“As humanidades são um eixo formador e a Filosofia, em particular, que é a primeira área organizada de pensamento humano, deveria ser o primeiro eixo formador de toda a educação; não há educação sem princípios filosóficos”, afirma o historiador
Por Patricia Fachin – IHU On-Line
A cultura brasileira refletida na política e na educação, a qual pode ser avaliada a partir da história do nosso país, é o fio condutor que permeia as reflexões de Leandro Karnal em sua entrevista à IHU On-Line, concedida pessoalmente, por ocasião de sua participação na Aula Inaugural das Licenciaturas, na Unisinos.
Ao comentar a crise política e as manifestações dos últimos dois meses, ele diz: “nós, brasileiros, temos dificuldade com a organização política. (…) Somos muito românticos, de grandes casos, muito pouco dados a essa política metódica, eficaz, administrativa como a da Angela Merkel ou a política afetiva e prolongada como a da Michelle Bachelet, no Chile”.
A situação que toma como exemplo para explicar sua afirmação é um caso recorrente nas salas de aula: “No primeiro dia de aula, os alunos entram em delírio e se incendeiam com um tema; no segundo dia de aula, o mesmo tema já não causa a mesma reação. A partir do terceiro, quarto dia, em que eles têm que ler e passar de um patamar a outro, atravessar aquele ponto que marca as diferentes fases do conhecimento, aí é mais complicado. E funciona assim nossa política: grandes acontecimentos e depois a diminuição”.
Para ele, a baixa popularidade da presidente Dilma não é uma novidade. Obviamente, enfatiza, ela está relacionada a erros na condução da política econômica e ao não cumprimento das promessas feitas na campanha eleitoral, mas FHCe Lula, em seus segundos mandatos, também enfrentaram uma situação difícil. “No segundo mandato do ex-presidente FHC houve rumores de impeachment junto à Comissão do Congresso. Lula, apesar de toda a sua popularidade, também enfrentou muitos desafios”, lembra. “O drama que envolve todos os políticos brasileiros é nenhum ter um projeto estadista de construção de país; todos têm um projeto de poder, todos leram Maquiavel, nenhum deles tem uma ideia tocante à educação que ultrapasse 30 anos”, resume.
Antes de falar para aproximadamente mil alunos dos cursos de licenciatura da Unisinos que assistiram à sua palestra sobre por que continuar a ser professor, Karnal expos à IHU On-Line algumas de suas preocupações com os rumos da educação no país no sentido de superar o analfabetismo, o analfabetismo funcional, e de como elaborar um projeto educional que leve em conta a formação completa e integral de um aluno. Entre os desafios postos para alcançar esses objetivos, pergunta: “Como captar, para dar aula, profissionais que pertençam à elite intelectual e não alguém de baixo desempenho acadêmico?” Na avaliação dele, “quase todos os professores que lecionam, com raras exceções, não estão conseguindo transmitir aos alunos o entusiasmo, a alegria e a vontade de conhecer”.
Entre os “dramas do magistério”, Karnal chama atenção para “a falta de verificação no mundo intelectual das licenciaturas, a falta de feedback, a falta de retorno”, que faz com que os “erros” cometidos pelos professores só apareçam mais tarde. “Um professor, quando erra, só terá seu erro percebido lá na frente, o que torna o magistério menos possível de ser punido imediatamente pelos seus equívocos. O erro do professor irá aparecer mais tarde, quando pego um aluno no doutorado e ele não sabe colocar crase. Significa que lá na antiga 5ª série ou no 6º ano alguém falhou. Esta falha foi sendo levada até o aluno chegar na ponta da pirâmide e eu constatar que um aluno, aos 30 anos, fazendo doutorado, põe crase diante de ‘a ele’ ou diante de verbo”, frisa.
Um projeto educacional eficiente, pontua, deve levar em conta uma proposta de “pensar no Brasil para daqui a 50 anos”. E enfatiza: “Empenhando tudo neste momento, nós poderíamos imaginar, em 2050, uma pátria com uma educação mínima e garantida”.
Leandro Karnal é graduado em História pela Unisinos, com doutorado em História Social pela USP. Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, membro de corpo editorial da Revista Brasileira de História e da Revista Poder & Cultura. Entre suas publicações, destacamos A Escrita da Memória – Interpretações e Análises Documentais (São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004) e Cronistas da América (Campinas: Unicamp, 2004). Confira a entrevista.
IHU On-Line – A que atribui a baixa popularidade da presidente no segundo mandato?
Leandro Karnal – Segundos mandatos são, historicamente no Brasil, piores que os primeiros. No segundo mandato do ex-presidente FHC houve rumores de impeachment junto à Comissão do Congresso. Lula, apesar de toda a sua popularidade, também enfrentou muitos desafios. Segundos mandatos são uma experiência recente, de FHC em diante, e eles são difíceis considerando a complexidade do país e as dificuldades regionais e de integração. A partir do momento em que se esgota a ideia da novidade, a situação fica mais complicada. Muitas pessoas pensam em sugerir mandatos de cinco anos sem reeleição, como era antes; talvez essa seja uma possibilidade.
