Será que os direitos humanos vão chegar até lá? Entrevista com Eduardo Fernandes sobre o caso Manoel Mattos

O “caso Manoel Mattos” já entrou para a história de diversas formas. Entre elas, o fato de ter sido o primeiro em que se conseguiu a federalização, como forma de garantir que o julgamento fosse realizado sem ameaças e intimidações contra o júri e testemunhas. Assim, depois de suspensões e adiamentos, semana passada, 15 de abril, o Recife foi o cenário da condenação de dois dos culpados pela execução do advogado de direitos humanos. O assunto não está encerrado, entretanto. Para nenhum dos lados envolvidos.

Professor de Direito da UFPB, assessor jurídico popular na Dignitatis e integrante da RENAP-PB, entre outras coisas, Eduardo Fernandes foi amigo de Manoel Mattos e está presente no caso desde seu início, lutando para que se faça justiça e atuando como assistente de acusação no julgamento. Ele conversou com Priscylla Joca para a fanpage da RENAP-CE, falando sobre a importância do processo, a situação dos defensores de Direitos Humanos e como os DD HH têm se efetivado no Brasil. Segue a entrevista: 

Priscylla Joca – O advogado Manoel Mattos integrava a Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE e atuava, principalmente, contra grupos de extermínio, quando foi assassinado na Paraíba, em 2009. Recentemente, nesse ano de 2015, dois dos cinco acusados foram condenados pelo crime em júri popular (Recife-Pernambuco). Você poderia nos falar sobre os momentos mais importantes que transcorreram, entre 2009 e 2015, para a responsabilização dos acusados e para visibilização do caso?

Eduardo Fernandes – A execução de Manoel Mattos, no dia 24 de janeiro de 2009, ficará marcada para sempre na memória dos familiares, amigas(os) e companheiras(os) de luta pelos direitos humanos, mas também junto à população mais vulnerável da região de Itambé (PE) e Pedra de Fogos (PB), que tinha em Manoel Mattos uma figura que simbolizava não apenas a advocacia tradicional, mas também o gosto pela política, militância social e participação partidária em várias instâncias. Era uma pessoa que gostava de gente, reuniões e principalmente de denunciar os desmandos na administração pública, no sistema de justiça e nas opressões do dia-dia a partir da sua realidade.

Essa data é importante para entender a parte e o todo da questão Manoel Mattos, pois foi a partir dessa execução que encontramos uma síntese da fragilidade do programa de proteção aos (as) defensores (as) de direitos humanos. É importante lembrar que entre os anos de 2002–2003 a advogada Valdênia Paulino, em São Paulo, e o advogado Manoel Mattos, em Pernambuco, foram os primeiros defensores de direitos humanos com escolta da polícia federal, e uma discussão mais densa sobre a criação, instalação e funcionamento deste programa se instaurou definitivamente na agenda dos direitos humanos.

A proteção no caso de Manoel Mattos se dava em face de uma cautelar na Organização dos Estados Americanos conseguida pela Justiça Global, Dignitatis e demais parceiros no final de 2002, que abarcava a Promotora Dra. Rosemary Souto Maior e um ex-pistoleiro (com seus familiares). Esse último se tornou um colaborador nas investigações após uma tentativa de queima de arquivo e foi incluído nas cautelares junto com a promotora responsável pelo caso. Nesse momento, a discussão sobre o programa proteção de defensores de direitos humanos mobilizou a sociedade civil, movimentos sociais e as realidades de vários Estados da federação, principalmente a Paraíba, Pernambuco, São Paulo, Pará, Bahia e Paraná.

Para que se tenha uma ideia, 300 execuções entre os estados da Paraíba e Pernambuco identificadas entre 1994–2002 tinha sido registradas, denunciadas e/ou tabuladas por CPIs (quatro grandes CPIs nos westados de Pernambuco e Paraíba, Região Nordeste, entre 1999–2002), segundo dados consolidados em Relatórios na OEA, ONU e CDDPH. Havia também inquéritos policiais parados, e a população de Pedras de Fogo chegou a destruir a delegacia da cidade em 2006, após a execução de uma criança por um membro de grupo de extermínio. Sendo que em 90% dos casos a autoria era desconhecida,  não havendo dados estatísticos confiáveis , principalmente do lado do Estado da Paraíba. Enfim, o breve contexto aqui relatado é para que se tenha uma dimensão final do problema. Apenas em 2002, foi realizado o primeiro concurso público após a Constituição de 1988 para polícia civil no Estado da Paraíba.

