Pelo menos mil famílias de 24 comunidades cariocas foram removidas para dar lugar às obras de preparação da cidade do Rio para receber grandes eventos.
Paulo Vasconcellos, Carta Maior
As remoções marcam a vida de Altair Antunes, de 60 anos. Na primeira vez, ele tinha apenas 14. A favela em que morava na Lagoa Rodrigo de Freitas, zona nobre do Rio de Janeiro em acelerado processo de valorização imobiliária na década de 70, foi acusada de dano ambiental por causa da mortandade cíclica de peixes da lagoa e acabou expulsa de um dos cartões-postais da cidade para a até então inabitada zona oeste. Vinte anos depois teve que sair da Favela Cidade de Deus porque era preciso abrir passagem à Linha Amarela, via expressa que liga a Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional do Galão. Agora, corre o risco de ter que mudar mais uma vez.
A Vila Autódromo, onde mora há quase duas décadas, pode atrapalhar a valorização do Ilha Pura, um megacondomínio de classe média alta na Barra da Tijuca, com 31 edifícios de 17 andares cada, espalhados em uma área de 800 mil m², que faz parte do pacote da Parceria Público-Privada que a Prefeitura do Rio firmou com um consórcio de construtoras como forma de se livrar dos custos com as instalações do Parque Olímpico e da Vila dos Atletas para a Olimpíada 2016. “O prefeito negociou essa comunidade com as empresas que vão construir prédios de classe média até 2030. Pobre sempre é excluído do progresso”, diz Altair.
Pelo menos mil famílias de 24 comunidades cariocas foram removidas nos últimos anos para dar lugar às obras de preparação da cidade do Rio para receber grandes eventos. O rastro de exclusão passa pelas obras do corredores exclusivos de ônibus de trânsito rápido (BRTs) e se estende ao Porto Maravilha, projeto de revitalização de 5 milhões de m² da zona portuária com investimento de mais de R$ 8 bilhões, também por meio de uma PPP. Um decreto do prefeito Eduardo Paes, de 19 de março deste ano, transforma a Vila Autódromo em área de utilidade pública para fins de desapropriação. Cinquenta e oito família estão ameaçadas de desapropriação. Das 600 que moravam lá, restam cerca de 100. A maioria está sendo obrigada a ir para o Parque Carioca, do Minha Casa Minha Vida, a um quilômetro de distância.
Essa história de exclusão não passa de mais um episódio de gentrificação – fenômeno que afeta um bairro com a construção de novos edifícios e a valorização da região e expulsa a população de baixa renda local. O processo não é novo no Brasil, nem no Rio. Bairros inteiros da cidade passaram por transformações acentuadas no perfil dos moradores no rastro da especulação imobiliária. É verdade que alguns resistiram como exemplos da convivência entre classes sociais diferentes: Rocinha e São Conrado, Morro Dona Marta e Botafogo, Favela Pavão-Pavãozinho e Copacabana.
“As grandes obras de transformação do Rio têm um custo social para a parcela mais pobre da população. O prefeito do Rio fala abertamente em gentrificação como um processo desejável, mas ela não passa de uma substituição social que sempre beneficia as pessoas com maior poder aquisitivo”, diz o professor Christopher Gaffney, do Departamento de Geografia da Universidade de Zurique, autor do artigo “Gentrificação e Megaeventos no Rio de Janeiro, publicado na revista @metrópolis, do Observatório das Metrópoles, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
“No Rio, o processo de supervalorização imobiliária tem se acentuado em pontos localizados, como a zona sul e parte da zona oeste”, afirma Pedro da Luz Moreira, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, seção Rio de Janeiro. O IAB condena a decisão da prefeitura. O Plano Popular da Vila Autódromo (PPVA), elaborado pela Associação de Moradores da Vila Autódromo com a ajuda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ) e do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense (Nephu/UFF), apresentava alternativas à remoção, com a permanência dos moradores e a urbanização da comunidade, além de sua integração à cidade. A Prefeitura do Rio preferiu desconhecer.