Parte da impopularidade de Dilma nasce de erros estratégicos dela, erros de condução de política econômica, mas, em parte, ela está herdando uma crítica que ora é contra o PT, ora é contra tudo; Dilma apenas é o ponto final. Então, em parte os erros são dela e em parte os erros nascem de má condução política, da falta de carisma, da falta de formação política, de nunca ter enfrentado um cargo eletivo e de ser ruim na hora de debater, por exemplo. Um político, independente da sua origem, na hora de debater cria uma experiência que os políticos profissionais têm: que Lula tinha, que Aécio tinha e FHC tinha, mas que Dilma, que é uma técnica, que não passou pela experiência eletiva sistemática, não tem e sofre muito no cargo. O ser humano Dilma sofre muito; embora seja seduzida pelo poder, tem dificuldade em enfrentar a liturgia do poder.
IHU On-Line – Quais são os erros que ela cometeu?
Leandro Karnal – Ela prosseguiu uma política de distribuição de renda, que é uma política boa, mas errou bastante na comunicação com as pessoas, e acertos do governo não foram divulgados, enquanto erros do governo foram hiperbolizados. Ela errou em administrar, com seu pouco carisma, as diversas alas do PT junto à tradicional fisiologia do PMDB; errou tendo setores comprometidos com a ideologia de esquerda do PT, como é o caso do Ministro Rossetto, que tem mais o discurso da esquerda, com uma política absolutamente conservadora do ponto de vista da direita econômica. Administrar esses cargos e as muitas demandas foi difícil.
Ela também é uma espécie de herdeira de uma vontade de utopia que se instalou no país a partir da estabilização financeira. A partir do início do governo FHC, com o fim da inflação, com as revoluções do iogurte e do frango, as chamadas classes C e D passaram a andar de avião e esse foi o primeiro patamar de sedução e deslumbramento dessas classes. Esse modelo mostrou esgotamento ainda no governo FHC. Lula conseguiu governar com habilidade carismática extraordinária, ao mesmo tempo que teve baixíssima capacidade administrativa. Dilma, ao contrário, tem imensa vontade administrativa e baixíssima capacidade política e carismática. Os grandes líderes políticos são muito mais organizadores de vontades e coordenadores de desejos do que propriamente a pessoa que toca a máquina do Estado no dia a dia, e, como símbolo, Dilma é muito ruim. Lula chora, como chorou no enterro do Eduardo Campos, genuinamente. Ele não finge chorar; chora genuinamente porque é um homem emotivo.
Erro de comunicação
Tanto Dilma como Fernando Henrique têm que forçar um pouco mais; Fernando por ser um intelectual e Dilma por ser uma mulher técnica. O erro da comunicação dela é exatamente a transmissão que ela faz; é o mesmo erro da Hillary Clinton no início da carreira. Todos achavam que ela era uma mulher arrogante, o que disfarçava o fato de ela ser uma mulher tímida. E as pessoas tímidas, com frequência, parecem arrogantes para nós porque elas se defendem muito, sofrem muito com a plateia, com o público. Dilma, por exemplo, está no cargo em que foi colocada, está lá como “Pilatos no Credo”; ser presidente da República não é um projeto de vida dela, não é o ápice de uma carreira. Ela é uma técnica do PDT que chega lá por vontade do Lula, como em São Paulo chegou o Pitta por vontade do Maluf.
A presidência deveria ser o topo de uma carreira que começou na vereança, passou a prefeito importante, depois senador. Mas, essa trajetória que outros têm, Dilma não tem. Os anos de vereador e de senador de Fernando Henrique, as derrotas seguidas de Lula, sua experiência ruim como deputado federal, suas candidaturas a governador do estado de São Paulo, foram preparando eles para o debate. E a Dilma passou de técnica do PDT para área de petróleo, da área de petróleo passou direto para o Palácio do Planalto e do Palácio passou para a presidência, nunca tendo sido eleita síndica de um prédio, tendo fracassado como empresária, como organizadora de uma família e na condução política. É muita dor, é pouco talento, é uma inteligência mediana e é o desafio de enfrentar uma coisa que mesmo gente muito boa não consegue. Acima de tudo, olho para a Dilma como uma mulher que está sofrendo muito no cargo neste momento.
IHU On-Line – Depois da reeleição dela, já aconteceram três manifestações, uma em março, duas em abril e outra por conta da aprovação do PL 4330. Como analisa as manifestações de rua críticas ao governo?
Leandro Karnal – Vou dizer uma coisa pouco científica, mas intuitiva: as manifestações no Brasil tem o poder de durar três semanas no máximo. Charles Talleyrand-Périgord, o famoso ministro de Luís XVI, de Napoleão e de Luís XVIII, dizia que não pode chover, porque se chover a consciência política se dissolve. As manifestações orquestradas e oficializadas pela CUT e os organismos de sustentação do poder, e as manifestações, especialmente em São Paulo, que mostra uma classe média profundamente insatisfeita com o governo, têm um poder limitado.
Nós tivemos uma manifestação mais agressiva e mais concatenada recentemente contra o projeto de lei das terceirizações e mesmo assim a nossa capacidade de manter o que seria, para a esquerda, a revolução permanente ou o povo na rua, é muito baixa. É a nossa mobilização política que, em geral, é muito baixa. Dom Pedro II, visitando a Bahia no século XIX e depois visitando o Caraça, em Minas Gerais, escreveu em seu diário: “o brasileiro é fácil de inflamar e difícil de manter aceso”. Isso acontece porque a nossa política é romântica e a reação à política é romântica. Por romântica não entendo doce, simpática ou amorosa; quando se fala em romantismo em História, envolve-se principalmente o conceito de morte, de heroísmo, de épico, quer dizer, o romantismo é a estética da morte, é o amor de perdição também do Castelo Branco.