De toda forma, a partir dessa execução em 2009 e de circunstâncias, contextos e lutas similares em todo o Brasil, sob o prisma das criminalizações, perseguições, ameaças e assassinatos de defensores de direitos humanos  (Irmã Dorothy em 2005), a Justiça Global e a Dignitatis resolveram em acordo com Dona Nair (mãe de Manoel Mattos) e demais contatos abrir três frentes de atuação : 1 ) O monitoramento do caso na Justiça Estadual da Paraíba ; 2) Pedido de investigação pela Polícia Federal em face de crime cometido em fronteira e 3) Acionar a Procuradoria Geral da República para que o IDC fosse levado ao STJ, e, por fim, aplicado pela primeira vez na prática após a Emenda 45/04 (Reforma do Judiciário).

Em relação ao 3º ponto, creio que o papel da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JUSDH), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), Ordem dos Advogados do Brasil (Conselho Federal e Seccional Pernambuco), Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (atual Conselho Nacional de Direitos Humanos) e dos familiares de Manoel Mattos (Dona Nair principalmente) foram fundamentais, pois a cada dois meses um novo pedido à PGR [Procuradoria Geral da República] para federalização do caso era realizado. Também ganhou corpo o interesse pelo tema nas Universidades, principalmente na UFPB e UnB, com a realização de seminários, e também outros apoios se juntaram à questão da federalização, como os apoios de juristas, organizações de direitos humanos do Brasil e de fora do Brasil, toda essa movimentação em janeiro e julho de 2009, que levou, por fim, a PGR a ingressar com o pedido junto ao STJ, bem consistente do ponto de vista jurídico e também cercado de uma articulação política muito importante.

Cronologicamente destacaria:

  • 24 de janeiro de 2009: execução de Manoel Mattos e, horas antes, de um assistido de Manoel Mattos
  • 28 de janeiro de 2009: Justiça Global e a Dignitatis solicitaram ao Ministro da Justiça a aplicação da Lei 10.446/2002
  • 10 de fevereiro de 2009: Justiça Global e Dignitatis protocolam requerimento junto a PRG para que seja requerida junto ao STJ a federalização do caso
  • Abril 2009: criada a Comissão Especial Manoel Mattos (Conselho de Defesa de Direitos da Pessoa Humana – Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República)
  • 23 de junho de 2009: PGR protocola o IDC n. 02 junto ao STJ
  • 09 de julho de 2009: OEA amplia cautelares para familiares de Manoel Mattos e Deputados Federais Luiz Couto e Fernando
  • 11 de janeiro de 2010 perseguição contra Dona Nair Ávila e familiares ao retornar de audiência na Justiça Estadual
  • 11 de junho de 2010: atentados, ameaças e novas circunstâncias de intimidação ligam situações em João Pessoa, Itambé e Pedras de Fogo
  • 15 de agosto 2010: Seminário “Federalização dos crimes contra os Direitos Humanos: estudos e práticas em homenagem ao advogado Manoel Mattos”, promovido pela Dignitatis, Justiça Global, Comissão de Direitos Humanos da UFPB, Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB e Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB
  • 22 de agosto de 2010:  pela primeira vez no STJ, duas organizações de direitos humanos são admitidas enquanto amicus curiae para argumentar em defesa da federalização
  • 25 de agosto de 2010: começo do julgamento no STJ – suspenso
  • 07 de setembro de 2010: 50 personalidades políticas e jurídicas do Brasil assinam manifesto pela federalização do caso Manoel Mattos, entre elas Frei Betto,  Flávia Piovesan, Dalmo de Abreu Dallari, Paulo de Tarso Vannuchi , Gilda Pereira de Carvalho,  Ivana Farina Navarrete, Roberto Caldas, Percílio Almeida, Luciano Oliveira, Cecília Coimbra e outros(as)
  • 07 de setembro de 2010: Seminário sobre Federalização de crimes contra os direitos humanos é realizado na Unb
  • 08 de setembro 2010: retomada do julgamento com sustentação oral pela Digntatis e Justiça Global, assim como pela PGR através da Dra. Deborah Duprat. Suspenso novamente o julgamento
  • 27 de outubro de 2010: continuação e deferimento do IDC 2
  • 24 de janeiro de 2011: mais uma série de ameaças, intimidações e circunstâncias nas cidades de João Pessoa, Itambé e Pedras de Fogo. Um tiro é desferido contra a sede da Dignitatis
  • 31 de janeiro de 2011: sede da Dignitatis é arrombada e são feitas ameaças contra seus associados(as)
  • 07 de fevereiro de 2011: atentando contra ex-funcionário de Manoel Mattos em Itambé
  • 22 de novembro de 2011: II Seminário sobre “Federalização dos crimes contra os Direitos Humanos: estudos e práticas em homenagem ao advogado Manoel Mattos”, promovido pela Dignitatis, Centro Acadêmico Manoel Mattos e CDDPH
  • 13 de novembro de 2013: III Seminário “Federalização dos crimes contra Direitos Humanos: o júri do caso Manoel Mattos”, promovido pela Dignitatis, CDDPH e Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB
  • 18 de novembro de 2013: instalação de Júri no Fórum da Justiça Federal da Paraíba foi adiado por insuficiência de jurados para composição do Conselho de Sentença. Nova data marcada para 05 de dezembro
  • 04 de dezembro de 2013: em decisão liminar, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região suspende o julgamento que iria ocorrer dia 05 de dezembro; o pedido de desaforamento pela assistência e MPF/PGR apontavam indícios de intimidação dos jurados
  • 16 de janeiro de 2014: Tribunal Regional Federal da 5ª Região mantém prisão preventiva do sargento reformado da Polícia Militar Flávio Inácio Pereira, apontado como um dos dois mandantes do assassinato do advogado Manoel Mattos
  • 06 de maio de 2014: criação da 36ª Vara Federal, especializada no processamento e julgamento das causas penais (Execução Penal e Crimes Dolosos contra a Vida)
  • 08 de maio de 2014: a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região defere, por unanimidade, o pedido de desaforamento
  • 14 e 15 de maio de 2015: realização do Júri Popular na cidade de Recife. Condenação de um mandante e um executor.

