenvolvimento.
André Bojikian Calixtre é graduado em Ciências Econômicas e mestre em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que a eleição de Mauricio Macri na Argentina pode representar para os países sul-americanos? Vislumbra mudanças de rota na política econômica? Em que sentido?
André Bojikian Calixtre – Ainda é difícil estabelecer um cenário claro do que acontecerá. Por enquanto, temos certeza de que, pela primeira vez em muitos anos, houve a eleição de um candidato representado pela direita, que não vem do circuito peronista — no caso argentino —, mas de circuitos mais ligados à direita. Há 12 anos isso não acontecia nos países da América do Sul, do lado de cá da Cordilheira dos Andes, nos países grandes, como Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai. Houve uma mudança de regime — o golpe branco — no Paraguai, mas não um governo mais identificado com a direita, tal como foi, por exemplo, o governo Sebastián Piñera no Chile ou como foi no período em que a direita colombiana esteve à frente do governo.
Crise do neoliberalismo
Os governos de esquerda nesses países surgiram de uma crise muito grande do neoliberalismo entre 1998 e 2003, o que levou a um tensionamento do tecido social, com aumento da desigualdade, pobreza e desemprego nesse período. E o projeto neoliberal para a região, o projeto de abertura comercial desenfreada, da reestruturação do Estado, da privatização dos recursos naturais e das empresas estatais que haviam sido criadas, se mostrou muito pouco eficiente do ponto de vista econômico também, pois o PIB per capita ficou estagnado no período dos anos 1990.
Então, a grande crise que ocorreu de 1998 a 2003 solapou as moedas nacionais. Só para termos uma ideia, por exemplo, o Equador, na crise de 2000, chegou a perder quase 40% do PIB em fugas de capitais. A moeda equatoriana simplesmente sumiu do mapa, dada a crise cambial do neoliberalismo. Isso aconteceu em graus diferentes em todos os países, inclusive no Brasil, onde havia um processo forte de dolarização, lastreado em um câmbio falsamente valorizado. Quando esse sistema se rompeu, todas as moedas nacionais do sistema sul-americano acabaram por quase desaparecer. Foi nesse cenário que surgiram os governos da esquerda, um cenário de desolação econômica e social, de tensionamento do tecido social e de ineficiência do sistema econômico. Os governos de esquerda — prefiro chamar de governos progressistas porque tinham apoio das esquerdas, mas não eram integralmente governos de esquerda, eram governos de coalização — combinaram três grandes estratégias internas:
1) Um forte componente de nacionalização dos recursos naturais. Essa foi uma estratégia que todos os países adotaram – o Brasil fez à sua maneira, a Venezuela mais fortemente e a Argentina muito fortemente também -, mas em todos os países havia essa questão da retomada do controle da sociedade sobre a exploração dos recursos naturais, e isso poderia se dar por meio do Estado ou das empresas estatais ou de um controle mais coletivo, mas a ideia era socializar esses recursos.
2) O segundo elemento foi o de retomada do Estado e das políticas públicas, especialmente das políticas sociais. Então, algumas formas de transferência de renda foram importantes, mas fundamentalmente a retomada dos gastos sociais e da capacidade tributária dos Estados de tributar e redistribuir. Para se ter uma ideia, o Paraguai tinha um sistema tributário quase inexistente e a tentativa foi de reconstruir esse sistema nesse período.
3) O terceiro elemento, que também é muito importante, foi uma combinação do dinamismo econômico, dado pela inclusão no mercado de trabalho e fortalecimento do mercado interno. Isso dava uma sustentação econômica para os outros dois elementos, porque tinha um crescimento do mercado de trabalho, da inclusão no mercado de trabalho, e, portanto, o crescimento da massa salarial reduzia a desigualdade.