A política romântica
Nós somos muito românticos, de grandes casos, muito pouco dados a essa política metódica, eficaz, administrativa como a da Angela Merkel ou a política afetiva e prolongada como a da Michelle Bachelet, no Chile — agora ligeiramente manchada pela primeira denúncia de corrupção envolvendo a família dela —, ou essa política puramente carismática, mas de baixíssimo desenvolvimento administrativo, que é a do governo Obama. Obama é um dos oradores mais carismáticos da história e tem uma capacidade administrativa muito baixa.
Então nós, brasileiros, temos uma dificuldade com esses modelos e temos dificuldade com a organização política. A experiência começa na sala de aula: no primeiro dia de aula, os alunos entram em delírio e se incendeiam com um tema; no segundo dia de aula, o mesmo tema já não causa a mesma reação. A partir do terceiro, quarto dia, em que eles têm que ler e passar de um patamar a outro, atravessar aquele ponto que marca as diferentes fases do conhecimento, aí é mais complicado. E funciona assim a nossa política: grandes acontecimentos e depois a diminuição.
Presidente enfraquecida
O grande problema de uma presidente enfraquecida, sem muito apoio, dependente de um partido notoriamente fisiológico e sem corpo estruturado ideológico, como o PMDB, é que ela é obrigada a fazer todas as concessões. Há duas categorias de presidente terríveis na história: uma são os muitos fortes e outra são os muito fracos. Os muito fortes passam por cima de quaisquer coisas, e os muitos fracos têm que ceder a qualquer pressão. Há um problema em determinados momentos do apoio a Getúlio no Estado Novo, e, como se viu, no início do governo a força dele é gigantesca. Do mesmo modo há problemas em presidentes enfraquecidos e com pouco carisma também.
Os dois modelos são ruins para a nação. E o drama que envolve todos os políticos é nenhum ter um projeto estadista de construção de país; todos têm um projeto de poder, todos leram Maquiavel, nenhum deles tem uma ideia tocante à educação que ultrapasse 30 anos. E a educação só pode ser pensada em plano geracional, não pode ser pensada para quatro anos. Em quatro anos o aluno passa do terceiro para o oitavo ano. Tem de se pensar um modelo de educação que leve em conta o início do estudo de uma criança até o fim da pós-graduação, ou da educação técnica. E projeto educacional pressupõe um estadista, acima de tudo.
IHU On-Line – O senhor costuma dizer que o planejamento educacional deve ser pensado em uma perspectiva de 30 a 50 anos. Em que consiste sua proposta de um projeto educacional a longo prazo?
Leandro Karnal – A Espanha fez isso quando se redemocratizou: estabeleceu um projeto histórico que tinha até uma meta, quase cômica, de 100 anos. Os políticos que pensaram para os 50 anos, pensaram, para o bem e para o mal, algo com o que nós estamos dialogando hoje, como, por exemplo, a terceirização dialoga com o desmonte da máquina estatal populista, trabalhista montada por Vargas.
Então, voltando à questão do que seria um projeto educacional, diria que, em primeiro lugar, seria um projeto que não dependesse de ministros. Os ministros não podem mudar a estrutura de um projeto que, por exemplo, estabelecesse como superar esta marca persistente de analfabetismo no Brasil — estamos falando só do analfabetismo total, que oscila entre 9 e 11%, para fins de cálculo 10%.
Este analfabetismo total resiste década após década, ele foi fracassado pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral, foi fracassado pelos projetos sucessivos. Por quê? Porque é necessário estabelecer mecanismos permanentes de atração de adultos analfabetos, de cooptação de jovens universitários para jornadas alfabetizadoras, de programas de longuíssimo prazo para atrair e distribuir bolsas para universitários que vão dedicar suas férias e seus finais de semana a ajudar, como fez, historicamente e de maneira exemplar, Cuba, entre 1959 e 1962. Cuba passou de um analfabetismo típico de país terceiro mundista para o padrão Canadá em um espaço de três anos, inclusive com gestos autoritários, porque o governo forçava os jovens a irem aos canaviais alfabetizar — esse é o lado ruim de uma ditadura.
Superação do analfabetismo funcional
Mas é possível vencer o analfabetismo em três anos, e vencido o analfabetismo total, que é a chaga mais brutal do nosso fracasso, aí vem uma tarefa mais difícil a longo prazo, que é superar o analfabetismo funcional, cujo índice foi estimado certa vez, por Gustavo Ioschpe, em cerca de 50%, que são os brasileiros incapazes de ler um bilhete simples, um manual de instruções ou escrever uma série de textos simples. Esse analfabetismo funcional é mais difícil de ser combatido e precisa de uma política de mais longo prazo. Empenhando tudo neste momento, nós poderíamos imaginar, em 2050, uma pátria com uma educação mínima e garantida.
Em 1960 a Coreia do Sul tinha os mesmos indicadores sociais do Brasil quanto a analfabetismo e baixa qualidade nas universidades. A Coreia, em um espaço muito pequeno, investiu uma quantidade do seu PIB e se transformou, deu um salto e fez uma revolução a partir de um investimento político. Acontece que por mais que os programas sejam bonitos, como o “Pátria Educadora”, não há uma vontade efetiva e exata de educação como projeto.