Priscylla Joca – Quais são os próximos passos após o julgamento?

Eduardo Fernandes – Aguardar a apelação por parte das defesas daqueles que foram condenados. Por certo, também iremos apelar em face da absolvição de outros dois; aguardaremos a posição do Tribunal Regional Federal da 5ª Região para que esse capítulo seja encerrado. De toda forma temos desafios pela frente. Existem outros casos conexos que estão em trâmite nas instâncias e instituições competentes e que devem seguir a decisão do STJ e as orientações do Conselho Nacional de Justiça, visto que o processo encontra-se abarcados pelo Programa Justiça Plena. Do ponto de vista dos familiares, amigas(os) e companheiros(as) de luta, sabemos que a materialização do processo através do júri é um momento de emoções à flor da pele, mas que seja também um tempo de reflexão e compreensão de toda a luta que Manoel Mattos se envolveu e hoje empresta o seu nome para a história dos direitos humanos no Brasil.

Priscylla Joca – De acordo com pesquisa realizada pela ONG internacional Global Witness, o Brasil lidera ranking de violência no campo pelo 4º ano consecutivo, e as maiores vítimas são ativistas ambientais e agrários. Por sua vez, a campanha “Linha de Frente: Defensores de Direitos Humanos” busca visibilizar defensores de DHs no Brasil que vêm sofrendo ou sofreram criminalização, ameaças e atentados, dentre estes, Manoel Mattos. Em que medida você percebe que o resultado do julgamento pode servir ao processo de busca pelo fim dessa violência contra defensores de direitos humanos, agrários e ambientais no Brasil?

Eduardo Fernandes – Não haverá fim da violência contra defensores(as) de direitos humanos, agrários e ambientais, pelo simples fato de que, ao se colocarem em defesa desses direitos, povos, grupos, temas e/ou perspectivas de uma outra sociedade, de um outro modelo econômico, de uma outra perspectiva cultural, de novas/velhas narrativas dos direitos humanos, irão encontrar mais violências, sejam elas físicas, psicológicas, simbólicas e ou de natureza difusa complementar.

