A ADI sobre comunidades quilombolas e a interpretação mais adequada, por Paulo Thadeu Gomes da Silva*

O julgamento da ADI 3239, ainda pendente junto ao STF, a par de demonstrar que o tempo de tramitação de um processo não é uma grandeza diretamente proporcional ao da decisão a ser proferida(1), coloca em evidência duas linhas de interpretação totalmente distintas, como se fossem, mesmo, linguagens incomensuráveis.

O Ministro Cezar Peluso, relator da ação, julgou-a procedente com base na inconstitucionalidade formal e material do Decreto 4887/03, que regulamenta o artigo 68, do ADCT(2): a primeira representada pela ofensa aos princípios da legalidade e da reserva de lei; a segunda, material, representada, em linhas gerais, pelo fundamento de que os argumentos defensivos da tese da improcedência são de caráter metajurídico, de lege ferenda, e não delege lata, pois que se trata de compreensões sócio-antropológicas e políticas.

O voto da Ministra Rosa Weber vai em completa direção contrária. Sua premissa primeira se assenta na consideração de que o artigo 68, do ADCT, veicula um direito fundamental de propriedade qualificado das comunidades quilombolas. Daí decorre toda sua argumentação, pois que se se está a tratar de direito fundamental, por força do disposto no artigo 5, § 1, da Constituição, há a expressa vinculação dos poderes estatais à sua promoção e proteção. Nessa linha, o decreto em questão nada mais fez do que regulamentar o direito já plasmado em sede constitucional.

Peluso não considera o artigo 68, do ADCT, norma de eficácia plena e auto-aplicável; Rosa Weber, sim. Peluso considera os saberes de outros campos do conhecimento como metajurídicos e, portanto, não os aproveita em suas razões de decidir; Rosa Weber não, e por causa disso os utiliza na construção de seu voto.

O voto de Peluso é mais centrado no princípio da legalidade, como se o artigo 68, do ADCT, necessitasse de lei para ser regulamentado; no aspecto material, decidiu Peluso que o direito veiculado no artigo em discussão é uma espécie de usucapião. Rosa Weber, de sua vez, decidiu que o artigo 68, do ADCT, já trazia em si mesmo todos os elementos necessários à concretização do direito; no aspecto material, decidiu Rosa Weber que o mesmo artigo veicula um direito de propriedade qualificado.

Sem prejuízo de outros elementos que podem ser identificados nos votos aqui analisados, dois parecem ser, por um enfoque jurídico, os mais dignos de nota: a) a presença de decisões de tribunais estrangeiros na fundamentação do voto da Ministra Rosa Weber; b) a utilização de conhecimentos produzidos em outras áreas da ciência e distintas do direito.

Sobre o primeiro tópico é importante destacar que os tribunais brasileiros manifestam uma boa vontade, representada por uma abertura cognitiva, com relação à análise e valoração de decisões proferidas em tribunais estrangeiros – sejam eles cortes constitucionais ou regionais e internacionais de direitos humanos – em suas respectivas razões de decidir, evento esse que parece ser adequado tanto mais quanto se pense na formação de um direito da sociedade mundial.

Incrementa-se, nesse agir, a troca de informações e compreensões razoáveis entre os sistemas jurídicos da sociedade mundial, o que parece ser traduzido no enfrentamento mais adequado da complexidade a ela inerente. Neste particular aspecto, nunca é demais lembrar que mesmo o sistema jurídico norte-americano e a teoria acadêmica, bastante reticentes a esse evento, se abrem à discussão sobre a utilização de decisões judiciais estrangeiras naquele país(3).

Para o caso aqui tratado essa complexidade é representada pela necessidade de se interpretar normas que contêm direito fundamental. O tema se insere fortemente na concepção de constitucionalismo que se manifesta no tempo histórico presente. Significa, em geral, que é a Constituição que dá o tom à canção. Perde força, nesse quadro, o primado do ordenamento infraconstitucional. Constitucionaliza-se quase tudo, mesmo o direito civil.