Há fatos notáveis? Há. ProUni é um projeto notável; o projeto de multiplicação das universidades federais iniciadas no governo Lula é notável, porque, levando universidades ao Ceará, a Foz do Iguaçu, ao interior, a uma cidade do grande ABC, estão se atingindo pessoas que não eram atingidas por uma boa educação. Até o projeto — excelente na ideia, mas com problemas de implantação — da Universidade Zumbi dos Palmares, uma universidade com um recorte muito específico que tem a ver com nossa história, é muito interessante. Agora este tem que ser um projeto de extensão e de continuidade daqui para frente e não um projeto político. Quer dizer, tem de se pensar no Brasil para daqui a 50 anos.
Desafios
Passado isso, como resolver um dos crimes educacionais do Brasil, que são os jovens superdotados nas escolas públicas, os quais são destruídos, já que o ambiente da escola estadual, normalmente, não apoia alguém que tenha capacidades e interesses muito definidos? Um jovem que tenha vontade e é superdotado mentalmente — e isso acontece em todas as escolas — é esmagado pelo sistema. Para cada caso de um vitorioso que saiu do interior do Ceará e que está em Harvard, temos dezenas de casos de erros e de fracasso.
Como captar, para dar aula, profissionais que pertençam à elite intelectual e não alguém de baixo desempenho acadêmico? Como fazer as licenciaturas captarem os gênios da raça, como captam, por exemplo, a Medicina e o Direito? Aquelas pessoas de muita iniciativa, de cabeça muito inovadora, não vêm para os cursos de formação. Como transformar a base do sistema educacional, a educação fundamental e as pedagogas que atuam em geral nessa educação fundamental — dominantemente mulheres, por isso que eu uso o termo pedagoga —, em pessoas engajadas, bem remuneradas, ativas, criativas — coisa que não é a norma? Como fazer da carreira do magistério uma carreira sedutora para gente muito boa e não apenas para quem quer fazer alguma coisa para encher o tempo? Como canalizar a energia criativa para a área educacional?
Pelo que foi feito até agora por todos os governos, especialmente Fernando Henrique, Lula e Dilma, há projetos interessantes, mas não existe uma política educacional estruturada. Eu gostaria muito de uma política que não dependesse do ministro, que não dependesse da mudança eleitoral, que tivesse um plano de diretrizes e bases de fato e não apenas para constar, que tivesse uma estrutura pedagógica que estabelecesse essas metas, que estabelecesse as obras clássicas que constituem o pensamento nacional, que tornassem obrigatório que todos os alunos tivessem acesso a isso, que estabelecessem programas de jovens cientistas, que estabelecessem bolsas de pesquisa. Até o uso eleitoral pode resultar em uma coisa boa: mesmo considerando o interesse eleitoreiro no Programa Bolsa Família, ele representou a distribuição de renda reconhecida pela ONU, e olha que o valor é baixíssimo. Há bons programas e há boas ideias; é preciso torná-los sistemáticos.
IHU On-Line – Por que não se consegue atrair os “grandes gênios” para as licenciaturas?
Leandro Karnal – Em primeiro lugar — apesar de já ter sido pior e não ser mais tão grave —, o magistério não gosta de prestígio profissional. Eu dizer que estou na Medicina tem um valor centena de vezes maior do que dizer que estou na Pedagogia. O vestibular de Pedagogia é mais fácil do que o de Medicina, de Engenharia, de Direito, em geral. Se um rapaz ou uma moça manifesta à família o desejo de fazer Pedagogia, ele/ela é dissuadido. Em segundo lugar, tem sempre a ideia de que o professor é uma espécie de baby sitter de luxo que ocupa as crianças, e não um formador de cabeças e de futuro.
O magistério no Brasil, em particular, atrai essencialmente as classes média e baixa; é muito difícil que um industrial, um aristocrata, um financista destine suas filhas e filhos à carreira pedagógica. Isto atrai também uma mentalidade de classe média e baixa, classista e corporativa para o magistério. Falta de prestígio e de remuneração comparativa explicam isso, mas acima de tudo falta consciência do que representa essencialmente e estruturalmente a presença de um ser humano bom na sala de aula. Uma sala de aula e uma aula são formadas, exclusivamente, por um bom professor. Você pode estar embaixo de uma árvore ou pode estar em uma sala com laboratório de última geração — o laboratório é um complemento —, mas um mau professor anula o laboratório, enquanto um bom professor supera a falta do laboratório.
Aula é uma interação pessoal de transmissão de um entusiasmo, mas quase todos os professores que lecionam, com raras exceções, não estão conseguindo transmitir aos alunos o entusiasmo, a alegria e a vontade de conhecer pela sua área. O aluno inteligente, ao ver que o professor de Português diz que Os Lusíadas são fundamentais, mas não vê o professor lendo, irá concluir que aquilo é retórica. Ao ver o professor de História falando da alegria do passado e vendo o professor não exercendo essa alegria da construção da memória, entende que aquilo é retórica, é balela de gente grande que tem que dizer aquelas coisas.
