Nesses dois dias de encontro, os 120 participantes já partilharam e ouviram muitos sons do Cerrado, histórias conflituosas e de resistência, trabalharam na Campanha do Cerrado, debateram em plenárias, ouviram os assessores… Enfim, chega-se ao fim do segundo dia de Encontro com a bolsa repleta de histórias. O Encontro segue até hoje.
“Não há Cerrado sem as comunidades e povos do Cerrado, por isso precisamos fortalecer nossa identidade, articular e somar as forças em defesa do nosso Cerrado” – Carlos Walter Porto-Gonçalves.
Batuques, tambores, violão, chocalhos… Todos esses elementos, juntamente com a musicalidade do povo, deram as boas vindas, neste domingo (26), aos 120 participantes do 2º Encontro das Comunidades e Povos do Cerrado, no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia, Goiás. A mística de abertura do Encontro trouxe a representação dos povos cerradeiros, como indígenas, quilombolas, mulheres e homens camponeses, fundo e fecho de pasto.
Organizado pela Articulação CPT’s do Cerrado, projeto da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o evento gira em torno do tema “Terra e Território defendidos: água e a biodiversidade preservadas”. O encontro termina hoje, terça-feira (28).
Isolete Wichinieski, da Articulação CPT’s do Cerrado, lembra que “o objetivo do encontro é discutir o direito a terra e território, planejar a campanha em defesa das comunidades e povos do Cerrado, que tem como foco principal envolver a sociedade no debate da preservação da água, além do desenvolvimento de ações pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 504/2010, que reconhece os biomas Cerrado e Caatinga como patrimônio nacional”. Esse segundo Encontro dá continuidade a um processo de formação iniciado em 2013 e aos encontros regionais realizados no ano passado.
“Desafios no debate sobre a água”
No início do primeiro dia, Altair Sales Barbosa, pesquisador e professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), e Ruben Siqueira, da coordenação executiva nacional da CPT, trouxeram para o Encontro os “Desafios no debate sobre a água”.
Altair Sales, a princípio, contextualizou a formação terrestre e, consequentemente, como se deu o desenvolvimento da água no planeta. Sobre os biomas brasileiros, o pesquisador explicou que “de todos os ambientes da história recente do planeta terra, o Cerrado é o mais antigo. A Amazônia tem três mil anos, a Mata Atlântica tem sete mil anos, e o Cerrado, sessenta e cinco milhões de anos. Isso significa que uma vez degradado, ele não se recupera jamais”.
Um exemplo citado por Altair sobre a não possibilidade de recuperação do Cerrado são as plantas. De acordo com o professor, 12.365 plantas do Cerrado estão catalogadas. Porém, desse total, os pesquisadores conseguiram produzir apenas 180 espécies em viveiro. Já quando o assunto é água, Altair Sales conta que estudos recentes mostram que cerca de 10 rios pequenos desaparecem por ano no Brasil, e o grandes rios cada vez mais diminuem sua vazão.
Ainda sobre a água, Sales destaca um fato importante. Segundo ele, os ambientes, e isso inclui a água, mudam conforme as mudanças climáticas, que são comuns e que o ser humano não exerce influência. Todavia, além dessas “forças da natureza”, há também as mudanças nos ambientes que sofrem interferência direta do ser humano. “Desde o início, a quantidade de água é a mesma, só que ela muda de lugar. Um exemplo é a Amazônia, que era um deserto há 8 mil anos atrás. Ou o Deserto da Atacama, no Chile, que era uma floresta há milhares de anos atrás. Os ambientes mudam de acordo com as mudanças climáticas”, contextualiza o professor. Neste contexto, o pesquisador trouxe para o debate alguns exemplos atuais sobre a falta de água e de fenômenos climáticos.
Altair destaca o quanto as águas que nascem no Cerrado são imprescindíveis para que diversos outros rios brasileiros e Sul-Americanos continuem vivos. “A maioria dos rios da América do Sul, com algumas exceções dos rios Andinos, dependem dos rios que nascem no Cerrado”, analisa.
Em um período que a grande mídia tem falado muito em escassez de água, crise hídrica, falta d’água e etc., Ruben Siqueira trouxe para o debate algumas informações sobre o quanto a água tem sido trabalhada como oportunidade de “comércio”. Ele apresentou várias imagens publicitárias, que trazem “o grande negócio da água”, produtos comercializados que vão desde águas importadas ou personalizadas com seu artista favorito…
Quando se fala em falta de água, logo se aborda a economia, o que é muito importante. No entanto, como argumenta Ruben, não se é discutido quem são os verdadeiros “vilões” no gasto e desperdício desse bem. Conforme dados apresentados pelo coordenador da CPT, no mundo, a agricultura consome 73% da água, 21% vão para a indústria, e 6% para as casas. Já quando o assunto é desperdício, segundo pesquisa apresentada durante a assessoria, a irrigação em grande escala é a responsável por 60% da água desperdiçada no Brasil.