Então, todos esses países adotaram algum tipo de estratégia calcada nesse tripé. Esse modelo — agora chegamos aos tempos de hoje —, que foi patrocinado pela esquerda, mas feito com governos progressistas, com coalizões distintas, e com um componente do capital, trouxe novos atores para a cena política, ao fazer um processo interno de inclusão. Do ponto de vista regional, esses governos consolidaram a América do Sul como um espaço econômico de integração. Portanto, aquilo que foi construído pelo período liberal da década de 1990 foi uma trajetória completamente distinta do que os governos progressistas fizeram. Os governos liberais construíram um espaço de integração com vistas à integração hemisférica, ao projeto maior que era a Área de Livre Comércio das Américas – ALCA. Os governos progressistas avançaram também na integração econômica, mas o objetivo da integração econômica era justamente lastrear os seus projetos de desenvolvimento inclusivo, internos e provocar uma mudança da ordem global. São quase as mesmas instituições, com exceção das que foram criadas nesse período novo, mas com uma orientação completamente distinta. Esse modelo que buscava a afirmação soberana dos países para a contestação da ordem global e a inclusão de novos atores é um modelo que, do ponto de vista empírico, representou o maior crescimento do PIB per capita, foi mais eficiente economicamente e melhorou a coesão social dentro dos países sul-americanos.
Modelo progressista
Qual é problema que vivemos hoje? Esse não é um modelo sem conflitos, pelo contrário, ele aprofunda conflitos sociais, mas não mais o conflito da ruptura do tecido social, que foi o dos anos 1990, do aumento da desigualdade; é justamente o conflito distributivo que entra nessa jogada histórica. O conflito distributivo, por exemplo, no Brasil, é muito claro com a divisão da parcela do orçamento que vai para os juros e a parcela do orçamento que vai para o bem-estar social; este é um conflito distributivo claro, que tem se acirrado no país. Mas não necessariamente ele foi da mesma forma em outros países. Na Argentina está mais relacionado à questão da nacionalização de recursos, o problema das três moedas circulando no espaço econômico, o problema monetário, as transferências de renda. Cada país teve um tipo de conflito distributivo gerado pelo processo de desenvolvimento inclusivo dos últimos 12 anos. E os governos à direita, as forças conservadoras, se reorganizaram dentro desse acirramento do conflito distributivo. Assim, o que vimos no final da década de 1990 foi o surgimento de governos progressistas com base no fracasso do modelo anterior; o que estamos vendo hoje é a reorganização de governos conservadores com base no sucesso do modelo atual, tanto no sucesso econômico — de aumentar o dinamismo econômico — quanto no sucesso de retomar a coesão social, reduzir desigualdades e aumentar a inclusão social.
IHU On-Line – Os governos progressistas receberam muitas críticas por terem adotado o que alguns chamam de uma “política econômica neoliberal” e de não terem tido uma preocupação ambiental com os recursos naturais e com os povos indígenas que vivem nos países sul-americanos. Diante dessas críticas, como distingue os governos progressistas dos de direita? A diferença central está nesse tripé que você mencionou?
André Bojikian Calixtre – São exatamente os três pontos que diferenciaram o debate do Macri contra o Scioli na Argentina, embora Macri não tenha avançado aparentemente nessa questão, porque o tripé da nacionalização dos recursos naturais parece que permanecerá. Mas todos os outros pontos com relação à retomada do Estado, agora, serão discutidos com um discurso fortemente desestatizante, privatizante no sentido de ter uma economia mais voltada para o mercado e não uma economia de inclusão. Esses são os elementos que podemos tirar de uma virada na política doméstica argentina.
Mas a grande questão, o que já está claro mesmo, é a virada na política externa. Por exemplo, o anúncio do Macri de que quer suspender a Venezuela do Mercosul e o anúncio de que quer aproximar os países do bloco do Acordo Transpacífico; ou seja, a região será reconectada à zona de influência norte-americana da forma como era perseguida nos anos 1990. Então, na política externa os sinais já são bastante claros com a mudança de orientação.
IHU On-Line – A que pode ser atribuída essa mudança de rota determinada nas eleições argentinas? Por que os argentinos escolheram outra proposta política neste momento?
