Cerca de 800 imigrantes que tentavam a travessia entre a África e a Itália morreram após um naufrágio, no mar Mediterrâneo, neste domingo (19), estimam representantes do Alto Comissariado das para Refugiados (Acnur) e a Organização Internacional para as Migrações, ambos das Nações Unidas.
Ou, na palavras de Zeid Ra’ad Al Husein, Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas: “A Europa dá as costas a alguns dos emigrantes mais vulneráveis do mundo e corre o risco de transformar o Mediterrâneo em um vasto cemitério”.
Não foram os primeiros mortos, nem serão os últimos, consequência direta de políticas tacanhas, medrosas e xenófobas de migração da União Europeia. E, sobretudo, hipócritas. Porque há demanda por empregos preenchida por esses migrantes, ao contrário dos discursos vazios de “roubo” de postos de trabalho usados pela extrema direita de muitos países.
Mas lá como aqui. Enquanto não aprovarmos uma nova lei de migrações, substituindo o Estatuto do Estrangeiro produzido na ditadura militar (que vê a imigração não como um direito humano mas como uma questão de segurança nacional), abrindo espaço para o amparo legal a esse grupos, continuaremos a criminalizar e a escravizar trabalhadores estrangeiros que vêm ajudar a construir o Brasil.
Não vou debater as origens da xenofobia, a relação entre estabelecidos e outsiders, o entendimento da alteridade… enfim. Afinal isto é um post, não uma missa. Mas é ridículo que pessoas que reclamam serem barradas nos aeroportos na Europa e nos Estados Unidos reservem um tratamento preconceituoso aos que vêm de fora por aqui.
O ser humano aprende com a experiência coletiva? Faz-me rir.
Muitos dos latino-americanos, africanos e asiáticos não vêm para cá atrás das belezas naturais do Brasil, mas sim de oportunidades melhores ou fugindo da miséria.
Miséria da qual, muitas vezes, somos co-responsáveis por explorar terra, trabalho e recursos naturais lá. Não? Vejam a lambança que algumas multinacionais brasileiras fazem na Áfricas e na América do Sul.
Guardadas as proporções, é a mesma coisa que empresas e governos do hemisfério Norte fazem com a gente. Reclamamos de estrangeiras operando no Brasil, porém, quando alguém na Bolívia ou no Paraguai pensa em rever contratos para tornar menos injusta a relação com o nosso país, parte da opinião pública daqui brada aos quatro ventos o absurdo que é essa ousadia.
Quem eles pensam que são? Iguais a nós? Que respeitem os contratos, por mais injustos que eles sejam.
São Paulo, por exemplo, conseguiu se tornar o que é por conta de quem veio de fora. Por exemplo, deveríamos ter orgulho em ser a maior cidade nordestina fora do Nordeste e toda a diversidade que isso traz. Mas chamar alguém de “baiano” como se fosse um xingamento horrível ainda é tão comum quanto contar piada de gay.
Não faz sentido que viremos às costas aos que vêm de fora e adotam São Paulo ou o Brasil, mesmo que a contragosto.
Eles são tão paulistanos e brasileiros quanto eu e você, trabalham pelo desenvolvimento do país, entregam sua força e sua dignidade para que possamos estar todos na moda sem gastar, consumamos carne barata e moremos em confortáveis apartamentos mas normalmente passam invisíveis aos olhos da administração pública e do resto de nós.
O aumento da imigração de pessoas que procuram uma vida melhor em um país com maior oportunidade de emprego tem mostrado o que certas nações têm de pior.
Os Estados Unidos erguem uma cerca entre eles e o México, para regular o fluxo de faxineiros, operários e serventes.
Na Inglaterra, brasileiros levam bala.
Na Espanha, turistas, se piscarem, são tidas como prostitutas querendo invadir o território.
A União Europeia transforma o Mediterrâneo em um cemitério.
Lembrando que boa parte dos imigrantes faz o trabalho sujo que poucos europeus ocidentais querem fazer, limpando latrinas, recolhendo o lixo, extraindo carvão. Até porque os países que recebem esses trabalhadores ganham com sua situação de subemprego e o não pagamento de todos os direitos.
Em todo o mundo, culpamos os migrantes de roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar os serviços públicos porque é mais fácil jogar a responsabilidade em quem não tem voz (apesar de darem braços para gerarem riqueza para o lugar em que vivem) do que criar mecanismos para trazê-los para o lado de dentro do muro que os separa da dignidade – que, inclusive, geraria recursos através de impostos.
Adoraria que o Brasil desse um exemplo aos países do Norte, derrubando de vez os muros que criam trabalhadores de primeira e terceira classe (coloco-os atrás dos brasileiros pobres, os cidadãos de segunda classe, porque esses – apesar de maltratados – ao menos existem para algumas políticas públicas), garantindo a mesma dignidade para quem vive em solo nacional.
Há legislação que já garante isso no caso do Mercosul e Estados parceiros, mas interpretações diferentes dentro na Polícia Federal, por exemplo, fazem com que as coisas mudem muito lentamente. Mesmo com direito a permanecer por aqui, gente tem sido deportada por conta de ignorância estatal.
Vivemos sim uma dúvida parecida àquela enfrentada pelo Velho Mundo. Não, não é se haverá trabalho e espaço para todos com os deslocamentos de imigrantes em busca de emprego (ou fugindo de catástrofes ambientais). Mas se as características que nos fazem humanos não estarão corroídas até lá.
Se centenas de milhares de bolivianos, paraguaios, haitianos, senegaleses, chineses fossem às ruas, bloquear São Paulo, pedindo para que fossem respeitados como os estrangeiros ricos que vêm trabalhar na cidade, seriam duramente reprimidos. Deportados até.
E muitos autointitulados “cidadãos de bem” ficariam incomodados com isso.
“O que eles querem mais? Calem a boca e continuem costurando!”
Como sempre foi até agora.
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Foto: Chegada à Sicília de sobreviventes de naufrágios vindos da África (Francesco Malavolta/OIM)