Lama sepulta oásis de vida e devasta rios em Minas

Antes de chegar ao Rio Doce, onda de rejeitos da Samarco soterrou rios, animais e mata nativa em área semelhante à de três parques das Mangabeiras. Nos vales atingidos resta hoje um rastro estéril de barro e água lamacenta

Por Mateus Parreiras – Enviado especial, no EM

Barra Longa, Mariana, Ouro Preto e Rio Doce – Uma área com 911 hectares (ha) onde viviam pacas, capivaras e gado completamente soterrada. Essa é a soma das extensões da calha, margens e matas ciliares dos rios do Carmo e Gualaxo do Norte devastadas pela avalanche de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro despejados depois da ruptura da Barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, na Região Central de Minas, no último dia 5. É como se quase três Parques das Mangabeiras (337ha) – a segunda maior unidade de conservação ambiental urbana do Brasil, localizada em Belo Horizonte – fossem sepultados embaixo da lama.

Esse território devastado compreende a projeção da calha principal dos dois mananciais sobre o mapeamento florestal de satélites feitos pela organização não governamental Global Forest Watch. A ferramenta, que tem resultados aceitos entre ambientalistas e entes do poder público, como a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), mostra como os estragos nos dois primeiros rios atingidos pela maior tragédia ambiental do país vão muito além dos peixes e são tão graves quanto os estragos que se abateram sobre o Rio Doce, mais conhecido e extenso.

Para se ter uma ideia dessa devastação, os satélites da ONG calculavam que no rastro da avalanche de detritos acumulados por mais de 30 anos estavam pelo menos 374,81ha de cobertura florestal ciliar, a maioria composta por espécies de mata atlântica, bioma que tem proteção federal por ser o ecossistema mais ameaçado do Brasil e um dos mais frágeis do mundo. Apenas em mata ciliar, é como se uma área maior que a do Parque das Mangabeiras tivesse sido arrancada de uma só vez, pelas raízes, deixando de fornecer estabilidade às margens dos rios, alimento aos peixes e abrigo a espécies da fauna nativa. Ambiente que era conservado, já que, nos últimos cinco anos, apenas 1,51ha havia sido derrubado na região.

O cenário mais devastador ocorreu no Rio Gualaxo do Norte, onde o tsunami de lama chegou depois de destruir Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana em que pelo menos duas pessoas morreram, três estão desaparecidas e 600, desabrigadas. Ao todo, até a noite de ontem, eram 11 pessoas procuradas, oito mortos identificados e quatro corpos sem identificação. Só no Gualaxo, a área total atingida foi de 381ha, o que corresponde a 77,4% de toda a extensão de calha e matas ciliares desde a nascente, em Ouro Preto, à foz, no Rio do Carmo, em Barra Longa. Mesmo com o acesso ao povoado restrito a bombeiros e policiais militares, devido à instabilidade de duas outras barragens (Santarém e Germano), a equipe do Estado de Minas retornou a Bento Rodrigues para mostrar a dimensão da catástrofe ambiental sobre mananciais e matas.

TURBILHÃO

A onda de lama foi tão forte que, ao entrar no leito, chegou a subir rio acima, vencendo a correnteza por mais quatro quilômetros, derrubando a ponte que levava ao distrito de Camargos e abrindo um cânion dos dois lados da estrada. A energia e o volume dessa massa de rejeitos e água invadindo o rio ficaram impressos no trecho próximo à estação de bombeamento de água da Samarco, no fundo do vale do Gualaxo. O edifício de concreto e metal ficou completamente desfigurado e os postes de energia foram revirados com cabos e equipamentos.

“Agora está tudo destruído, acabado. Pescaria aqui, de novo, quem sabe daqui a uns 15 anos, se é que ainda vou estar vivo para ver. Quem sabe meus netos”, José Antônio de Paula, morador de Mariana e pescador. 

Acima, um rastro marrom e linear marcou na área de densa mata atlântica o nível máximo que atingiu a inundação de lama e rejeitos minerais, chegando a 12 metros de altura pelas bordas do vale do Rio Gualaxo do Norte. Sob esse marco, até a margem do manancial, um tapete de troncos, galhos e raízes de madeiras de lei apodrece emaranhado na lama endurecida. No fundo dessa estrada de lama e destruição, em meio ao deserto ressecado, corre a água vermelha, de aspecto denso e estéril, que substituiu uma correnteza que costumava ser clara e repleta de peixes.

EXTINÇÃO EM MASSA

Na região, ninguém mais vê traço dos lambaris, traíras, mandis, acarás e tilápias que antes eram fisgados pela comunidade. Para muitos pescadores, a lama extinguiu todos, já que não foram mais vistos espécimes na zona atingida, nem mortos nas margens. “Agora está tudo destruído, acabado. Pescaria aqui, de novo, quem sabe daqui a uns 15 anos, se é que ainda vou estar vivo para ver. Quem sabe meus netos”, lamenta o servente e pescador José Antônio de Paula, de 49 anos, morador do distrito vizinho, Santa Rita Durão.

A tristeza para ele é maior, porque, entre os barrancos para pescaria, tinha predileção pelos de Bento Rodrigues, para onde ia todos os sábados. Tinha até pontos preferidos nas margens do Gualaxo do Norte, onde sabia que os peixes “mordiam mais”. “Uma vez, um colega meu viu uma traíra grande, bitelona mesmo. Combinamos de ele armar o anzol em cima (no alto do rio) e eu mais embaixo. Na hora que senti a fisgada, vi só o olhão dela pulando. Uma alegria, rapaz, pegar aquela bitela de 1,2 quilo.” Emoções e locais que agora existem apenas na memória do pescador, que nem consegue mais reconhecer os antigos pesqueiros, sepultados debaixo de tanta lama.

Destaque: Turbilhão de 62 milhões de metros cúbicos de rejeito deixou impressas nas pedras e na mata ciliar as marcas de sua força, revelada também nos destroços de estação e em carros atolados pelo tsunami de lama. Ffoto: Leandro Couri /EM/D.A Press

Enviado para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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