A interpretação correspondente também sofre, e reflete, os efeitos dessa nova forma de pensar o agir dos poderes estatais, e mesmo da sociedade, se de relações privadas se estiver a tratar. Não parece caber, nessa nova quadra, interpretações que insistam em partir da norma infraconstitucional, como se a constituição devesse ser interpretada a partir do código civil –para ficar apenas em um exemplo. Não à toa, o voto de Peluso qualifica o direito previsto no artigo 68, do ADCT, de usucapião singular.

Atribua-se ou não o nome a esse fenômeno de fundamentalização das relações sociais, certo é que se torna bastante difícil fugir desse esquema. Aqui não se valora se isso é bom ou ruim, apenas se descreve que é assim que funciona – ou deve funcionar –atualmente a sociedade ou, de forma mais adequada, os sistemas sociais.

Curioso, portanto, que no voto de Peluso não se trate de direito fundamental: há a utilização da palavra fundamental em duas passagens do voto – p. 9 e 41 –, contudo, ela não é ali utilizada para qualificar um direito. O recurso é à legalidade. Aqui, por certo, restam claros os dois níveis do discurso: um latente e um manifesto. O manifesto justifica o latente, entretanto, vai além, pois acaba por maquiar o direito que, em realidade, subjaz ao que é supostamente alegado como violado, isto é, lança-se mão da legalidade como anteparo à propriedade privada, que não é mencionada, ao menos de maneira expressa e manifesta, no voto, mas que é o direito que, no limite, está a ser defendido. Pois, que outro significado poderiam ter as frases presentes no voto respectivo e ilustradas por “desestabilização da paz social –grifos originais” e “o que o Estado de Direito não pode tolerar”?

O que vem de ser escrito liga-se ao segundo tópico, traduzido na utilização de saberes produzidos em campos do conhecimento distintos daquele que informa o direito. No voto de Peluso esses argumentos são tachados de metajurídicos – Peluso se serve, nesse momento, do quanto alegado pelo Ministro Carlos Velloso, aposentado e parecerista no processo –; Rosa Weber, por sua vez e em franca contrariedade ao voto apresentado pelo relator, desses conhecimentos faz uso abundante para fundamentar seu voto – aqui serve-se tanto de bibliografia específica quanto das lições de Daniel Sarmento(4). E a pergunta que se coloca é: qual “método” consegue produzir uma decisão mais adequada, desde que se pense que justiça é exatamente e apenas a adequação da decisão alcançada?

No Constitucionalismo atual, inclusivo, que prioriza os direitos fundamentais, não parece haver margem a que a forma prevaleça sobre o fundo. Essa afirmação tanto pode valer como uma espécie de proibição a que o Judiciário deixe de adjudicar o direito em seu aspecto material lançando mão de expedientes revestidos de aspectos formais. Mas, mais do que isso, quer dizer que o Judiciário, e em especial a jurisdição constitucional, deve sempre analisar o direito fundamental material posto, ainda que seja para não reconhecê-lo. O que não parece adequado é exatamente não analisá-lo sob qualquer aspecto ou, uma vez ele presente, não mencioná-lo, não colocá-lo sob a lente microscópica da interpretação.

Essa premissa acaba por servir de ponto de partida a que se justifique a interpretação mais adequada pela maior eficácia que se consiga oferecer a um determinado direito fundamental –pois se ele é fundamental ele possui as características da moralidade, da abstração, da própria fundamentalidade, da preferencialidade e da universalidade(5).

De todas essas características, uma delas pode justificar a opção pela interpretação que leve em conta outros conhecimentos distintos daqueles produzidos pelo direito como sendo a mais adequada, e que é exatamente a fundamentalidade. Um direito é fundamental quando a não satisfação de uma carência ou necessidade produza a morte ou um sofrimento grave ou toque o núcleo essencial da autonomia, que é a liberdade(6). Pois bem, como então interpretar a fundamentalidade do artigo 68, do ADCT, que trata de um direito fundamental, sem o recurso a saberes outros que não aqueles, essencial e exclusivamente, jurídicos? A dogmática jurídica oferece instrumentos a tanto?

Na construção aqui operada não parece haver condições de possibilidade de se obter uma decisão adequada, portanto, por meio de uma interpretação adequada, que não aquela que possa, por exemplo, esclarecer que a territorialidade para os quilombolas é elemento imprescindível a sua peculiar forma de ser e de viver – artigo 216, II, da Constituição –, o que, se de um lado implica uma cultura de subsistência e a utilização de meios de produção quase que artesanais, de outro significa a refutação da forma capitalista de exploração da terra –neste aspecto, a territorialidade para os quilombolas muito se assemelha à dos índios.