Como agente da CPT Bahia e membro da Articulação Popular São Francisco Vivo, Ruben apresentou alguns exemplos de rios degradados e que tem secado na Bahia. Um deles é o Rio São Francisco, que no ano passado sofreu uma seca histórica. Conforme pesquisa norte-americana, o Velho Chico é o 8° rio mais degradado do mundo. Contudo, Ruben ainda apresentou algumas imagens da seca da nascente histórica do rio, o que impressionou alguns participantes do Encontro.
Mini-plenárias
Já na tarde do primeiro dia, os participantes se dividiram entre três mini-plenárias. O professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA), Jerônimo Treccani, assessorou um dos grupos, que discutiu a “Regularização fundiária – assentamentos e posseiros”. Nessa mini-plenária foram apresentadas três experiências: Assentamento São José, Assentamento Alegre, e Comunidade Forquilha, ambos no Maranhão, e Assentamento Água Viva, em Rondônia.
Vinda do Cerrado Rondoniense, Margarida Pereira trouxe um pouco da história de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras rurais da Comunidade Água Viva, no município de Chupinguaia. Segundo ela, após um fazendeiro chegar ao local se dizendo dono das terras, as famílias camponesas que residiam na área começaram a sofrer ações de pistoleiros, despejos, destruição de roças, processos, ação violenta da Polícia Militar do estado… Margarida mesmo foi presa, assim como outras mulheres.
O jovem Paulo Henrique apresentou a experiência de resistência do local onde vive, a Comunidade Forquilha, no município de Benedito Leite (MA), às margens do Rio Parnaíba do Sul. Vivem nessa área, há mais de 40 anos, 19 famílias de camponeses e ribeirinhos.
Em 2014, conforme registros da CPT Maranhão, o fazendeiro Renato Miranda Carvalho entrou com uma ação na Justiça com pedido de reintegração de posse, no qual alega ter comprado a área em um leilão. Com isso, o homem acusa as famílias de terem invadido as terras. Paulo relatou ainda as várias ofensivas de pistoleiros com intuito de expulsar as famílias das terras. Contudo, segundo o rapaz, o apoio de organizações e as denúncias tem diminuído a pressão sobre as famílias. (Saiba mais sobre o conflito)
Ao iniciar a assessoria dessa mini-plenária, o professor e pesquisador Jerônimo Treccani acumula anos de experiência e de estudos no tema em que assessorou os participantes do encontro. “São muitos anos de estudo e ensino na Universidade Federal do Pará, mas, sobretudo, muito de minha experiência nasceu nos 16 anos nos quais eu participei como secretário regional da Comissão Pastoral da Terra Norte 2, depois Pará, e Amapá. E, portanto, foi uma experiência rica”, comentou.
A outra mini-plenária trabalhou o tema “Território Tradicional – Modo de Vida”, assessorado pelo geógrafo e agente da CPT Nordeste II, Plácido Júnior. O assessor discorreu sobre o levantamento realizado no ano passado de Conflitos no bioma Cerrado, com base no banco de dados da CPT. A pesquisa, segundo Plácido, mostra que as regiões onde o bioma Cerrado se encontra (áreas de transição) com os outros biomas são as áreas com maior índice de conflitos relacionados à terra.
Todavia, Plácido também ressaltou o gradativo aumento dos conflitos registrados pela CPT que envolvem as populações tradicionais do campo brasileiro. Com as situações de conflitos em escala crescente, o agente destaca que a maneira com que as comunidades tradicionais vivem e cuidam da terra é tão importante quanto a própria conquista das terras.
A terceira mini-plenária discutiu o tema “Titulação e Demarcação”, que teve como assessores o representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Gilberto vieira, conhecido como Giba, e a líder quilombola Maria de Fátima. Aos participantes, a quilombola trouxe experiência da luta de sua comunidade, o Quilombo Ilha de São Vicente, no Tocantins. Ela falou sobre como seus ancestrais chegaram a essas terras, e explicou como tem sido a “peregrinação” para que a comunidade consiga a titulação do território. Além disso, a liderança falou sobre o convívio das famílias com ameaças de fazendeiros.
Participantes
Entre os 120 participantes que estão presentes no 2º Encontro das Comunidades e Povos do Cerrado, há representações indígenas, quilombolas, mulheres e homens camponeses, fundo e fecho de pasto. Participam também membros ou lideranças de associações, sindicatos, assentamentos, acampamentos, congregações religiosas, entre outros.
Além disso, estão presentes representantes de diversas organizações e movimentos sociais: Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST), Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), Articulação Nacional de Quilombos, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Rede Grita Cerrado de Goiás, Rede um grito pela vida de Goiás, Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), Grupo de Mulheres do Mato Grosso, Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf), Movimento Camponês Popular (MCP), Universidade Federal do Pará (UFPA), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Escola Família Agrícola (EFA), Articulação Camponesa do Tocantins.
Próximos passos
Ainda hoje, está programado um trabalho em grupo, onde as pessoas contribuirão com propostas para desenvolvimento da Campanha em defesa das comunidades e povos do Cerrado, que será lançada nacionalmente no segundo semestre deste ano.
Hoje (28), último dia de encontro, as pessoas apresentarão as propostas para a Campanha, a partir das discussões em grupo.