IHU On-Line – O discurso acerca da má qualidade do ensino é recorrente no país. O que a má qualidade do ensino demonstra sobre o papel da universidade na formação de novos professores?
Leandro Karnal – Os cursos de licenciatura não são melhores ou piores do que os outros; eles são muito baratos, porque um curso de licenciatura usa, essencialmente, biblioteca, giz e a turma. Uma aula em um laboratório de Medicina ou de Física deve custar mais do que todo um curso de licenciatura de quatro anos.
No caso da Unicamp, a Medicina, que eu conheço, consome sozinha quase metade da verba da universidade, porque o hospital universitário tem uma demanda gigantesca. E aí vem um drama do magistério: um engenheiro, quando erra, tem um efeito muito imediato do seu erro; um médico, quando erra, tem um efeito muito imediato do seu erro, não é à toa que a tensão sobre os médicos, por exemplo, é tão grande que o curso de Medicina registre um número muito alto de suicídios e de alcoolismo; um professor, quando erra, só terá seu erro percebido lá na frente, o que torna o magistério menos possível de ser punido imediatamente pelos seus equívocos. O erro do professor irá aparecer mais tarde, quando pego um aluno no doutorado e ele não sabe colocar crase. Significa que lá na antiga 5ª série ou no 6º ano alguém falhou. Esta falha foi sendo levada até o aluno chegar na ponta da pirâmide e eu constatar que um aluno, aos 30 anos, fazendo doutorado, põe crase diante de “a ele” ou diante de verbo, ou seja, alguém errou.
Mas eu nem posso processar alguém. Agora, um médico perde o paciente, um engenheiro derruba uma ponte, um advogado perde a causa. Então, a falta de verificação no mundo intelectual das licenciaturas, a falta de feedback, a falta de retorno, faz com que a atividade de “semear carvalhos”, como dizia Rubem Alves, seja uma atividade que, com o tempo, se entenda que tanto faz o que se faça, não vai aparecer.
IHU On-Line – Como pensar em uma estratégica prática para resolver esse problema?
Leandro Karnal – Temos que pensar uma coisa que não tem a ver com o magistério apenas. Também temos de ver que a escrita formal se encontra em um momento de declínio universal, porque a comunicação está prescindindo dela. Talvez seja só sintoma de uma decadência da escrita formal, ou seja, o fato de que em breve nós não precisaremos mais escrever.
IHU On-Line – O senhor acha que isso será possível?
Leandro Karnal – Sim. Creio que é possível que nós possamos prescindir. Visitei uma escola onde havia, nos Estados Unidos, alfabetização em tablets e não se usa mais canetas. Uma professora perguntou como eles irão escrever se eles não tiverem o tablet. E a professora muito inteligente respondeu: tal como a senhora quando não tem caneta; não escreve. Sem instrumento de escrita, nós não escrevemos. Só que o instrumento ali é um tablet. Como fui alfabetizado com caneta-tinteiro, sinto falta do suporte material. É possível que a comunicação retórica de frases subordinadas, concatenadas com a beleza literária, estejam em declínio e nós sejamos tomados por uma comunicação imagética, rápida e, usando um termo técnico, apocopado. É possível que ela esteja em declínio. Como eu não consigo conceber o mundo sem isso, é só sinal de que estou envelhecendo. Quando surgiu a caneta esferográfica no Brasil, após a Segunda Guerra Mundial, os bancos proibiram que se fizessem cheques com caneta esferográfica, porque não confiavam na caneta. A mudança técnica ou de suporte ou de estruturação é uma mudança importante.
Naturalmente o pensamento não precisa ser exclusivamente baseado na escrita. No pensamento você encontra contraposição de ideias: uma mentalidade mais rápida, mais imagética, mais holística e mais dada à sobreposição de tela do que ao adensamento de um texto é, provavelmente, um novo tipo de inteligência que esteja emergindo, que foi criticada por gente como Nicholas Carr, que escreveu o livro The Shallows, ou seja, Os superficiais, e foi criticada por pessoas que interpretam que este é um declínio do conhecimento. Declínio do conhecimento é uma palavra utilizada com frequência por uma geração que não reconhece na seguinte os valores aos quais ela se afeiçoou.
IHU On-Line – Na sua avaliação, não é um declínio?
Leandro Karnal – Não é um declínio. Eu posso afirmar categoricamente que meus alunos de 2015 são tão inteligentes quanto eram os de 1985. A grande questão que está mudando é o perfil da inteligência, o tempo de atenção, o uso de imagens, o foco, o adensamento, a capacidade incrível dos jovens de captarem muitas coisas ao mesmo tempo e a capacidade cada vez menor de se focar em um único ponto. Desaparece o leitor de Vieira.
IHU On-Line – O senhor tem certeza?
Leandro Karnal – Tento ser neutro para pensar que um dia, quando surgiu o romance, considerando tecnicamente o primeiro romance em 1605, mas quando surgiram os romances clássicos como Robinson Crusoé ou As Viagens de Gulliver, era porque a burguesia classe média europeia não conseguia mais ler os épicos, não conseguia mais ler Ilíada e Odisseia, porque demandavam uma quantidade de erudição e um tempo que essa classe média não tinha. O romance passou a dominar no século XIX. Eis que surge depois o conto, quer dizer, o conto já existia antes, mas bastava dominar o conto como a grande estratégia literária porque não havia mais tempo para ler o romance. E não há mais inteligência ou menos em quem lê um conto, ou um romance, ou um épico.
