O Encontro aconteceu nos dias 9 e 10 de abril, no Quilombo do Campinho (Paraty – RJ) e mostrou a força e a cultura das comunidades tradicionais
O Encontro de Justiça Socioambiental da Bocaina – Territórios Tradicionais: Diálogos e Caminhos abriu com uma homenagem aos mestres Euzébio Higino de Oliveira, caiçara da Praia Barra Seca em Ubatuba (SP), Marciana Paramirim de Oliveira, pajé da Aldeia de Araponga em Paraty (RJ) e o quilombola José Adriano da Silva, do Quilombo Santa Rita do Bracuí, que fica em Angra dos Reis (RJ). Esse reconhecimento público organizado pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, foi um dos pontos altos do encontro. Os mestres que participaram ficaram emocionados e José Higino de Oliveira resumiu todas às falas pedindo as autoridades presentes que “os direitos dos quilombolas, indígenas e caiçaras, que sempre zelaram pela preservação da natureza, fossem respeitados.”
Dando sequência à programação do primeiro dia, o cantor e compositor Luís Perequê cantou e recitou a vida das comunidades tradicionais e a luta contra os agentes que expulsam famílias de suas casas. O coral guarani Itaxi da Aldeia de Paraty Mirim se apresentou carregando uma faixa contra a PEC 215 e invocando “Nhanderú etê” para trazer luz para os debates e debatedores do evento.
Na mesa de abertura, autoridades representando a Secretaria Geral da Presidência da República, o Ministério Público Federal, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Secretaria de Estado do Ambiente, a Coordenação Colegiada do Mosaico Bocaina, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), falaram sobre a importância do encontro por se tratar de uma oportunidade de diálogo entre as comunidades tradicionais e o poder público através de suas instâncias municipais, estaduais e federal. Para o Vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz (VPAAPS/Fiocruz), Valcler Rangel, “o trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Observatório de Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Bocaina (OTSS) é o exemplo da importância do diálogo para a melhoria para a qualidade de vida no território.”
No período da tarde, na tenda montada especialmente para o encontro, cerca de 200 pessoas ouviram os palestrantes das mesas “Sobreposição de Territórios Tradicionais e Unidades de Conservação de Proteção Integral: limites e possibilidades” e “Exemplos de Gestão e Solução de Conflitos: obstáculos, desafios e instrumentos utilizados”, debaterem sobre as leis que tratam da proteção do meio ambiente onde muitas vezes os direitos das populações tradicionais são esquecidos.
O Sistema Nacional de Unidades Conservação – SNUC foi o foco das discussões, e os comunitários mais uma vez ressaltaram que a presença dos Parques sobrepostos aos territórios tradicionais vem estrangulando o seu modo de vida. Para Antônio do Santos do Quilombo da Caçandoca, os gestores das UCs deveriam “realizar uma troca de conhecimento”. “As UCs têm que fazer as pazes com as comunidades tradicionais”, pediu o quilombola. Para a pesquisadora da UFSC e analista ambiental do ICMBio Iara Vasco, no país existem várias categorias de Unidades de Conservação com possibilidades de acordos de uso sustentável com as comunidades tradicionais, “o SNUC tem várias categorias de manejo tradicional da biodiversidade que conciliam a presença humana dentro de unidades de conservação”.
Se existem possibilidades legais que admitem a presença das comunidades tradicionais nas UCs, porque tantos conflitos? Para Iara Vasco, ainda resiste uma cultura de áreas naturais reservadas sem a presença humana e que pautou a formulação da criação dos parques e reservas nacionais na década de 1930. “É um ranço histórico que o Prof. Antônio Carlos Diegues chamou do mito da Natureza intocada”, explica a pesquisadora. Em muitos depoimentos dos gestores das UCs, o mito da Natureza intocada ainda resiste, mas para os comunitários a troca é o bem mais constante de suas vidas. Na apresentação dos jongueiros dos Quilombos do Bracuí e Campinho, que fecharam a programação do primeiro dia, o depoimento da jongueira e educadora do Campinho Laura Santos reforçou essa característica do modo de vida das comunidades tradicionais: “O Jongo do Campinho que estava esquecido, foi resgatado no Quilombo de Santa Rita do Bracuí e estamos agradecidos com a presença deles aqui nessa noite”.
A presença da cultura caiçara abriu os debates do segundo dia com o cortejo da Folia do Divino Espírito Santo de Ubatuba (SP). Procuradores da República, gestores das unidades de conservação, pesquisadores e lideranças comunitárias participaram das mesas que trataram dos limites e das possibilidades de convivência, assim como dos desafios para a proteção das comunidades tradicionais através debatendo temas bastante relevantes para a região.