O recado que o resultado do julgamento aponta na realidade são vários:

1)  que a vida de Manoel Mattos, a dedicação dos familiares e a articulação da sociedade civil entre si pelo elo de solidariedade não foram e não serão em vão, nem nunca foram na história da humanidade quando se quer mudar algo;

2) que o funcionamento das instituições do sistema de justiça e do sistema de segurança pública devam ser mais sincronizados com as questões postas pela sociedade civil, movimentos sociais, pesquisadores e institutos> São tantas conferências, seminários, congressos, livros, documentos, cartas e afins; está tudo lá faz tempo;

3 ) que a sociedade como um todo, ali representada pelos jurados, não aceita mais conviver com a naturalização da violência e a impunidade. Precisamos de respostas mais práticas para questões relacionadas a federalização, sem dúvida, mas a questão central é que a mensagem sobre o papel de Manoel Mattos enquanto defensor de direitos humanos ficou perceptível;

4) que não é suportável mais que as autoridades públicas sejam omissas diante de tantos contextos e relatos de ameaças, abuso de poder, torturas e outros crimes que acontecem todos os dias contra vários “Manoeis” e “Manuelas”, “Marias”, “Carlos” e tantas outras pessoas que têm seus filhos e suas filhas executadas;

5) que seja possível, para os familiares de Manoel Mattos e das outras 200-300 famílias que estavam representadas nesse caso, mais um conforto pessoal e a compreensão de que as lutas continuarão;

6) que possamos ter efetivamente a garantia de funcionamento pleno e contínuo de programas de proteção aos(as) defensores(as) de direitos humanos no âmbito federal e nos estados, assim como de outros de programas de proteção à vida (PPCAM e PROVITA), e que estes tenham capacidade de diálogo entre si e para dentro do Sistema de Justiça, Poder Executivo e Legislativo, com alguma capilaridade.

E, por fim, o mais importante desse júri é que possamos perceber o defensor de direitos humanos enquanto um ser humano em suas próprias circunstâncias, limites e possibilidades.

Manoel Mattos foi além do que muitos e muitas podem ir ou poderão suportar, mas que sua ação, reação e luta pelos direitos humanos seja um exemplo para toda pessoa que se indigna com as violências que estão ao redor no nosso cotidiano e mais perto do que se imagina.

Em perspectiva global, do que percebemos aparentemente, sempre lembro quando, após a visita em Itambé no ano de 2003 da Relatora da ONU para Execuções Sumárias e Extrajudiciais, Manoel e demais pessoas comentavam, encostados no banco da praça, enquanto o comboio das autoridades se retirava sob escolta – com uma boa dose ironia e esperança matuta nordestina: “A ONU veio em Itambé; será que os direitos humanos vão vir também ?”.

É esse o desafio: não basta o resultado do julgamento, o que em nossa avaliação é bastante significativo e importante, mas será que os direitos humanos vão chegar lá também? Vão chegar lá em Goiás? Vão chegar no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro? Em São Paulo, nos casos das Mães de Maio? Vão chegar ao Ceará? Vão chegar no Pará e em todas as dimensões de conflitos ali existentes?  Enfim, sempre disse que as Cautelares na OEA e o IDC foram obra de Manoel Mattos; as assessorias, assistência e as instituições apenas emprestaram a forma, ligaram os pontos traçados, promoveram a articulação e consolidaram os elementos finais. Para quem vive uma situação de morte anunciada, a sistematização, organização e encaminhamento dado foi um legado.

Gostaria muito que ele visse tudo o que aconteceu e soubesse que deu algum resultado o que ele apostou em vida, quando apontava que talvez ali em Itambé, Pedras de Fogo e na região “a coisa” não ia andar bem. Ele sabia, mas tinha que ficar, como repetiu diversas vezes, pois acreditava que os caminhos, as capacidades técnicas e o campo de articulação para que aquele grau de impunidade chegasse ao fim seria através dos mecanismos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos, na medida em que seus relatos fossem um alerta ao sistema de justiça,

Manoel Mattos sabia que superar as questões dos grupos de extermínio na divisa “do medo”, que ele gostaria que fosse a divisa dos direitos humanos, só seria possível coletivamente. Ele foi a ponte entre as vozes invisíveis e uma gama maior de estruturas em busca de justiça. Agora todos e todas se tornaram pontes dele e dos seus assistidos, familiares e desconhecidos. Manoel Mattos, enquanto advogado, trabalhou com uma organização de dados e acompanhamento de fatos que incomodou e ainda incomoda. Que esse seja um exemplo para quem pretende seguir de forma consequente na atuação da defesa dos direitos humanos e/ou da assessoria jurídica popular: a junção de técnica com obstinação, de utopia com organização. Manoel Mattos, presente!

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