Após intensa campanha, surgem condições para acabar com uma das práticas mais humilhantes e desumanas do sistema prisional brasileiro. Mas há resistências, principalmente em SP e RJ
Por Vivian Calderoni* e Paulo Cesar Malvezzi** – Outras Palavras
Escrever um artigo sobre as revistas vexatórias é muito mais fácil hoje do que era há um ano. Antes, cada menção ao procedimento era acompanhada de uma longa e descritiva explicação para aproximar o público mais amplo de uma realidade bem conhecida daqueles que o viviam na pele. Como tudo o que envolve o sistema prisional, as revistas vexatórias estão guardadas por uma pesada e poderosa caixa-preta, pouco permeável ao escrutínio público. Aos poucos, no entanto, uma campanha nacional lançada há exatamente um ano tem ajudado a desconstruir esse bloqueio.
A campanha pelo fim da revista vexatória, capitaneada pela Rede Justiça Criminal e Pastoral Carcerária Nacional, apresentou vídeos e áudios interpretados por personalidades como a atriz Denise Fraga e o rapper Dexter, todos baseados em testemunhos reais: cartas recebidas pelas entidades contendo depoimentos dramáticos de mães, esposas, e filhas de presos, expondo as violações degradantes pelas quais passam ao visitar seus parentes nas prisões. Essa foi a forma escolhida para ajudar a tirar das sombras essa gravíssima violação de direitos humanos que, ainda que rotineira, gerava tímido debate público.
Nos cinco jornais de maior circulação do país (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Valor Econômico e Correio Braziliense), as revistas vexatórias foram alvo de 32 matérias, notas, editoriais, reportagens e artigos de opinião. No total foram mais de 850 menções ao tema na mídia em 8 meses.
Foram elaboradas, ainda, ações judiciais, denúncias internacionais e diversos materiais que, de um lado explicitavam a violência desse procedimento e, do outro, buscavam sensibilizar a opinião pública e as autoridades a respeito do tema. Outras organizações e coletivos, inclusive feministas e acadêmicos, também se engajaram de forma decisiva, levando o assunto para além dos seus tradicionais espaços de discussão.
Neste ponto, também se faz indispensável reconhecer que, muito antes da campanha encabeçada pela Rede Justiça Criminal e Pastoral Carcerária Nacional, essa luta já era travada, e continua sendo, pelos próprios presos e seus familiares, que cotidianamente questionam e se insurgem em todo país contra a barbárie institucionalizada – muitas vezes sem qualquer respaldo, ignorados pelos meios de comunicação e sob riscos constante de represálias.
Como resultado deste enfrentamento histórico e de toda essa exposição, alicerçada em estudos e materiais técnicos divulgados no decorrer da campanha, a pressão pelo fim da prática em todo o País foi forte e efetiva. O projeto de lei 7764/2014, que proíbe o procedimento nos presídios brasileiros, avançou, foi aprovado por unanimidade no Senado e pela primeira das três comissões por onde passará na Câmara dos Deputados.
Simultaneamente, diversas alterações normativas ocorreram Brasil afora. Podemos destacar que, de um ano para cá, pelo menos dez estados, cidades ou comarcas alteraram suas normas para proibir a prática da revista vexatória. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, por sua parte, editou nova resolução recomendando o fim da prática. Juízes da execução penal emitiram portarias em suas varas no mesmo sentido. Mapa lançado hoje pelas organizações apresenta um panorama das revistas vexatórias no País.
É claro que esses avanços não podem ser interpretados com uma ingenuidade pueril: é fato que a aprovação de leis não basta para solucionar um problema que se relaciona com a própria essência do sistema penal, cujo papel de controle de populações empobrecidas e marginalizadas (encarceradas ou não) é evidente. Além de normas que reforcem o caráter ilegal da revista vexatória, é indispensável continuar a lutar pela sua abolição efetiva, especialmente junto aos órgãos responsáveis e agentes fiscalizatórios, expondo cada vez mais as contradições de um sistema apegado a uma legalidade no mínimo seletiva.
O caso de São Paulo ilustra bem esse desafio. Uma lei proibindo o procedimento em todas as unidades prisionais do estado foi aprovada pela Assembleia Legislativa em agosto de 2014 e sancionada pelo governador, mas a rotina das filas dos presídios continua inalterada. Mães, filhas e esposas continuam a se despir e a mostrar seus órgãos genitais para as agentes penitenciárias responsáveis por realizar a revista, já que o governo se nega a implementar a norma de maneira plena. A modificação no campo das leis, nesse caso, ainda não transformou a realidade das vítimas. Outro exemplo extremamente negativo no mesmo sentido vem do Rio de Janeiro. Após importante articulação de entidades, movimentos de direitos humanos e familiares de presos, uma lei estadual foi aprovada pela Assembleia Legislativa e vetada logo em seguida, sem nenhuma explicação plausível, pelo governador Luiz Fernando Pezão.
No aniversário de um ano da campanha, são inegáveis os avanços positivos nas discussões sobre o tema e as perspectivas de novas conquistas, mas é também certo que ainda persistem enormes desafios para que todos, especialmente os familiares de pessoas presas, possam celebrar o fim deste procedimento abjeto, e finalmente sentir na pele, e no corpo, o respeito a seus direitos constitucionais.
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*Vivian Calderoni é advogada do programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos.
**Paulo Cesar Malvezzi é assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional