Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental
“Tupinambá, o Retorno da Terra”, curta de Daniela Alarcon e Fernanda Ligabue, estreia depois de amanhã, sábado, 2 de maio, no Rio de Janeiro. A essa primeira apresentação no SESC de São Gonçalo seguirão outras – em universidades, instituições e, até, numa Praça, a São Salvador (o roteiro está AQUI). Todas serão seguidas de debates com as duas diretoras e com uma pessoa igualmente especial: Glicéria Tupinambá, liderança da Serra do Padeiro que virá ao Rio de Janeiro exatamente para essa atividade.
Para quem não recorda, Glicéria foi protagonista de uma situação insólita. No dia 2 de junho de 2010, no Palácio do Planalto, ela e seu bebê de dois meses foram fotografados com o então Presidente Lula, com quem falou em defesa dos direitos do povo Tupinambá. No dia seguinte, ao retornar a Ilhéus, ela e seu filho foram recepcionados pela Polícia Federal e encaminhados diretamente para a prisão. Mais detalhes a respeito podem ler lidos em denúncia da APIB, AQUI.
Daniela Alarcon vem trabalhando com os Tupinambá desde o mestrado e continua fiel a esses companheiros não-acadêmicos no atual doutorado, no Museu Nacional. Nesta entrevista por e-mail (instrumento frustrante, pois impede reações às respostas), Daniela fala um pouco sobre os protagonistas do curta produzido pela Repórter Brasil e viabilizado por uma campanha de financiamento coletivo: os Tupinambá da Serra do Padeiro.
Teu filme sobre os Tupinambá estreia esta semana no Rio, com a presença de uma importante liderança, a Glicéria. Como os Tupinambá aconteceram na tua vida e como se deu essa decisão pela vinda da Glicéria?
Desde 2010, pesquiso junto aos Tupinambá da Serra do Padeiro. Durante o mestrado (na Universidade de Brasília), investiguei as retomadas de terras realizadas nessa aldeia e agora, no doutorado (Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro), continuo trabalhando com eles. Desde então, venho buscando contribuir para dar visibilidade à luta dos Tupinambá, e o documentário é parte desse esforço. Como se trata de um projeto desenvolvido em conjunto com os indígenas, consideramos indispensável que uma liderança estivesse conosco na estreia. A Glicéria, que é uma das personagens do filme, atua no processo de retomada desde o início e chegou a ser presa em razão de sua militância.
A questão racial invariavelmente se faz presente em relação a alguns povos indígenas, os Tupinambá em particular. Para muitos, eles são negros, ou no máximo mestiços, e o povo está mesmo é extinto…
Quando negam, sistematicamente, a identidade dos Tupinambá, os pretensos proprietários de terras e outros indivíduos e grupos fazem-no com um objetivo claro: impedir que os direitos indígenas sejam assegurados, sobretudo o direito à terra. Eles sustentam que os Tupinambá teriam sido “extintos” no século 17. Ora, no final da década de 1930, um conhecido cronista de Ilhéus, discorrendo sobre a área que hoje corresponde à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, descreveu a população local como predominantemente indígena. Não é curioso que um cronista alinhado às posições da elite não-indígena de sua época reconheça, espontaneamente, o que fazendeiros e outros hoje negam?
Apesar de outras importantes lideranças, é difícil falar dos Tupinambá sem lembrarmos a figura carismática de Babau e sua indiscutível acuidade para analisar politicamente o papel desempenhado hoje pelos povos indígenas e suas relações com as instituições ‘brancas’. Como você vê o papel dele, antes e depois da prisão no presídio de segurança máxima do RN, que de certa forma me parece ser um marco para a geração deste Babau que teve a sabedoria de se apresentar na PF às vésperas da viagem para o Vaticano, por exemplo?
Só conheci Babau pessoalmente depois de ele ter sido solto dessa que foi sua mais longa prisão, ocorrida em 2010 – ele ficou cinco meses encarcerado. Na minha avaliação, um dos traços mais notáveis da liderança exercida por ele – além do que você já apontou, isto é, a fina capacidade de análise política – é a habilidade que ele tem demonstrado para impulsar um processo coletivo de construção da aldeia. As retomadas de terras realizadas na Serra do Padeiro são uma estratégia tão bem-sucedida, penso eu, justamente por serem formas de ação eminentemente coletivas, que engajam indivíduos com perspectivas e aportes diversos. Creio que, assim como Babau, estão todos se formando politicamente na luta, o que é inspirador.
Uma coisa marcante com relação às retomadas dos Tupinambá é a preocupação imediata em reflorestar, recuperar nascentes, plantar. Embora presente nas lutas de outros povos indígenas, a impressão é de que para eles existe uma real urgência a esse respeito. Como você vê isso?
