Em carta aberta a presidente sul-africano, Mia Couto diz que xenofobia é ‘atentado bárbaro’

Para escritor moçambicano, ‘é preciso recriar os sentimentos solidários entre os nossos povos e resgatar a memória de um tempo de lutas partilhadas’

No Opera Mundi

Há cerca de três semanas, uma onda de xenofobia tomou a África do Sul após o rei zulu, Goodwill Zwelithini, declarar publicamente que os estrangeiros deveriam “fazer as malas e ir embora” do país. Por conta disso, uma série de ataques violentos se espalhou pelo território, deixando ao menos sete mortos, mais de 300 detidos e mais de 5.000 refugiados, segundo a ONU.

A maior parte desses estrangeiros é proveniente de países como Malauí, Zimbábue e Moçambique, que chegou a fechar parte de sua fronteira terrestre com a África do Sul, temendo atentados contra seus cidadãos. Em meio a essa escalada de violência, o escritor moçambicano Mia Couto escreveu uma carta ao presidente sul-africano, Jacob Zuma, comparando atual situação ao período do apartheid e criticando a falta de resposta e de “memória de luta partilhada” das autoridades do país.

Leia a carta na íntegra:

Criança moçambicana em campo de refugiados após crise de xenofobia na África do Sul
Criança moçambicana em campo de refugiados após crise de xenofobia na África do Sul

Exmo. Senhor Presidente Jacob Zuma

Lembramo-nos de si em Maputo, nos anos oitenta, nesse tempo que passou como refugiado político em Moçambique. Frequentes vezes nos cruzámos na Avenida Julius Nyerere e saudávamo-nos com casual simpatia de vizinhos. Imaginei muitas vezes os temores que o senhor deveria sentir, na sua condição de perseguido pelo regime do apartheid. Imaginei os pesadelos que atravessaram as suas noites ao pensar nas emboscadas que congeminavam contra si e contra os seus companheiros de luta. Não me recordo, porém, de o ter visto com guarda costas. Na verdade, éramos nós, os moçambicanos, que servíamos de seu guarda costas. Durante anos, demos-lhe mais do que um refúgio. Oferecemos-lhe uma casa e demos-lhe segurança à custa da nossa própria segurança. É impossível que se tenha esquecido desta generosidade.

Nós não a esquecemos. Talvez mais do que qualquer outra nação vizinha, Moçambique pagou caro esse apoio que demos à libertação da África do Sul. A frágil economia moçambicana foi golpeada. O nosso território foi invadido e bombardeado. Morreram moçambicanos em defesa dos seus irmãos do outro lado da fronteira. É que para nós, senhor Presidente, não havia fronteira, não havia nacionalidade. Éramos, uns e outros, irmãos de uma mesma causa e quando tombou o apartheid a nossa festa foi a mesma, de um e de outro lado da fronteira.

Durante séculos, emigrantes moçambicanos, mineiros e camponeses, trabalharam na vizinha África do Sul em condições que pouco se distinguiam da escravatura. Esses trabalhadores ajudaram a construir a economia sul-africana. Não há riqueza do seu país que não tenha o contributo dos que hoje são martirizados.

Por todas estas razões, não é possível imaginar o que se está a passar no seu país. Não é possível imaginar que esses mesmos irmãos sul-africanos nos tenham escolhido como alvo de ódio e perseguição. Não é possível que moçambicanos sejam perseguidos nas ruas da África do Sul com a mesma crueldade que os polícias do apartheid perseguiram os combatentes pela liberdade, dentro e fora de Moçambique. O pesadelo que vivemos é mais grave do que aquele que o visitava a si quando era perseguido político. Porque o senhor era vítima de uma escolha, de um ideal que abraçou. Mas os que hoje são perseguidos no seu país são culpados apenas de serem de outra nacionalidade. O seu único crime é serem moçambicanos. O seu único delito é não serem sul-africanos.

Senhor Presidente

A xenofobia que se manifesta hoje na África do Sul não é apenas um atentado bárbaro e cobarde contra os “outros”. É uma agressão contra a própria África do Sul. É um atentado contra a “Rainbow Nation” que os sul-africanos orgulhosamente proclamaram há uma dezena de anos. Alguns sul-africanos estão a manchar o nome da sua pátria. Estão a atacar o sentimento de gratidão e solidariedade entre as nações e os povos. É triste que o seu país seja hoje notícia em todo o mundo por tão desumanas razões.

É certo que medidas estão a ser tomadas. Mas elas mostram-se insuficientes e, sobretudo, pecam por serem tardias. Os governantes sul-africanos podem argumentar tudo menos que estas manifestações os tomou se surpresa. Deixou-se, mais uma vez, que tudo se repetisse. Assistiu-se com impunidade a vozes que disseminavam o ódio. É por isso que nos juntamos à indignação dos nossos compatriotas moçambicanos e lhe pedimos: ponha imediatamente cobro a esta situação que é um fogo que se pode alastrar a toda a região, com sentimentos de vingança a serem criados para além das suas fronteiras. São precisas medidas duras, imediatas e totais que podem incluir a mobilização de forças do exército. Afinal, é a própria África do Sul que está a ser atacada. O Senhor Presidente sabe, melhor do que nós, que ações policiais podem conter este crime mas, no contexto atual, é preciso tomar outras medidas de prevenção. Para que nunca mais se repitam estes criminosos eventos.

Para isso urge tomar medidas numa outra dimensão, medidas que funcionam a longo prazo. São urgentes medidas de educação cívica, de exaltação de um passado recente em que estivemos tão próximos. É preciso recriar os sentimentos solidários entre os nossos povos e resgatar a memória de um tempo de lutas partilhadas. Como artistas e fazedores de cultura e de valores sociais, estamos disponíveis para enfrentar juntos com artistas sul-africanos este novo desafio, unindo-nos às inúmeras manifestações de repúdio que nascem na sociedade sul-africana. Podemos ainda reverter esta dor e esta vergonha em algo que traduza a nobreza e dignidade dos nossos povos e das nossas nações. Como artistas e escritores queremos declarar a nossa disponibilidade para apoiar a construção de uma vizinhança que não nasce da geografia, mas de um parentesco que é da alma comum e da história partilhada.

Maputo, 17 de Abril de 2015

Mia Couto

Presidente da Fundação Fernando Leite Couto”

'Temos de reinventar uma maneira de fazer política, porque isso afeta a nós todos', disse Couto em palestra no Brasil em 2012
‘Temos de reinventar uma maneira de fazer política, porque isso afeta a nós todos’, disse Couto em palestra no Brasil em 2012

Destaque: Moçambicano que trabalhava na África do Sul fugiu com sua família para campo de refugiados após perseguições. Foto – EFE

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