O conflito vivido pelos pescadores artesanais da Trindade com o Parque Nacional da Serra da Bocaina e o caso do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) envolvendo pescadores artesanais de Tarituba e a ESEC Tamoios foi o tema da primeira mesa. No segundo caso, o debate girou em torno do turismo em Áreas Protegidas, com foco nas contradições entre a Parceria Público-Privada e o Turismo de Base Comunitária.
Para o comunitário e pescador da Praia de Trindade Robson Possidônio, a pesca e o modo de vida do caiçara é constantemente criminalizado pelos gestores das UCs e quando “conseguimos dar um passo a frente com termos de conduta ou ajustamento, ficamos presos na rede do Poder Público”, referindo-se à espera pela assinatura do presidente do ICMBio Roberto Vizentin, para validar o TAC de Tarituba. Ao final de cada mesa vários comunitários narravam problemas de desrespeito e violência em seus territórios. O responsável pelo Laboratório de Planejamento Ambiental e Gerenciamento Costeiro (Unesp/Laplan) Davis Gruber, alertou que por trás do discurso ambientalista que exclui povos e comunidades tradicionais, “se avizinha uma privatização junto aos Parques e APAs que exploram a espetaculização da Natureza”.
Ao final do encontro, a Plenária foi dirigida pelos procuradores da República Deborah Duprat e Felipe Bogado. Deborah Duprat é coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República (PGR), órgão setorial que coordena e revisa as questões ligadas às populações indígenas e minorias étnicas no país. Para ela, “o modo de vida das comunidades tradicionais e indígenas são desqualificados para que haja uma apropriação econômica da Natureza.”. Segundo ela, “as comunidades tradicionais criaram uma maneira de resistência a esse formato de desenvolvimento predatório da nossa sociedade”.
Mas se era consenso por parte dos procuradores da República a necessidade de analisar a questão ambiental sob a ótica dos Direitos Humanos, hoje dentro dos órgãos ambientais existe uma dicotomia entre Natureza x Ser Humano. Os problemas enfrentados pela nossa sociedade com a devastação do meio ambiente são frutos de um modo de vida incompatível com a renovação da Natureza. Muitos pesquisadores têm reforçado a ideia de que espaços preservados passam pela forma como indígenas e povos tradicionais entenderam o tempo das águas e da mata. No Poder Público, muitos órgãos ambientais resistem a essa possibilidade de diálogo local e troca de conhecimento. Para o secretário de Meio Ambiente de Ubatuba (SP) Juan Pablo Prada, “existe um afastamento das UCs em suas localidades. Nem as Prefeituras compactuam com as formas de atuação que vem sendo realizadas por esses órgãos”.
O encontro foi uma oportunidade para levantar o debate e ouvir várias partes. Existe uma insatisfação diante de uma prática “legalista” que as populações indígenas, quilombolas e caiçaras já perceberam que não é exercida equanimemente em relação a todos os atores do território. Apesar dos debates e alguns ânimos exaltados, é necessário lembrar que numa sociedade democrática é composta por diversos atores e que o diálogo é caminho para a construção de novas formas de usufruir a Natureza no território.
Nesse sentido, uma carta com 13 itens foi redigida e aprovada na plenária onde se ressalta a existência de marcos legais que garantem os direitos das comunidades tradicionais de uso dos recursos da sociobiodiversidade e sua permanência em seus territórios tradicionais exige ampliar e manter o diálogo entre os atores. Em um marco histórico para as comunidades, foi criada uma Mesa de Diálogo Permanente, mediada pelo MPF, para discutir e buscar soluções para cada caso de conflito existente, avançando assim a relação entre UC e comunidades tradicionais
O “Encontro de Justiça Socioambiental da Bocaina – Territórios Tradicionais: Diálogos e Caminhos” foi promovido pelo Ministério Público Federal (MPF) em Angra dos Reis (RJ), a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República (PGR), o Fórum de Comunidades Tradicionais Indígenas, Quilombolas e Caiçaras de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), o Mosaico Bocaina de Áreas Protegidas, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), por meio do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS). O encontro também contou com o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) / Projeto Baía da Ilha Grande (BIG) / Instituto Estadual do Ambiente (INEA), Prefeitura de Paraty e a ONG Verde Cidadania.