André Bojikian Calixtre – O conflito distributivo que havia foi gerando novos atores, os quais chegaram à cena política e não são um grupo homogêneo, ou seja, eles não têm um único pensamento de como deve ser a economia, de como o Estado deve ser organizado e assim por diante. As forças conservadoras disputaram e estão disputando esses novos atores que emergiram do processo de inclusão dos últimos 12 anos. Por exemplo, no caso da Argentina, eu não acredito que seja só aquela classe média tradicional portenha que elegeu o Macri, isso não é suficiente para eleger o presidente. Ele tem que ter o apoio conjunto da população argentina. Assim, certamente ele disputou esses atores que ascenderam nos últimos 12 anos e essa é a questão mais interessante de todo o processo: por mais que tenha havido um processo de ascensão, a base desta ascensão está muito ligada a fatores econômicos e, portanto, não necessariamente há uma identificação dessas novas classes emergentes com o projeto progressista que as fizeram emergir. Muitas vezes a ideologia que está por trás desse processo de ascensão é uma ideologia que até descontrói esse processo, que é aquela ideologia do individualismo, daquela ideia de que o indivíduo consegue mudar de vida apenas por conta do seu próprio esforço. Esse discurso individualista está sendo muito bem disputado pelas forças conservadoras e isso está acontecendo em todos os países, mas muito forte no Brasil.
O lado bom disso é que não é mais possível ignorar as classes populares. Então, todo o processo de mudança radical na política, dentro de uma democracia, terá de considerar as classes populares. As eleições argentinas tiveram um resultado muito mais apertado do que as eleições brasileiras, e o sistema político argentino está demonstrando um apreço pela democracia muito maior do que o nosso, principalmente com relação à postura dos derrotados. Scioli assumiu sua condição de derrotado, independentemente da margem, e o sistema segue, diferente do que aconteceu no Brasil, onde aparentemente as forças que foram derrotadas não querem assumir a derrota até agora. Feito este parênteses, a grande verdade é que o Macri não pode mais ignorar esse novo grupo, esse grupo de pessoas que emergiram das políticas sociais, da nacionalização dos recursos naturais e das transferências de renda desse processo de desenvolvimento inclusivo que foi feito nos últimos 12 anos na Argentina. Ele tem que negociar com esses novos grupos e isso dá uma certa estabilidade para o ciclo progressista, mesmo com uma mudança tão profunda na orientação ideológica dos seus governantes.
IHU On-Line – Quais serão os principais desafios para dar continuidade a esse modelo progressista, considerando essa mudança de rota na política econômica externa? Há riscos de ocorrer uma mudança radical, principalmente em relação às conquistas sociais?
André Bojikian Calixtre – Do ponto de vista do Brasil, ele continua sendo o ator mais importante dentro da América do Sul, porque somos a metade do PIB e a metade da população sul-americana e, portanto, será decisiva a postura que o Brasil terá nesse processo. A política externa brasileira certamente responderá dentro daquilo que são seus marcos, que são a defesa da integração latino-americana, dos seus marcos constitucionais e a defesa das instituições que foram criadas ao longo desses anos, não só os 12 anos do progressismo, mas os últimos 30 anos, e isso inclui o Mercosul.
Tem uma questão central aí que é o que será feito com o Mercosul daqui para a frente. Se iniciar um processo de suspensão dos países do Mercosul, será travada a integração do Conesul. Existe, sim, uma tentativa de desconstruir o projeto mercosulino, o projeto comunitário, que avança sobre a consolidação aduaneira e sobre direitos sociais, e retroceder o Mercosul a uma área de livre comércio, o que possibilitaria acordos bilaterais dos países, dado que hoje a união aduaneira impossibilita que isso ocorra, ou seja, impossibilita que a Argentina faça um acordo bilateral de preferências com os Estados Unidos, com tarifas menores, sem que esse acordo seja imediatamente absorvido pelos outros países do Mercosul.
