Por Emídia Felipe Portal Nordeste de Determinantes Sociais em Saúde, vinculado a Fiocruz
Há seis anos, a questão racial tem recebido mais atenção quando se fala em saúde. Desde 2009, quando o Ministério da Saúde começou a implementar a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra(PNSIPN), diversos avanços foram alcançados, como campanhas focadas nos profissionais e coleta de dados específicos. No entanto, para representantes de movimentos sociais e pesquisadores, é preciso maior divulgação e consistência nas ações para que o preconceito pare de afetar o atendimento e o tratamento de pacientes.
Com gestão compartilhada entre os municípios e os governos Federal e Estadual, a PNSIPN tem como meta principal o esforço para “reverter as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional que funcionam como determinantes sociais das condições de saúde dessa população”, como esclarece o Ministério da Saúde (MS).“O Ministério da Saúde compreende que o racismo esta presente na sociedade brasileira como um todo e, por tanto também está presente no SUS. Sendo o racismo institucional diretamente ligado à forma como a sociedade está estruturada e com a falta de reconhecimento da cidadania plena da população negra, impedindo-a de acessar integralmente bens e serviços, sendo que essa realidade também se expressa na saúde” diz a coordenadora do Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Dagep), do MS, Kátia Souto.
Para ela, entre as principais conquistas da política estão a criação de uma capítulo dedicado à saúde dentro do Estatuto da Igualdade Racial; a pactuação do 2º Plano Operativo na Comissão de Intergestores Tripartite, que tem por objetivo estabelecer estratégias de aplicação desta política; e a campanha Não fique em silêncio – Racismo faz mal à saúde. “O Ministério teve a coragem de pautar esse tema em 2014, ano em que ocorreram vários casos de racismo no País e no mundo, especialmente no esporte”, destaca Kátia Souto. Ela lembra que campanha sensibiliza profissionais e usuários do SUS e faz o alerta de que a discriminação racial muitas vezes contribui para o processo de adoecimento, e que ela também se reproduz nos espaços de saúde do SUS.
Além da questão do preconceito, a população negra tem necessidades especiais de saúde. Doenças como diabetes, hipertensão arterial e miomas são mais comuns entre negros. Por isso, outros aspectos da PNSIPN são importantes, como o incentivo à pesquisa e à coleta de dados que possam basear novas ações. Informações da Secretaria de Vigilância em Saúde, por exemplo, mostram que em 2013, o coeficiente de detecção de casos novos de hanseníase na população negra (pretos e pardos) foi de 20,6/100 mil habitantes, representando um total de 21.645 casos novos. Já entre os não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 17,8/100 mil habitantes (8.711 casos novos).
Ajustes necessários
A professora Ângela Maria Benedita Bahia de Brito, da Faculdade de Medicina de Alagoas reafirma o papel importante da PNSIPN. No entanto, para ela, é preciso dar maior visibilidade às mensagens e às ações dessa política. “Essas abordagens necessitam ser mais eficientes, firmes e constantes. O racismo está presente todos os dias, todas as horas”, lembra a pesquisadora e militante. Entre outras experiências com a difusão desse conhecimento entre profissionais de saúde, Ângela Brito exemplifica com um caso que ocorreu na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas, onde é oferecida a disciplina eletiva no Mestrado profissional Raça, racismo institucional, ensino a práticas na saúde. “Apresentei a PNSIPN e durante a discussão citei a campanha do SUS com a visualização do cartaz. A turma composta de enfermeiras, assistentes sociais e outras ocupações profissionais, inclusive lotadas no hospital universitário, não tinham conhecimento do fato”, conta.
Posição semelhante à da pesquisadora, militante e editora do blog População Negra e Saúde, a enfermeira Emanuelle Góes. Ela também acompanha a PNSIPN e concorda com o impacto benéfico, afirmando que os movimentos sociais têm sido incluídos nas discussões. “O que observo que há uma oscilação da implementação da política”, explica. O exemplo que ela dá é de um caso que considera emblemático: “Em um município como Salvador, onde a política parecia consolidada (foi o primeiro município a implementar e produzir ações com resultados de impacto), hoje parece que nem existe, parece que se esvaiu”, revela. Em contrapartida, relata a enfermeira, em estados do Sul do Brasil os ganhos têm sido mais constantes.
Setor privado
Outro desafio, que vai além da PNSIPN no âmbito do SUS, é a rede privada. Para Ângela Brito, nesse ambiente a população negra é ainda mais afetada, seja com o preconceito ou com omissão de dados importantes para mapeamento das doenças que afetam mais a raça. “Nas unidades particulares o racismo se apresenta mais cruel e discriminatório”, ressalta a pesquisadora, que fala sobre outra situação, desta vez no Projeto Glaucoma, desenvolvido pelo SUS em clinicas oftalmológicas. “Embora a doença seja prevalente da população negra, o projeto não é voltado, especificamente, para ela. O que mais chama atenção é a não declaração do quesito cor. Como faço parte desse projeto, questionei a atendente, ao preencher a ficha, e ela disse ‘não ser necessário, porque ele sabem que a maioria é negra’. Acredito que esses ‘pequenos’ detalhes irão fazer a diferença nos dados estatísticos”.
Emanuelle Góes diz que ainda é complicado ter acesso e identificar questões discriminatórias ligadas à raça em um serviço privado, por isso as informações sobre este assunto são de difícil acesso. Contudo, também chama a atenção para a não determinação da cor do paciente na rede particular. Para ela, esse comportamento também está ligado a uma desconexão entre público e privado na saúde. “A questão são os limites e os interesses primeiro da negação do racismo, tanto no espaço público ou privado, e segundo a esfera privada não se sente parte do SUS e não se sente obrigada a seguir as políticas do SUS, a não ser quando tem a ver com financiamento/recurso. Pelo menos essa é a minha sensação”, opina a pesquisadora.
Para ambas as militantes, em todas as questões envolvidas é necessário que a PNSIPN chegue de modo mais amplo e claro aos profissionais e aos pacientes. “A política ainda precisa alcançar a ponta, as pessoas, as comunidades de forma efetiva. Precisa descer e chegar e fazer parte da rotina do atendimento e do cuidado”, comenta Emanuelle Góes. “O que realmente nos falta é a divulgação dessa política para a população, de forma geral, nos meios de comunicação. Não só na mídia especializada, mas em meios mais populares. Sei que é difícil tarefa, mas é necessário que o assunto seja “popularizado” e, aí sim, discutido”, completa Ângela Brito.