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CARTA DO ENCONTRO DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL DA BOCAINA
Territórios Tradicionais: Diálogos e Caminhos
Quilombo do Campinho da Independência, Paraty-RJ, 2015
Os participantes do Encontro de Justiça Socioambiental da Bocaina, promovido nos dias 9 e 10 de abril de 2015, no Quilombo do Campinho da Independência, Paraty-RJ, com o objetivo de ampliar o conhecimento e o debate sobre caminhos possíveis para a gestão e a solução de conflitos de uso e acesso a recursos da biodiversidade nos territórios tradicionais da região de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, a partir de exemplos concretos envolvendo Unidades de Conservação, tornam públicas as seguintes conclusões:
1. A presença de povos ou comunidades tradicionais em Unidades de Conservação federais e estaduais é uma realidade no território abrangido pelo Mosaico Bocaina de Áreas Protegidas. A situação representa uma fonte frequente de intensos conflitos socioambientais que, junto com aqueles decorrentes da implantação de empreendimentos, exigem soluções concretas juridicamente válidas, desafiando os agentes envolvidos para o estabelecimento de diálogo permanente;
2. A Constituição Federal estabelece a incumbência ao Poder Público de garantir o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo definir espaços territoriais especialmente protegidos, assim como a de assegurar o pleno exercício dos direitos territoriais e culturais, os modos de criar, fazer e viver dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, conforme estabelecido em seus artigos 1º, 215, 216, 225, 231, e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
3. Reconhece-se mundialmente a importância das Unidades de Conservação e outras Áreas Protegidas, como meio de garantir proteção a territórios que apresentam características ecológicas e socioambientais relevantes, devendo ser mantidas sob um regime especial de administração, conforme foi reforçado, no Brasil, pelo Decreto n° 5.758/2006, que instituiu o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), bem como na Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992), da qual o Brasil é signatário;
4. A Lei n° 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), em seu artigo 28, parágrafo único, assegura às populações tradicionais porventura residentes na área as condições e os meios necessários para a satisfação de suas necessidades materiais, sociais e culturais, e em seu artigo 42, §2º prevê a compatibilização da presença das populações tradicionais residentes com os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de subsistência e dos locais de moradia destas populações;
É necessária uma leitura do art. 42 do SNUC conforme a Constituição Federal e a Convenção nº 169 da OIT, entre outras, para conciliar a presença das populações tradicionais e Unidades de Conservação de todas as categorias, já que sua presença é reconhecida como aliada importante na preservação/conservação e na utilização sustentável da biodiversidade brasileira, respeitada a autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais;
6. Há que se firmar acordos com as populações tradicionais, mediante consulta prévia, livre e informada, como pressuposto para a recategorização ou a criação das Unidades de Conservação de qualquer categoria e para a gestão compartilhada, ao invés do reassentamento compulsório;
7. Conforme o Decreto nº 6.040/07, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais objetiva solucionar e/ou minimizar os conflitos gerados pela implantação de Unidades de Conservação de Proteção Integral em territórios tradicionais;
8. Em conformidade com o PNAP e com o artigo 26 do SNUC, ressalta-se a importância do reconhecimento das terras indígenas e dos territórios quilombolas como parte integrante do Mosaico Bocaina de Áreas Protegidas;
9. A solução jurídica para eventual colisão de direitos fundamentais deve passar pela realização de um juízo de ponderação, com base nos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e dignidade da pessoa humana;
10. Deve-se buscar a compatibilização do exercício dos direitos constitucionais das populações tradicionais, da conservação do meio ambiente e da proteção da diversidade étnica e cultural. Sob a perspectiva da gestão compartilhada de territórios sobrepostos e seus recursos naturais, assumem importância estratégica os instrumentos jurídicos tais como os Planos de Manejo, os Planos de Uso Tradicional, os Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, os Termos de Compromisso, Termos de Ajustamento de Conduta e os Acordos de Manejo, bem como os acordos constituídos localmente entre as partes, que visem a compatibilizar direitos;
11. Os instrumentos de zoneamento e gestão, mencionados no item 10, têm como fonte de legitimidade a natureza participativa de sua elaboração e implementação, a exemplo de Conselhos Deliberativos e Consultivos, de Câmaras Técnicas, de Grupos de Trabalho e de outras formas de participação e governança;
12. O turismo de base comunitária deve ser privilegiado e apoiado pelo Estado nos territórios de comunidades tradicionais, assegurando a estas a preferência na organização e prestação de serviços turísticos;
13. Fica instituída uma Mesa de Diálogo Permanente no território abrangido pelo Mosaico Bocaina, mediada pelo Ministério Público Federal, composta por representantes das comunidades tradicionais e dos órgãos públicos competentes envolvidos com os casos nos quais se pretende compatibilizar e conciliar os direitos humanos e da natureza, com participação da sociedade civil, visando a estabelecer pactos e acordos.
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Fotos: Eduardo di Napoli. Encaminhada para Combate Racismo Ambiental por Thereza Dantas.
Fico emocionada de ver que mesmo aos poucos, os povos tradicionais do Mosaico da Bocaina estão no caminho da conquista de seus direitos!!