Agora, essa é uma estratégia que no curto e no médio prazo aprofundará a dependência que os países sul-americanos têm tido das exportações de commodities, de capital externo, e retrocederá todo o processo que foi feito nos últimos 12 anos, de construção de uma nova ordem global, de aumento da multipolaridade, de contenção da hegemonia americana — que ainda é muito forte e presente —, para a construção de um sistema internacional mais justo.
Portanto, se isso for adiante, será um passo atrás jogar toda essa construção fora em uma forma de retrocesso do Mercosul. Eu sou favorável à seguinte alternativa: o Brasil, neste momento, tem de aprofundar a integração mercosulina, inclusive com o apoio da Argentina. A decisão 56 do Conselho do Mercado Comum de 2010, que é o Programa de Consolidação Aduaneira, é fundamental porque unifica as listas de preferências e de exceções, a tarifa externa única e a tarifa externa comum, cria uma série de instituições que aprofundam a integração aduaneira e permite que o Mercosul se transforme em um mecanismo de regulação comercial favorável ao comércio industrial, por exemplo, de melhor qualidade dentro da região e da região para fora.
IHU On-Line – Como está a atual integração entre os países membros do Mercosul?
André Bojikian Calixtre – Ela é muito forte do ponto de vista comercial e se fortaleceu na parte de investimentos. Agora, o que faltou foi avançar nas suas instituições, porque as instituições mercosulinas são ainda muito precárias e é preciso ter formas mais comunitárias de gestão de problemas aqui dentro. Está certo que a integração foi erguida no princípio da afirmação da soberania nacional, completamente distinto do que ocorreu na União Europeia, que teve como princípio a relativização da soberania nacional. Ou seja, o Mercosul foi um mecanismo de fortalecimento das soberanias e não de relativização, mas esse mecanismo chegou a um limite e ele precisa agora ser combinado com o fortalecimento de instituições comunitárias. Com isto estou querendo dizer que o parlamento dentro do Mercosul precisa funcionar, porque ele não funciona. Há uma alta representação do Mercosul, com um excelente representante, que é o Dr. Rosinha [ex-deputado federal Florisvaldo Fier], mas que não tem estrutura para funcionar, e para funcionar precisa de estrutura, precisa ter capacidade de mobilizar seus Estados nacionais para avançar nos temas de discussão.
Existe uma agenda imensa que vai desde o Estatuto da Cidadania do Mercosul até o Programa de Consolidação Aduaneira — essa agenda foi construída entre 2009 e 2010, mas ela não avança. Existe uma tarefa por fazer ainda, dos países mercosulinos, que é retomar o grande avanço que fizemos em 2010, o qual ficou no âmbito das decisões de maior nível, mas que ainda não foi implementado no nível mais burocrático, gestor e preciso de funcionamento do bloco. Então, sem fazer uma modernização do Mercosul nesse sentido comunitário, muito dificilmente se terá força para combater os interesses que preferem desconstruir o Mercosul e reintegrar o Brasil e a América do Sul à zona de influência norte-americana; será muito difícil travar essa batalha sem uma reforma institucional do Mercosul que avance no seu conteúdo comunitário.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a posição da Argentina de querer suspender a Venezuela do Mercosul e, de outro lado, a postura da presidente Dilma de condenar a posição argentina? Vislumbra a possibilidade de problemas políticos emergirem a partir dessas posições distintas, dificultando, portanto, o avanço das políticas comunitárias, como o senhor sugere?
André Bojikian Calixtre – Não há nenhum fato concreto que permita a suspensão da Venezuela, não houve nenhum golpe de Estado concreto ou golpe branco, como houve no Paraguai; é uma situação completamente distinta. É evidente que há um acirramento muito profundo do conflito distributivo dentro da Venezuela e do conflito político, mas não há nenhuma evidência de ruptura da ordem institucional. Não havendo essa evidência de ruptura de ordem institucional, o mecanismo da suspensão se transforma em um mecanismo de vingança política; não é um mecanismo adequado nesse momento.
O custo de suspender um país do bloco do Mercosul não é só o de o país não participar do bloco — isso aprendemos com a suspensão do Paraguai. A grande verdade é que todos os países pagam um preço muito alto pela suspensão de outro membro, porque a estrutura do Mercosul não é por maioria, ela funciona por consenso. A suspensão de um país, apesar de ele não participar mais das decisões do bloco e não ter poder de veto, na prática, enfraquece muito o dia a dia e as questões ordinárias do bloco. Então, suspender um membro, na prática, é dizer que vamos tratar somente as grandes questões, que foi o caso, por exemplo, da suspensão do Paraguai: incluiu-se a Venezuela, foram incluídos novos membros e se resolveu um problema que estava há muito tempo sendo impedido pela postura do Paraguai.
No entanto, com isso se perdeu todo o resto, todo o dia a dia do Mercosul ficou muito dificultado por causa da suspensão de um país membro. Fazer isso de novo com a Venezuela é a mesma coisa que bloquear os trabalhos do Mercosul nos próximos anos, até que se resolva essa questão da suspensão. Por que a suspensão da Venezuela não faz sentido? Porque ela não tem uma materialidade. A suspensão do Paraguai, por exemplo, aconteceu por causa do golpe branco, um golpe constitucional, que é um caso pontual. Então se suspendeu o Paraguai pelo golpe e quando fizeram eleições democráticas, o Paraguai se reintegrou ao bloco. Portanto, é uma suspensão que tem uma saída.
Suspender a Venezuela porque seu regime ideológico não é democrático ou por um fato que não tem uma materialidade é ruim, porque não existe uma saída para isso. Estão querendo suspender a Venezuela para acabar com o regime chavista? Isso não é uma saída porque na prática é suspender um país sem dar as condições para seu retorno ao bloco. Discutir a suspensão da Venezuela agora, nessas condições — a menos que as condições objetivas mudem dentro da Venezuela —, é discutir a suspensão do Mercosul como um todo. Por isso que a presidente Dilma, muito acertadamente, rechaçou essa alternativa que seria a suspensão do Mercosul como um todo.
IHU On-Line – O que seria uma mudança adequada para a Venezuela em termos políticos?
André Bojikian Calixtre – As sociedades têm que encontrar seus caminhos dentro da democracia. É papel do Brasil, porque também temos esses problemas, e dos países mercosulinos respeitar o processo democrático dentro de cada país. A grande verdade é que não está fácil para nenhum país. A Venezuela é um caso extremo porque sua estrutura econômica está absurdamente calcada no petróleo e a deterioração dos preços do petróleo levou a um aprofundamento brutal da crise econômica. Então, como a Venezuela encontrará uma saída democrática para isso, é uma questão que os venezuelanos têm que resolver, da mesma forma que nós temos que resolver as saídas democráticas dentro do Brasil, assim como nossos irmãos argentinos e todos os países que integram o Mercosul.
A democracia é um valor a ser respeitado e a não interferência também é outro valor. Antes de sair por aí julgando o regime do outro, nós temos que saber que existe uma ordem constitucional e nos perguntarmos se ela é democrática e se ela está sendo respeitada. Por mais que seja difícil a saída, ela tem que ser feita dentro dessa ordem democrática, é por isso que o Mercosul tem de zelar, porque, caso contrário, os próprios países vão querer ficar definindo quem pode governar qual país. E esse é o problema, ou seja, dizer quem pode ser o governante do país X e quem não pode ser o governante daquele mesmo país. Isso se aplica a nós também? Por que se avalia que o regime do Nicolás Maduro é ilegítimo, sendo que houve eleições e essas eleições tiveram observadores internacionais? Não houve contestação democrática das eleições institucionais. Não se pode invalidar um governo porque ideologicamente ele não se identifica com o seu. Se isso for feito, cairemos em um buraco negro, sem saber como sair dele.
IHU On-Line – Qual é a expectativa em torno das eleições legislativas na Venezuela, no próximo dia 6 de dezembro?