Segundo os Tupinambá da Serra do Padeiro, a terra pertence aos encantados, entidades centrais na cosmologia indígena. E esses seres não humanos atribuiriam aos indígenas o papel de zelar do território. Assim, o esforço intenso empreendido pelos Tupinambá para conservar o ambiente e contribuir para a recuperação do que foi deteriorado no processo expropriatório, na minha avaliação, tem de ver não apenas com garantir condições de sobrevivência do grupo, mas com dimensões mais profundas do mundo tupinambá. É claro que recuperar os rios é importante para aumentar o estoque de peixe e que em uma mata conservada se encontra mais caça, para citar dois exemplos, o que tem implicações diretas na subsistência do grupo. Mas, ao mesmo tempo, quando atentamos para o fato de que os encantados têm domínios territoriais específicos – há encantados das matas, das locas de pedras, das águas… –, é possível compreender que conservar o território é fundamental para garantir o bem estar não só dos índios e dos bichos, mas também desses seres.
Que diferenças fundamentais você apontaria entre a ação dos guerreiros da Serra e os do litoral? Como vê os encaminhamentos dessas duas lutas, atuando como uma só?
Embora tenha percorrido o território tupinambá e conversado com indígenas de diversas localidades, meu trabalho etnográfico concentrou-se na Serra do Padeiro. Assim, não disponho de uma quantidade suficiente de dados de campo próprios para poder avançar em comparações sistemáticas. O que posso dizer – baseando-me tanto em minhas observações, quanto na leitura de outras pesquisas – é que os Tupinambá das várias porções do território, ao mesmo tempo em que apresentam especificidades e adotam, por vezes, táticas diversas, são unidos historicamente por laços de parentesco e estão engajados na mesma luta: a luta pela conclusão do processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, que já se arrasta por mais de dez anos.
Faz um tempinho, em setembro de 2013, me enviaram uma foto que já usei muito, mostrando um cartaz dos ruralistas na estrada perto de Buerarema, incentivando à violência contra os Tupinambá, embora o nome deles não fosse mencionado. Durante algum tempo repeti sua publicação, indagando o que havia sido feito a respeito, sem qualquer resposta. No filme vocês abordam também esse tipo de violência e a total impunidade para os responsáveis?
Sim, uma parte considerável do documentário é dedicada à violência enfrentada pelos Tupinambá – inclusive, o oudoor que você menciona aparece no filme. Reunimos alguns relatos sobre tentativas de reintegração de posse violentas; sobre indígenas que foram torturados com choques elétricos por agentes da Polícia Federal, em 2009; sobre prisões de lideranças, incluindo a Glicéria, que permaneceu dois meses encarcerada com seu bebê de colo; e sobre o envio de cerca de 500 homens do Exército para ocupar militarmente o território tupinambá, em 2013, por determinação da presidenta Dilma Rousseff. Alguns depoimentos dão conta também da atuação enviesada da imprensa e do Judiciário. Além disso, a violência exercida no quadro do avanço da cacauicultura no sul da Bahia, a partir do último quartel do século 19, também é abordada, assim como a repressão a um levante ocorrido nas décadas de 1920 e 1930, liderado por um indígena chamado Marcellino José Alves, que tentou impedir o avanço dos não-índios sobre o território. O que emerge das narrativas é uma história de violência longa e brutal, que persiste no presente.
Uma coisa que me perturba muito com relação às lutas indígenas na Bahia, e em especial a dos Tupinambá, é a aparente falta de apoio por parte do Ministério Público Federal, ao contrário do que na maioria dos estados, Brasil afora. É impressão de quem acompanha tudo de longe, ou de fato a turma da 6ª Câmara se faz pouco presente na Bahia?
Ao longo dos últimos anos, o Ministério Público Federal propôs algumas ações civis públicas no caso tupinambá, responsabilizando o Estado pela morosidade no processo demarcatório, assim como por outras violações aos direitos dos indígenas. Ao que eu saiba, nenhum dos processos foi concluído até agora. Quanto à 6ª Câmara, em particular, ela se pronunciou em defesa dos Tupinambá em algumas ocasiões e acompanhou Babau quando ele se entregou à Polícia Federal, em 2014, em resposta a um mandado de prisão emitido às vésperas da viagem do cacique para o Vaticano, ocasião em que ele apresentaria ao papa denúncias sobre as violações cometidas pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas.
Outras coisas…
Comprometido com setores como o agronegócio e a indústria barrageira, para citar dois exemplos, o governo Dilma Rousseff tem levado a cabo uma política indigenista nefasta. O processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença começou em 2004. De lá para cá, o Estado violou todos os prazos legalmente estabelecidos, descumprindo sua atribuição constitucional de proteger os direitos indígenas. Por isso, é fundamental pressionar o ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, para que assine a portaria declaratória da terra indígena, levando o processo para suas últimas etapas.
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Destaque: cartaz do filme