Poucos lugares no mundo resistem ao modelo perverso da gentrificação. A Prefeitura de Paris lançou no fim do ano passado um plano governamental para deter o processo de expulsão dos pobres dos bairros centrais da capital francesa para a periferia. Nada menos de 8.021 apartamentos de 257 endereços foram incluídos no projeto. A ideia é que eles sejam convertidos em moradias subsidiadas para evitar o surgimento de mais um gueto milionário da cidade. Os planos de Anne Hidalgo, primeira mulher na Prefeitura de Paris, tem soluções de aluguel subsidiado a garantias de preservação de zonas residenciais conectadas a serviços e equipamentos para populações de baixo poder aquisitivo. O raio de ação atinge antigos bairros industriais do norte e leste de Paris – atualmente em processo de reconversão urbana e social. Quando algum dos apartamentos de qualquer um dos 257 endereços for colocado à venda deverá, por lei, ser oferecido em primeiro lugar ao governo metropolitano.
“A medida em Paris veio um pouco tarde demais, já que o centro da cidade é totalmente gentrificado”, afirma Christopher Gaffney, da Universidade de Zurique. “A zona oeste de Paris já é muito ocupada pelos ricos. Apesar de a prefeitura ter incentivos para que os empreendimentos imobiliários reservem espaços para populações de baixa renda, os empreendedores preferem pagar as multas e construir imóveis que só podem ser comprados por quem tem renda elevada”, afirma Pedro da Luz Moreira, do IAB/RJ. A boa nova no caso é que se trata de uma política pública de resistência à gentrificação. Existem poucos exemplos no mundo. A cidade de Nova Iorque implantou na década de 60 os chamados “rent controlled” – aluguéis controlados – de apartamentos. Muitos ainda existem hoje. A legislação do estado norte-americano de Connecticut obriga os investidores em imóveis de luxo a dedicar 30% das unidades para alocação social. A Prefeitura de Bogotá, na Colômbia, definiu um macrocentro e estabeleceu um imposto territorial e predial progressivo para imóveis desocupados que provocou uma redução do valor dos terrenos e tornou viável a habitação social a partir de um programa parecido com o Minha Casa Minha Vida.
Já no Brasil, quando se trata do bem sagrado da propriedade, a opção preferencial é ir na contramão dos próprios instrumentos legais. O melhor deles é o Estatuto da Cidade. A Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, estabelece princípios básicos de planejamento participativo e a função social da propriedade. Além de definir uma nova regulamentação para o parcelamento, uso e ocupação do solo, de modo a aumentar a oferta de lotes, e a proteção e a recuperação do meio ambiente urbano, o estatuto prevê a cobrança de IPTU progressivo de até 15% para terrenos ociosos. Aplicado à Copacabana, poderia acabar com o imóvel de engorda – como são conhecidos terrenos e apartamentos deixados vazios para manter a valorização e estimular a especulação imobiliária. Calcula-se que 30% das unidades habitacionais do bairro carioca estejam fora do mercado por conta da ganância das imobiliárias. Treze anos depois, o estatuto ainda é letra morta nos mais de 5 mil municípios brasileiros. Palmas, no Tocantins, foi a primeira das capitais a implantar o IPTU Progressivo, que pode dobrar o valor do imposto para imóveis sociais. São Paulo também já anunciou a adoção da medida.
A política pública de ocupação social das cidades é desprezada pelos administradores e políticos. “A luta contra a gentrificação é difícil, ainda mais em um país com a cultura patrimonialista do Brasil, mas sempre existem saídas. O Favela Bairros promoveu a formalização e a valorização dos imóveis com uma escala pouco significativa de gentrificação. O grave é que agora o processo está acelerado”, diz Pedro da Luz Moreira, do IAB/RJ. “Cidades de países nórdicos ou que já passaram pela fase de desenvolvimento básico, algo pelo qual o Rio não passou, ou que têm prefeitos responsáveis, algo que o Rio não tem, encontram instrumentos mais efetivos contra a gentrificação”, afirma Christopher Gaffney, da Universidade de Zurique. A limpeza social vai deixar entre as vítimas a artesã Jane Nascimento de Oliveira, de 59 anos, que mora há meio século no bairro. A casa que divide com as duas filhas aos poucos é ilhada pelo entulho de quem se rendeu à proposta da prefeitura e as vias que são abertas pelas construtoras do Parque Olímpico, da Vila Olímpica e do Ilha Pura. “Pobre é lixo para a prefeitura. Elas acham que a nossa presença vai infestar a área e fazer doer os olhos dos ricos”, diz Jane.