IHU On-Line – Mas a leitura não implica um processo de alfabetização, de ensino e de aprendizagem?
Leandro Karnal – Existe a alfabetização, se for considerada por você como um processo de letramento exclusivo, mas também há uma alfabetização da imagem e há uma alfabetização técnica. Provavelmente, comparado com um jovem, eu seja um analfabeto técnico, e comparado comigo ele seja um analfabeto funcional do texto; cada um se apega a uma estrutura. Poder resolver coisas no mundo, como enviar uma mensagem e se fazer compreender, pode ser mais interessante em 2015 do que a análise sintática de uma oração reduzida de gerúndio. Então, tenho que tentar pensar se houve uma mudança. O que acontece hoje, que é um procedimento inevitável e crescente, é o fechamento da comunicação em unidades individuais, quer dizer, eu não me comunico mais com quem está na minha frente, mas me comunico com quem está longe, no espaço virtual. Não há mais pronome de tratamento. A velocidade é absoluta e cada vez maior: mais de três frases esgota a capacidade de concentração.
A minha ideia de inteligência é um aluno capaz de enviar um bom WhatsApp e capaz de ler um trecho de Os Lusíadas, capaz da síntese e capaz da análise, capaz do sintético e do analítico, do extensivo e do apocopado. Mas não sei se isso é muito possível; é como se eu dissesse, metaforicamente, que não posso dizer que o surgimento da sinfonia Romântica seja uma melhoria ou um declínio em relação à sinfônica Clássica ou à Barroca.
IHU On-Line – Como o senhor vê a perspectiva de educação neste cenário?
Leandro Karnal – Muito complicado, porque o professor fala uma linguagem arcaica em um espaço muito arcaico, que é a sala de aula. Provavelmente é o espaço mais arcaico que nós já criamos. É provável que a missa tenha se transformado mais nos últimos 300 anos do que uma aula. Alguém que ressuscitasse do século XIII no século XXI reconheceria elementos da igreja católica muito transformados, mas reconheceria imediatamente uma sala de aula, porque apesar das roupas serem diferentes ou até o comportamento, nós estamos diante de uma experiência de continuidade.
A sala de aula é quase insuportável e o salto que nós temos que dar é um salto qualitativo e de mudança de enfoque. E esse salto só pode ser dado se eu entender a estrutura da minha área de conhecimento, e entender que não tem diferença nenhuma eu trabalhar o Império Bizantino ou a Guerra do Vietnã. O que é importante é que eu consiga produzir, fazer com que o aluno pense. Mas se eu ainda sigo um modelo francês de adaptação de todo o conteúdo, do paleolítico até a história contemporânea, vou dar um pouco de cada assunto e transformar a aula em uma corrida contra o tempo, porque este aluno vai acompanhar com maior ou menor interesse cada período estudado.
Agora, a função da sala de aula — e nisso contrario o que pareço estar dizendo até agora — não é apenas registrar como o mundo mudou ou reforçar o caráter de rapidez, de síntese ou de superficialidade da comunicação de computador, a função de sala de aula é também quebrar este paradigma. O professor não pode existir fora da cabeça do aluno, mas não pode existir submisso à estrutura da cabeça do aluno. Meu aluno é meu ponto de partida, não meu ponto de chegada. Eis que, se pretendo implantar uma sala de aula com essa linguagem arcaica, vou fracassar, mas se pretendo apenas ser legal e fazê-lo reconhecer elementos claros do seu mundo, vou fazer uma educação inútil, porque o mundo já faz isso e ele não precisa de mais reforço nesses pontos.
Para uma educação ser significativa, ela tem que partir do paradigma do aluno, mas construir outro paradigma. Por exemplo, que ele seja capaz de selecionar dentro do mar de informações na internet quais são as corretas ou críticas, porque isso só a escola pode fazer, porque nem o computador e nem os amigos irão fazer. Ele tem que aprender a socializar conhecimento em um mundo em que o conhecimento se torna cada vez mais autista e individualista. Ele tem que aprender a criticar paradigmas de construção de conhecimento, tem que entender o computador como uma caixa de informações na qual pode tirar o que deseja.
Eu posso fazer o aluno pensar com a leitura de Os Lusíadas, mas para isso preciso dominar a estrutura, preciso transmitir a beleza do legado do humanismo e da formação crítica para ele; isso é complicado e pressupõe profissionais muito bons.
IHU On-Line – Como vê a formação do pensamento nas Humanidades?
Leandro Karnal – As Humanidades deveriam ser o núcleo duro de pensamento deste homem integral. O conceito de humanismo se firmou na Europa do Renascimento, com a ideia do humanista, do homem que estuda línguas, artes, filosofia, que é sempre um homem universal. Este homem com uma preocupação integrada com o ser humano sistêmico é a grande contribuição que vem desde Erasmo de Rotterdam, Descartes até hoje. As outras áreas de conhecimento duro como a Física, a Medicina, a Matemática, têm uma tendência à individuação do seu conhecimento. As humanidades são um eixo formador e a Filosofia, em particular, que é a primeira área organizada de pensamento humano, deveria ser o primeiro eixo formador de toda a educação; não há educação sem princípios filosóficos. E o que é filosofia? É como diz a palavra na célebre formação do primeiro filósofo, é a palavra que representa o amor à sabedoria; não a sabedoria. Amor à sabedoria é procura, é ter prazer na descoberta, pode ser na descoberta artística, literária, científica, é saber que eu estabeleço links com a humanidade, que não estou sozinho e que esta humanidade me distancia do pensamento fundamentalista.