André Bojikian Calixtre – Eu não tenho elementos para julgar, primeiro porque são eleições legislativas, é um ponto do processo. Temos que aguardar as eleições e ver o resultado que sai delas. Certamente, a situação na Venezuela está muito acirrada, fundamentalmente por conta da crise econômica, que se aprofundou muito.
IHU On-Line – Além da integração dos países sul-americanos, que tipo de alianças comerciais seria viável para garantir o desenvolvimento desses países com melhoras sociais? O ideal seria uma relação comercial com a União Europeia, a Ásia e a China de um modo geral ou EUA?
André Bojikian Calixtre – Eu não sou contra a aproximação com os Estados Unidos, só acredito que ela precisa ser feita como bloco e não como país. Sou contra os acordos de preferência comercial – bilaterais. Acho equivocado cada país fazer acordo de preferência com os EUA, rompendo, inclusive a união aduaneira mercosulina. Isso é equivocado porque vai aprofundar o processo de especialização comercial e piorar a pauta exportadora desses países, então, essa relação bilateral é economicamente contraproducente. A questão é: não dá para negociar individualmente com a hegemonia; é preciso negociar em bloco, e para o Mercosul isso é importante.
A China realmente foi e continua sendo um grande mercado absorvedor das exportações sul-americanas. O grande problema é o perfil das exportações, que foram muito calcadas nos produtos primários, o que levou a um aprofundamento daquilo que se chama de especialização regressiva, desindustrialização, mas basicamente é a comoditização da pauta exportadora, nesse caso específico. Esse problema, nos próximos anos, não será acirrado, porque a China está fazendo um processo de conversão interna, por uma demanda doméstica mais forte. Esse processo de conversão aumentará a sofisticação dos produtos demandados pelas exportações sul-americanas. Daqui a 15 ou 20 anos a demanda chinesa estará muito parecida com a demanda europeia e norte-americana de importações, que é uma demanda de melhor perfil, por causa do processo da conversão interna que os chineses estão fazendo, saindo de uma economia muito centrada na exportação para uma economia mais centrada no mercado de consumo interno.
O maior problema na relação com a China, e que de fato precisa avançar, não é a questão comercial, mas a questão dos investimentos, do mercado de capitais e da conta financeira dos fluxos de capitais. A China tem feito um processo de expansão dos seus investimentos e isso se aprofundará muito daqui para frente, sobretudo após a virada do Renminbi [moeda da República Popular da China] em moeda internacionalmente conversível — a moeda foi incluída no sistema de pagamentos do FMI [Fundo Monetário Internacional] — e há uma massa imensa de capitais ociosos na China, que se expandirá para o resto do mundo. É aí que eu vejo a questão mais importante para se acordar com a relação à China.
A expansão chinesa de capitais tem dois grandes padrões: o padrão leste-asiático, que é aquele padrão de parcerias (joint venture) — o capital que se integra ao capital nacional, por meio das parcerias nos negócios; e o padrão tradicional, que é o Padrão de Investimento Direto Externo – IDE, o qual a China tem usado mais com a América do Sul, que consiste em colocar o capital chinês em investimentos latino-americanos, para que depois esse capital retorne à China, ou seja, é uma operação financeira de aporte de recursos chineses para determinados projetos e depois isso retorna para a origem na forma de juros e lucros remetidos ao exterior — essa é a forma clássica do IDE.
Qual é agora a grande oportunidade da América do Sul? É transformar esses gigantescos recursos de investimentos externos que estão vindo da China em parcerias, em joint venture — em parceria de negócios. O Brasil fez isso muito bem com relação ao pré-sal — o capital chinês entrou nesse sistema com o pré-sal e agora também está entrando nas concessões de estradas e ferrovias. Essa, na minha opinião, é a relação saudável entre China e América do Sul, que tem de ser privilegiada: a busca por capitais chineses, mas não na forma de investimentos diretos externos, e sim na forma de parcerias de negócios. Isso pode ser um grande horizonte de crescimento e de investimento em infraestrutura para a região se for bem explorado pelos países.
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Imagem: paranacooperativo.coop.br