Por quantos dias uma tragédia como a que começou em Mariana é notícia?

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Nos últimos dias apostei comigo mesma por quanto dias a tragédia que começou em Mariana seria notícia. Faço questão do “que começou” na medida em que – insisto – ela vai descendo rios abaixo sem matar pessoas, é verdade, mas arrasando com vidas outras: peixes, tartarugas, caranguejos, outras espécies da fauna, com repercussões na flora, e, ainda, destruindo os meios de vida de comunidades ribeirinhas e de pequenos agricultores e pescadores artesanais, além do abastecimento de água potável. Sem contar que autoridades preocupadas em desassorear o rio Doce para que tudo desemboque logo no oceano esquecem que também lá a onda de lama tóxica causará desgraças. Dito isso, volto ao início: quantos dias?

Decidi acompanhar um jornal específico, O Globo, que enviou inclusive repórteres do Rio de Janeiro e de São Paulo para cobrir a matéria.

Nos primeiro dias, foram manchetes e fotos de primeira página, com alguns textos bem escritos, revelando sensibilidade por parte de seus autores. Samarco, Vale e BHP foram mencionadas, como não poderia deixar de ser, embora, é claro, não exatamente com a cobrança que seria justa e necessária. E, aos poucos, o número de páginas e de espaço foi minguando.

Hoje, finalmente, Mariana saiu da primeira página, sem direito sequer a alguma pequena chamada apontando para um espaço interno. Por que algo muito importante havia acontecido?  Vejamos!

A manchete principal do jornal foi “Governo endurece contra bloqueio de estradas”. A segunda, bem menor, “PSDB agora decide romper com Cunha”. Com destaque no rodapé inferior, chamadas para as páginas de esportes (“Botafogo na primeira divisão”) e para o segundo caderno (“‘Jane the virgin’, piadas e ativismo”). Na tradicional coluna para outras matérias com destaque, temos “Levy sofre um novo desgaste”;  “Acidente mata executivos” (com direito aos respectivos nomes e cargos, enquanto as demais vítimas mereciam a menção “e dois tripulantes”); “Esquerda unida derruba premier”; “Eike não poderá dirigir empresas”; e ainda menções – sob o título Obituário – às mortes de Helmut Schmidt, Sandra Moreyra e Allen Toussaint, nessa ordem.

Claro que fui buscar onde estariam, afinal, as reportagens sobre o desastre. E descobri!

Logo na página 2, na coluna dedicada a falar sobre o próprio jornal (“O Globo Por Dentro”), o título “O drama nos escombros” aborda, no passado, a cobertura feita em Mariana pelos enviados especiais: Mariana Sanches, Dandara Tinoco e Daniel Marenco. Segundo o texto, “a equipe percorreu mais de dois mil quilômetros em busca das histórias dos atingidos e no rastro da lama”, (…) “como preconiza a escola clássica do bom jornalismo”. E promete, em clara contradição com o espaço dedicado à questão na própria edição: “Nem todas as questões que envolvem a tragédia estão esclarecidas ainda. Esta é uma história que as repórteres pretendem ainda seguir”. Será que o farão mesmo?

Nas páginas seguintes, nada. Mais de assuntos ‘urgentes’, como as novíssimas alegações de Eduardo Cunha de que o dinheiro na Suíça foi a devolução de empréstimo a um falecido. Finalmente, na página 8, a tragédia volta à tona.

Na metade superior, “Amargura às margens do Rio Doce”: em três colunas dividindo espaço com uma foto, Dandara Tinoco procura mostrar as reações de pescadores e moradores à desolação dos peixes buscando os barrancos enlameados do rio para respirar. À direita, numa coluna menor e sem autoria, “Sobe para seis o número de mortos em Minas” dá conta desse outro obituário específico. Abaixo, ocupando cerca de um-terço, se tanto, da metade inferior da página, um texto do correspondente em Washington: “Descoordenação amplia a tragédia”. E nele, pela primeira vez, a menção às empresas que a causaram.

Embora pequeno e sem aprofundar questões, o texto de Henrique Gomes Batista é crítico e dá nome aos bois da economia. Fala dos desencontros governamentais (federal e estaduais) quanto à legislação relativa a barragens, dizendo que as autoridades batem boca enquanto a população sequer sabe direito os riscos que corre. Conta que nos Estados Unidos toda a legislação foi reformulada a partir da morte de 14 pessoas no rompimento de uma barragem em Idaho, em 1976, e menciona as diversas obrigações que as empresas passaram a ter na prevenção a desastres. Elas incluem planos de evacuação de populações envolvendo, mais que as sirenes (que a Samarco não julgou necessárias na medida em que “não eram obrigatórias pela legislação”), mensagens de texto nos celulares de todos os moradores, alertas nas emissoras de rádio e tevê etc. E ele conclui:

“Coisas que a BHP Billiton e a Vale, sócias da Samarco [sic], estão habituadas em suas operações nos EUA, no Canadá e na Austrália, mas que não existem no Brasil e nem foram cobradas por autoridades locais”.

Exceto pelo deslize quanto à propriedade da Samarco, a crítica é revoltantemente justa, inclusive na medida em que se refere a algo recorrente entre nós. Relembro, por exemplo, as declarações de um promotor alemão de que a ThyssenKrupp não conseguiria licença para instalar no país uma siderúrgica semelhante à que vem degradando vidas na periferia do Rio de Janeiro. Relembro também a denúncia de “racismo ambiental” oferecida pelo Ministério Público do Espírito Santo contra a ArcelorMittal, pelo mesmo motivo: usar aqui tecnologia ultrapassada, que seria impedida de utilizar na Europa. Ambos os casos estão noticiados neste blog. Ambos fazem parte da cadeia da mineração. Ambos mereceram e continuam a merecer reduzido (ou nenhum) espaço por parte da grande mídia.

Que capitalismo e democracia não ‘combinam’ é algo mais do que notório. Mas tem que haver pelo menos limites para a ganância desenfreada. Governos estão aí para isso: para de alguma forma garantir que, mesmo explorados, desrespeitados, ignorados, até, na maioria dos direitos da cidadania, sejamos pelo menos poupados do escárnio. Já que temos tanto ‘prazer’ em elogiar e imitar o que há de pior em outros países – Estados Unidos em particular, como a votação da abjeta Lei do Terrorismo está a demonstrar – que pelo menos usemos isso como justificativa para, no mínimo, obrigar essas empresas que sugam e destroem o nosso solo, a nossa água e as nossas vidas a cumprir um protocolo de segurança para as populações que vivem sob as suas ameaças. Chega!

Destaque: A população em busca de sobreviventes, nas primeiras horas.

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