O pensamento fundamentalista nasce quando não tenho mais contato com a humanidade e começo a olhar um aspecto do mundo. Einstein é Einstein porque é físico, mas Einstein é Einstein porque tocava violino. Barthes é um grande linguista, mas é um homem também formado em piano. Nietzsche é um estudioso de grego e latim e filósofo. Então, essas características deram a essas pessoas a capacidade de construir e desconstruir esses temas. Quando eu começo a pensar só em um aspecto religioso, em um aspecto do conhecimento, em um aspecto da ciência, me torno literalmente um fundamentalista.
IHU On-Line – Hoje nas Humanidades há mais amor pela sabedoria, ou fundamentalismo e hegemonia de pensamento?
Leandro Karnal – Não, não noto hegemonia; as Humanidades estão longe do pensamento autoritário tradicional, mas pode ser puro otimismo de historiador. É comum nas universidades o pessoal da área de Humanas ser mais crítico do que o pessoal de outras áreas, às vezes tão crítico em cursos de Ciências Sociais ou História ou Filosofia, que se tornam quase bizarros diante do resto do mundo.
Quando trabalho com médicos ou com engenheiros, percebo que eles emitem opiniões que demonstram total descuido, por exemplo, com a noção de preconceito. Pelo menos na área de História, Filosofia, Antropologia, as pessoas têm mais medo de emitirem uma opinião preconceituosa. Mas, em geral, as Humanidades boas ou ruins que nós possamos ter, têm como objetivo mostrar a historicidade do conhecimento. O conhecimento é histórico, não é dado, não cai do céu; é uma construção.
A ideia de que Nietzsche colocava casaca à noite para ler os clássicos, a ideia que aparece também no documentário Santiago, em que o mordomo da família, que é o Santiago, tocava piano à noite bem arrumado porque estava se encontrando com seres superiores, é uma ideia interessante, porque quando eu leio, à noite, um texto que me irmana com a humanidade, a expectativa é de que eu abandone o autoritarismo e veja o ser humano na sua dignidade total, que eu entenda que as expressões religiosas e políticas são menores do que a grande expressão humana.
Em geral, a fama dos professores de Humanidades nas escolas é a fama de hipercríticos e “esquerdinhas”, que é mais ou menos um termo genérico para pensar alguém que pensa, alguém que não aceita as coisas dadas, que não usa expressões como “sempre foi assim” ou “é a natureza”. É mais frequente encontrar os preconceitos clássicos, misoginia, racismo, homofobia e demofobia em pessoas mais técnicas do que em pessoas de humanas. Mas lembremos que há filósofos, doutores em filosofia, como Goebbels, que foram suporte de nazistas. Juristas e historiadores fascistas foram muito frequentes.
IHU On-Line – Na entrevista que concedeu no ano passado, o senhor fez uma crítica ao estudo de Foucault nas universidades, afirmando que muitos pesquisadores estudam a obra de Foucault, mas “não chegam a Michel de Certeau”. Pode nos explicar melhor essa ideia?
Leandro Karnal – Existem modas intelectuais. A moda Marx e seus parentes próximos, como Gramsci, dominou um pouquinho antes da minha geração. A moda Foucault e toda a desconstrução pós-estruturalista, Derrida, Foucault, Deleuze e Kristeva, veio depois e dominou a minha formação. Nós fomos apresentados a um pensamento fabuloso, por exemplo, o livro As palavras e as coisas, de 1966, que li na graduação, o capítulo inicial, Las meninas, muda sua maneira de ver o mundo.
O livro de Foucault sobre a história da sexualidade me introduziu em um universo de historicidade da sexualidade que me surpreende até hoje. Os casos de análises dele ou a Microfísica do Poder introduziram, como Umberto Eco em outro campo, vocabulário. Agora, a ideia de que a desconstrução permanente e toda a opressão estão no plano discursivo e não há como escapar dessa opressão, porque o próprio discurso antiopressivo é opressivo, no sentido de que a mulher sai de um discurso terrível que é o machismo e passa para um discurso terrível que é o feminismo, ou seja, é oprimida por dois discursos, é uma espécie de uma esquerda hegeliana, foucaultiana, que poderia ser superada.
Foucault mudou a maneira de pensar, mas ele é um homem inserido no tempo e que foi capaz de apoiar a revolução iraniana de 1979 e os Aiatolás, quer dizer, é um homem limitado pela sua percepção no tempo, em uma época que grandes intelectuais de esquerda, como Roger Garaudy, que se converteu ao islamismo e escreveu o livro O ocidente é um acidente. Roger Garaudy disse em um momento que ser de esquerda incluía inclinar-se ao islamismo, porque na luta contra o capitalismo norte-americano ser de esquerda era também ser islâmico. Mas praticamente todas essas pessoas não durariam meia hora no mundo islâmico; só podem ser islâmicos em Paris ou em Nova Iorque, mas não durariam meia hora em uma universidade do Cairo ou de Teerã.