De onde, então, vêm os conhecimentos necessários a que se possa dar conta de esclarecer, no processo de interpretação da norma constitucional de direito fundamental, a fundamentalidade desse direito? Vale dizer, uma vez não satisfeita essa carência ou necessidade de terra dos quilombolas, haverá a produção de um sofrimento grave ou mesmo da própria morte. Quem pode responder a isso são os conhecimentos produzidos pela antropologia, sociologia e mesmo, em um grau menor, a ciência política, e não, data vênia, o direito civil. E não há nada de metajurídico nisso; quando muito pode se caracterizar o apelo a esses saberes como extrajurídicos, mas nunca como algo estranho e etéreo ao mundo jurídico. Daí a necessidade, talvez, de se ter realizado audiência pública para o esclarecimento adequado do tema, o que foi pedido e negado pelo relator, sob o fundamento de que se tratava exclusivamente de questão de direito: sim, de direito, mas jurídica, o que pode atrair a incidência de outros elementos para a compreensão da questão posta, desde que se pense que o sistema jurídico possa decodificar a linguagem correspondente e decidir pela aplicação de seus programa e código.

Como se pode notar na descrição aqui empreendida, há cardápios de argumentos para as duas interpretações levadas a cabo pelos Ministros Cezar Peluso e Rosa Weber. Não se quer aqui, por óbvio, desautorizar qualquer interpretação realizada na ADI 3239; o que se pretende é apenas exercer juízo crítico a seu respeito e, no limite, tentar demonstrar por quais razões a interpretação construída pela Ministra Rosa Weber parece ser a mais adequada.

Aguardemos o desfecho.

*Paulo Thadeu Gomes da Silva é Doutor em Direito, Professor da Escola Superior do Ministério Público da União, Procurador Regional da República. Texto originalmente publicado em Justificando.

Notas:

(1) – A ADI foi proposta pelo então PFL, hoje DEM, em 25.6.2004; em 18.4.2012 o relator Min. Cezar Peluso apresentou seu voto; a Min. Rosa Weber pediu vista do processo nessa data e o devolveu em 23.4.2012, tendo apresentado seu voto em 25.3.2015; nesse dia, pediu vista do processo o Min. Dias Toffoli.

(2) – Art. 68 – “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos“.

(3) – Nesse sentido, o esteticamente belo e tecnicamente substancioso artigo de GINSBURG, Ruth Bader, “A decent respect to the opinions of [human] kind”: the value of a comparative perspective in constitutional adjudication, Cambridge Law Journal, 64(3), November 2005, p. 575-592. O mesmo evento que aqui é mencionado foi analisado por BODEN, Didier, «Comparatisme», in : Joël ADRIANTSIMBAZOVINA, Hélène GAUDIN, Jean-Pierre MARGUÉNAUD, Stéphane RIALS, Frédéric SUDRE (dir.), Dictionnaire des droits de l’homme, Paris : PUF, 2008, pp. 183-187.

(4) – Terras quilombolas e constituição: a ADI 3.239 e o Decreto 4.887/03, in Por um constitucionalismo inclusivo, Lumen Juris, RJ, 2010, p. 275-309.

(5) – Cfr. ALEXY, Robert, Direitos fundamentais no estado constitucional democrático, in Constitucionalismo discursivo, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2011, p. 41-54.

(6) – Sobre a fundamentalidade, idem, p. 48.

Comments (1)

  1. O decreto possibilita a organização de Quilombola fictício, quando no seu art2 diz: ……. quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição……… Assim qualquer grupo que se auto-atribuir será pela lei reconhecido como Quilombola. Esta redação possibilitará uma industria de grilagem de terras amparada na lei e isto já está ocorrendo. Acredito que os Quilombolas históricamente estabelecidos devem ter suas terras tituladas, mas Quilombolas montados a partir do estabelecido no decreto tem que ser desmascarados. Está faltando honestidade na aplicação do decreto ou sobrando esperteza.

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