Por Raquel Rolnik, no Blog Habitat do Portal Yahoo!
No último sábado (28), a população do Recife acordou com a notícia da decisão judicial que anulou o leilão da venda da área do Cais José Estelita, realizado em 2008, em resposta à ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal. Essa área, de cerca de 100 mil metros quadrados, pertencia à Rede Ferroviária Federal, que, uma vez extinta, teve seu patrimônio transferido para a União, ou seja, o governo federal. Em leilão, a área foi arrematada pelo consórcio Novo Recife, formado pelas construtoras Moura Dubeux, GL Empreendimentos, Ara Empreendimentos e a empreiteira Queiroz Galvão. Ali, o grupo pretendia implementar um megaempreendimento imobiliário, com 13 torres de edifícios de luxo de cerca de 40 andares.
Desde 2012, porém, articulou-se um forte movimento de contestação a esse projeto, o Movimento Ocupe Estelita, que vem promovendo inúmeras ações para abrir canais de diálogo sobre o futuro daquela que é uma área privilegiada da cidade, tanto por sua localização, quanto por sua paisagem e história. Sem dúvida, a forte mobilização do grupo – que ganhou repercussões internacionais – é a grande responsável por levar o debate sobre o futuro do Cais José Estelita aos mais diversos setores da sociedade. Sem isso, muito provavelmente, as torres já estariam de pé.
A sentença do juiz Roberto Wanderley Nogueira não apenas determina a restituição daquele patrimônio à União – por considerar que o leilão foi realizado indevidamente –, como anula a aprovação do projeto nos órgãos municipais, por entender que diversas exigências e condicionalidades não foram cumpridas. De acordo com o juiz, “não pode o coração da primeira República das Américas, filha do Recife e de Olinda, quedar subjugado à sanha patrimonialista da especulação imobiliária dos tempos contemporâneos. Há muito mais de valor histórico, paisagístico, ambiental, social e político a proteger que as economias, sempre sequiosas, dos afortunados de momento, não raro consorciados a setores do Poder Público.”
Este trecho da sentença chama a atenção para uma questão extremamente atual para o nosso país, que diz respeito à forma como são tomadas as decisões sobre o uso do patrimônio público e o destino das nossas cidades. O Estelita não é o único caso em que importantes terras públicas foram passadas para o mercado por meio de leilões ou licitações “pra inglês ver”, já que, na maioria das vezes, os resultados são definidos previamente. São procedimentos que a sociedade hoje questiona, cobrando transparência, diálogo e efetiva participação nas decisões sobre os rumos de pedaços importantes do nosso território.
A sentença é de primeira instância, portanto, o mais provável é que se inicie agora uma guerra judicial, já que o consórcio deve recorrer da sentença. Uma das preocupações é garantir que, no vaivém de recursos, nenhuma obra possa ser iniciada antes da análise final pela Justiça. Se isso não acontecer, o Recife verá se repetir a novela das chamadas Torres Gêmeas – duas megatorres residenciais de alto padrão (da mesma construtora, Moura Dubeux), também no centro histórico da cidade, cujo leilão chegou a ser anulado pela Justiça, mas sem nenhum resultado, pois o empreendimento já havia sido concluído e comercializado.
Por fim, é necessário reafirmar a importância de que se abra uma ampla discussão pública, participativa e transparente sobre o futuro daquela área, que permita traçar diretrizes e formular um projeto democrático, includente, que atenda às necessidades da população, respeitando a paisagem, sua história e sua cultura. A vitória não será definitiva enquanto a área permanecer em ruínas. Este é agora o maior desafio: Recife e o Movimento Ocupe Estelita podem entrar para a história com um projeto de reconquista da cidade, construído e implementado com participação pra valer.
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Foto: Chico Ludermir/ Direitos Urbanos. Alguns direitos reservados.