A idealização do oprimido
A idealização do oprimido é teatral e retórica e constitui uma peça retórica que surpreende as pessoas, surpreende um Trotsky ou um Lênin, um Fidel Castro. Eles acham que as massas querem justiça e as massas em geral querem um título de propriedade da terra ou seu próprio apartamento, e não exatamente isonomia por justiça ou pelo menos não como norma.
Mas Foucault é mais complexo do que o marxismo básico, que trabalha com bipolaridade, oprimido e opressor, burguês e classes primeiras. Foucault introduziu uma coisa completamente complexa neste campo. E De Certeau é ainda mais complexo, mais difícil de entender do que Marx e Foucault. De Certeau tem uma linguagem que cruza — como jesuíta erudito que era — Antropologia, Filosofia, Teologia e História. A obra dele é muito mais difícil de ler, porque exige competências em muitos campos.
IHU On-Line – É necessário superar Foucault e os filósofos que propõem teorias da desconstrução?
Leandro Karnal – Todo o pensamento, sem exceção, De Certeau, Foucault, Bakunin, Marx, Adam Smith, são discursos inseridos num momento, e só consigo chegar a outro momento de percepção se eu entendi essas pedras indispensáveis da construção do pensamento. Marx construiu um edifício teórico e analítico que é insuperável no século XIX; não importa se eu seja um reacionário e um seguidor da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP, se eu não ler Marx, não entendo como o mundo chegou onde chegou.
Foucault pertence a um momento, especialmente o período em que esteve em Nanterre, em maio de 1968, de desconstrução do ocidentalismo, que é importantíssimo junto com Kristeva; eles marcam uma geração.
A grande questão, que talvez o próprio Foucault concordasse, é que hoje se estabelece canonização de textos e, quando se canoniza um texto, você está fazendo uma má madraça de estudo corânico, porque um bom madraçal não faz isso. Aí você cita O capital ou a Microfísica do poder como se fossem a autoridade e não a subjetividade de autores tentando entender seu momento.
O que tem que se passar aos alunos é que é preciso, em primeiro lugar, entender um autor. O primeiro esforço é transpiração, é ler. O segundo esforço é inspiração, é desconstruir aquele discurso dentro do seu momento, e quem nos ajuda a fazer isso ou quem nos ajudou foi Foucault. Ele nos ajudou a desconstruir discursos e nós passamos os últimos 30 anos do século XX desconstruindo discursos. Como estaria Foucault neste momento se não tivesse morrido precocemente de HIV? Difícil saber. Espero que, como toda pessoa muito inteligente, como ele era, já estaria renegando as suas primeiras obras.
IHU On-Line – O momento agora seria o de reconstruir discursos?
Leandro Karnal – Ou pelo menos entender que o esforço niilista ou desconstrutivo tem sentido, como tem sentido a ironia para atacar o poder, mas você não pode passar a vida rindo, é preciso propor. É muito importante que a oposição faça oposição e critique, mas é necessário perguntar à oposição o que ela está propondo para colocar no lugar. O que seria uma sociedade, uma proposta totalmente desconstruída? Eu não tenho clareza, nem sei se essa é função do intelectual de primeira linha, como Foucault.
A biografia de Foucault mostra um homem extraordinariamente criativo e inteligente misturado com jogos de poder tradicionais: ao dar aula em Uppsala, na Suécia, ele usou um francês tão refinado — era um curso de francês para estrangeiros suecos — que ninguém entendia nada do que ele falava. Ao se deslocar para uma universidade, antes da sua grande carreira posterior, ele pressionou o concurso para colocar seu namorado no cargo, perseguiu pessoas na universidade pessoalmente, quer dizer, é uma pessoa como nós, uma pessoa cheia de limites em vários sentidos.
Na minha geração, entre os que me formaram, os clássicos de Foucault foram uns dos principais, mas hoje eu jamais diria que sou um foucaultiano. Posso dizer isso hoje porque achei Foucault extraordinário. E é por Foucault ser extraordinário que me impede de seguir a religião foucaultiana, porque eu li Foucault e até dizem que tenho certa semelhança com ele.
IHU On-Line – Quais são os desafios de Renato Janine Ribeiro no Ministério da Educação?
Leandro Karnal – Renato Janine Ribeiro, que conheço muito bem, é um grande intelectual da USP, ou seja, sem nenhuma experiência administrativa. A presença de um intelectual no Ministério da Educação é um bom sinal, eu vejo como positivo. É um homem que demonstra, em textos exemplares, como Ao leitor sem medo, a análise dele de Hobbes, uma capacidade mental enorme de pensar criticamente a estrutura de poder. Mas nós já tivemos em São Paulo, como Secretária de Educação, a Marilena Chauí, uma grande filósofa, já tivemos no Rio de Janeiro Darcy Ribeiro, um grande antropólogo. A presença de um intelectual no governo não significa que a situação irá se resolver, mas certamente é um bom indicativo.
Gosto de dar essa possibilidade de dúvida porque certamente é um bom indicativo, é melhor do que um burocrata, mas não tenho nenhuma esperança messiânica em que uma pessoa, mesmo que a pessoa seja muito boa, como suponho que Renato Janine Ribeiro seja, poderá transformar uma estrutura. Até porque, lembrando uma teoria weberiana do Raymundo Faoro, o segundo escalão permanece sempre o mesmo.