Cais Estelita: Quem vai conduzir o processo de ocupação do espaço urbano? Entrevista especial com Tomás Lapa

“As decisões devem emanar do poder público municipal, que é quem é qualificado para conduzir o processo de ordenamento do espaço urbano”, diz o arquiteto

Por Patricia Fachin – IHU On-Line

Apesar de a decisão judicial ter anulado a compra do terreno do Cais José Estelita, na área central do Recife, o sentimento de parte dos envolvidos com a condenação do projeto da construção de duas torres na atual área do Cais é ambíguo e pode ser compreendido na posição do professor Tomás Lapa, que vem acompanhando o processo de discussão em torno do Cais. De um lado, Lapa, que condenou o projeto da construção das torres, se diz “satisfeito”, porque apesar do “lobby da construção civil”, é “positivo o fato de a Justiça ter acatado uma ação do Ministério Público Federal e ter declarado a nulidade do leilão”.

Contudo, de outro lado, afirma, “há um sentimento de orfandade” entre os membros das instituições que lutam por projetos alternativos no Cais Estelita, ao não vislumbrarem “quem vai liderar o processo do Cais”. Segundo ele, a responsabilidade de propor algo ou de definir as regras acerca da ocupação do espaço urbano é do poder público, mas por enquanto, frisa, “não percebemos nenhuma proposta”. “As duas torres foram construídas há praticamente dez anos e, afora uma audiência pública, não houve nem de longe a mobilização a que assistimos no caso do Projeto Novo Recife, que é o objeto da sentença de nulidade do juiz. O Projeto Novo Recife, de certo modo pode ser considerado a sequência de uma estratégia do Consórcio, iniciada há 10 anos com as duas torres. Porém, atualmente, trata-se de 12 ou 13 torres, que variam entre 40 e 50 pavimentos, formando uma barreira na frente d’água”, explica.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Lapa informa que a área do Cais Estelita é considerada pelo Plano Diretor como “zona especial”, a qual, obrigatoriamente, “tem de ser objeto de um plano urbanístico que, por sua vez, precede qualquer proposta de ocupação ou de construção. O plano urbanístico é quem vai apresentar a imagem do que se deseja de cidade ou de setor de cidade”.

Tomás Lapa pontua ainda que, após a decisão do juiz Roberto Wanderley Nogueira, da 1ª Vara da Justiça Federal em Pernambuco, “seria esperado que o poder público estabelecesse os critérios acerca da ocupação dessa área, apontando que os gabaritos não devem ser mais altos que os pontos mais altos das igrejas do bairro de São José”. Entretanto, menciona, diante da falta de posicionamento do poder público municipal, “percebo que não arredam o pé de uma posição que é a de concordância com os pontos de vista do setor da construção civil. Sentimos, em todas as reuniões e posicionamentos, que é como se fosse uma questão de tempo para conseguirem contornar as dificuldades tecnocráticas, burocráticas e conseguir a autorização para a construção desse conjunto. Em momento nenhum percebemos uma vontade política do prefeito e do seu corpo técnico de anunciar uma convocação das universidades e das entidades de classe a fim de estabelecer as regras de ocupação do Cais a partir do Zero”.

Tomás Lapa é doutor em Geografia Humana e Urbanismo pela Université de Paris I. Atualmente é professor titular, atuando no Curso de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor recebeu a notícia da decisão da Justiça Federal em anular o leilão do terreno Cais Estelita? Qual é o significado dessa decisão?

Tomás Lapa – Eu, que condenei o projeto do ponto de vista arquitetônico e paisagístico, fiquei satisfeito, porque mesmo que saibamos da força do lobby da construção civil e do comprometimento do poder público municipal diante de tais grupos, vemos como positivo o fato de a Justiça ter acatado uma ação do Ministério Público Federal e ter declarado a nulidade do leilão. Essa decisão da Justiça demonstra também que a nossa defesa do Cais Estelita não era sem fundamento; era uma defesa com base em questões sérias e que dizem respeito à retidão dos grupos que estão envolvidos nessa questão.

Sentimento de orfandade

Apesar disso, ao conversar com representantes do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – Crea e outras entidades, percebo que há um sentimento de orfandade no sentido de que nós assistimos a uma vitória como essa, mas todos repetem a mesma coisa: quem vai liderar o processo do Cais Estelita? Esse processo não pode ser liderado por movimentos sociais, porque eles avançam como um todo, sem a centralização de uma representatividade. A grande dificuldade é que nossa Constituição atribui ao poder público municipal a condução do processo de organização do espaço urbano. Então, é difícil uma universidade ou uma representação de classe como o Crea, tomar a frente e se colocar no lugar para dizer como deve ser o projeto do Cais, já que essa é uma responsabilidade do poder público municipal. Portanto, há esse sentimento e as pessoas nos perguntam com certa frequência o seguinte: “Vocês criticam a construção das torres no Cais, mas qual é a proposta de vocês?” Isso não pode vir unilateralmente de um ator social, mas teria de ser coordenado pelo poder público municipal.

Os representantes de classes e os reitores da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco, tiveram uma oportunidade de conversar com representantes do poder público municipal, numa reunião no gabinete do prefeito, com os presidentes de entidades como CREA, CAU, IAB, OAB, ONGs e o movimento Direitos Urbanos. Na ocasião, dissemos ao prefeito que a situação que se apresenta do Cais Estelita é uma oportunidade em que o Recife poderia mostrar para o resto do Brasil que chegou o momento de enfrentar e mudar o modelo de fazer cidades.

