Por Ivanilda Figueiredo* – Plataforma Dhesca
Democracia não é o regime político no qual a maioria impõe as diversas minorias suas decisões. Democracia não se faz apenas nos votos. Democracia necessita antes de tudo de garantia de direitos. É preciso um ambiente onde cada indivíduo, independente de suas características e de pertencer, ou não, à maioria tenha direitos assegurados e que não possam ser arbitrariamente usurpados.
Por isso, é característico dos ambientes democráticos que as maiorias sejam ocasionais. Quantos direitos hoje consolidados já não foram rejeitados pela maioria? As convicções humanas são sujeitas à irascível atuação do tempo.
A escolha por determinada crença religiosa, por exemplo, modifica-se continuamente. O Brasil é um país majoritariamente cristão – 86,6% da população (IBGE) – mas a proporção de católicos e evangélicos mudou bastante. Entre 2000 e 2010, a religião católica perdeu em torno de 495 adeptos por dia enquanto a fé evangélica recebeu 4.383 novos adeptos diariamente (IBGE). Essa mudança pôde ocorrer tranquilamente por a Constituição brasileira assegurar a liberdade de crença como um direito fundamental e um Estado Laico que não interfere no direito de crer ou não crer, nem no modo de cada um professar sua fé.
Entretanto, a permeabilidade de valores religiosos num Estado Laico é um desafio para a garantia dos direitos humanos e do ambiente democrático, especialmente quando estes valores, de modo explícito ou não, são usados para restringir direitos.
A limitação do conceito de família, por exemplo, não se encontra presente nem na Constituição nem no Código Civil. Nenhuma dessas duas normas enumera os sujeitos que compõem uma família. Porém, um projeto de lei que pretende criar tal definição e com isso excluir inúmeras famílias da designação legal vem sendo debatido atualmente. O projeto pretende restringir direitos sem uma justificativa jurídica para tanto.
O que seria uma justificativa jurídica? Um argumento capaz de demonstrar que a base da restrição é a violação dos direitos das famílias beneficiadas pelas famílias que o projeto pretende excluir. O mero fato de existirem diversas constituições familiares não incide em violação dos direitos das famílias ditas tradicionais. Seria preciso a existência de um real prejuízo. A mera convicção de um grupo, religioso ou não, majoritário ou não, de que as escolhas de outro grupo não são as mais apropriadas não é argumento legitimador de uma restrição de direitos.
Ao contrário, numa sociedade em que a maioria professa determinada religião se torna ainda mais importante proteger os direitos daqueles que professam religiões diversas. Numa sociedade na qual a maioria das pessoas defende uma versão “tradicional” de família se torna ainda mais importante proteger o direito das demais famílias. O direito deve proteger os mais vulneráveis e não vulnerabilizá-los mais.
O Estado Laico não desvaloriza as religiões, ele apenas delimita de forma clara o espaço da religião e do Estado. No último final de semana, dezenas de religiões demonstraram a importância de caminharem lado a lado, na 8ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, em nome do combate a intolerância e ao direito das religiões e seus adeptos serem respeitados. A Relatoria esteve presente dialogando com inúmeros líderes religiosos sobre o combate à discriminação.
No Brasil, a Constituição reconhece as religiões e seus espaços, prevendo até mesmo a possibilidade de colaboração de interesse público entre igreja e Estado e, portanto, o debate não é sobre a exclusão da religião da vida pública. O importante é o reconhecimento de que valores religiosos não podem ser alçados a categoria de argumentos de razão pública capazes de justificar a restrição de direitos de toda a coletividade.
* Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico, da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil. Publicado pelo Brasil de Fato.