Decisão judicial

A sentença do juiz neste momento denota claramente que ele baseou-se no parecer da Professora Lúcia Veras, do curso de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, que durante quatro anos trabalhou sobre a pertinência da conservação da paisagem do Recife naquele trecho do Cais. Foi a Lúcia quem respondeu pelas questões colocadas pelo Ministério Público à Universidade Federal de Pernambuco e, na sentença do juiz, reconheço o jargão urbanístico. Então provavelmente ele se baseou, adequadamente, em fontes de autoridades no assunto.

Agora, a situação é um tanto quanto difícil, porque parece que esses momentos mais críticos e mais agudos sempre acontecem nas viradas de ano, quando a prefeitura quer fechar seus processos e aprová-los, como fez na gestão anterior, em dezembro de 2012, quando aprovou projetos em 28 de dezembro.

O Consórcio é muito hábil em adquirir certo discurso como se estivesse de fato respondendo às preocupações dos urbanistas, mas eles não abrem mão em momento nenhum daquela  grande muralha de edifícios na borda d’água. Aquilo é o que mais me choca: a transformação radical da paisagem tradicional da área central do Recife, com a finalidade única de assegurar ao Consórcio altas taxas de lucros que, por sua vez, no máximo, diz que eliminou as grades para que as áreas verdes tornem-se comuns. Eles se apropriam e veiculam esse tipo de argumento, mas quando olhamos as diferentes versões dos projetos, não mudou nada. Eles sempre disseram que não abririam mão de nenhum metro quadrado pensado para esse projeto. Quando colocam esse tipo de questão de modo intransigente, percebemos que eles têm uma ideia feita, e a prefeitura não se move para contradizer a posição deles, ao contrário, coloca-se como um mero moderador. Mas, será que esse é o papel dela? Porque ela não estabelece previamente as regras para empreendimentos na cidade?

IHU On-Line – Então, não há nenhuma proposta do Poder Público para a área do Cais Estelita?

Tomás Lapa – Nós não percebemos nenhuma proposta. Sexta-feira passada (27-11-2015) houve uma reunião, em que só não foi batido o martelo aceitando o que a prefeitura chama de estudo de impacto de vizinhança porque, durante a reunião, o representante do clube de engenharia teve a sensibilidade de pedir vistas ao processo, e isso prorrogou o processo por mais 15 dias. Uma das irregularidades é que aquela área, segundo o plano diretor do Recife, constitui uma zona especial. Essas zonas especiais, obrigatoriamente, têm de ser objeto de um plano urbanístico que, por sua vez, precede qualquer proposta de ocupação ou de construção. O plano urbanístico é quem vai apresentar a imagem do que se deseja, ou de cidade ou de setor de cidade. Nesse momento, seria esperado que o poder público estabelecesse os critérios acerca da ocupação dessa área, apontando que os gabaritos não devem ser mais altos que os pontos mais altos das igrejas do bairro de São José.

Diante dessa colocação, o Consórcio diz que está fazendo um urbanismo moderno, com torres elevadas para liberar espaço. Eles fazem essa leitura porque têm o objetivo de construir e vender um determinado número de metros quadrados e não estão interessados em abrir mão da densidade construtiva, porque a prefeitura não estabeleceu os critérios de ocupação para aquela zona especial.

IHU On-Line – Diante da falta de uma proposta por parte do setor público, vislumbra risco de o consórcio entrar com uma nova ação para rever a decisão judicial?

Tomás Lapa – Não sou autoridade no campo jurídico, mas conversei com algumas pessoas do meio jurídico que me disseram que a posição do juiz Roberto Wanderley Nogueira é firme e esclarecida. Porém, poderá ser derrubada por outros magistrados que não pensam nem agem da mesma forma.

IHU On-Line – Qual é a situação do Cais Estelita daqui para frente, dado que não tenha nenhuma proposta até agora? O que vocês propõem que seja feito?

Tomás Lapa – Diante da atitude da prefeitura, percebo que não arredam o pé de uma posição que é a de concordância com os pontos de vista do setor da construção civil. Em todas as reuniões e posicionamentos, sentimos que é como se fosse uma questão de tempo para conseguirem contornar as dificuldades tecnocráticas, burocráticas e conseguir a autorização para a construção desse conjunto. Em momento nenhum percebemos uma vontade política do prefeito e do seu corpo técnico de anunciar uma convocação das universidades e das entidades de classe a fim de estabelecer as regras de ocupação do Cais, como devia ter sido feito, a partir do Zero”. As decisões devem emanar do poder público municipal, que é quem é qualificado para conduzir o processo de ordenamento do espaço urbano.

Gostaria de ver a prefeitura ter se convertido, mas não vimos isso durante esse tempo. Os técnicos do poder público são acolhedores com o grupo da construção civil, porque o processo rola e volta sempre com a mesma aparência, apenas com algumas maquiagens para não serem acusados de estar construindo guetos. Se, a cada cinco ou dez anos, os grupos imobiliários apresentarem novos projetos que venham a obscurecer a paisagem da cidade, nada restará da identidade da cidade. Estamos lutando justamente pela permanência dos valores relacionados com a paisagem tradicional do Recife. Por enquanto, a natureza do projeto continua a mesma: construir uma muralha de torres na borda d’água.

Foto: oblogdaruiva.files.wordpress.com

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