Dez anos após deixar a Amazônia, onde atuou na defesa dos Direitos Humanos, o padre fala das dificuldades para fazer a democracia nacional avançar
Por Ivânia Vieira, em A Crítica
SÃO LUÍS (Maranhão) – Dez anos depois de deixar a Amazônia para trabalhar, por 11 anos, no interior do Maranhão, o padre, teólogo e escritor Humberto Guidotti, 75, classifica de paliativas as mudanças ocorridas na região nas últimas três décadas. Ao comparar as duas regiões onde viveu e trabalhou por 38 anos, o sacerdote vê semelhanças no grau de violência. “Não houve mudança das relações políticas e sociais. Diria que no Maranhão a situação é um pouco pior”, avalia Pe. Guidotti que há dois dias retornou, dessa vez, definitivamente, para o seu país de origem, a Itália. Nesta entrevista, que encerra a série Amazônia e Democracia, e possivelmente a última concedida por ele no Brasil, Guidotti aborda as dificuldades para fazer a democracia nacional avançar.
O que mudou nesses 30 anos de história no Brasil?
Não mudaram as relações políticas e sociais. Li a entrevista do bispo de São Gabriel, dom Edson Damian, e ele diz que nos municípios do Alto Rio Negro lida-se hoje com problemas e mazelas que já deveriam ter sido superadas. As escolas são palhoças, o problema na saúde se agrava e tem gente passando fome. Permanece a mesma situação: quem tem o mando na mão é o governador, é o prefeito, é o senador, o resto são todos acólitos, pedintes dos favores desses que têm o mando nas mãos para si e para os familiares. Isso não é democracia!
No caso brasileiro, as minorias estariam impedidas?
Exatamente. É o que ocorre com os quilombolas e os índios. Numa democracia, os índios não sobreviverão como indivíduos portadores de valores e dignidade. Serão sempre a minoria nas votações que decidem sobre aqueles que representarão o povo. Por que não foi feita uma legislação capaz de assegurar aos indígenas a participação efetiva nos postos de comando, no parlamento? Da forma como está, eles nunca conseguirão fechar a partida e perderão o jogo.
O conservadorismo ameaça dominar o mundo?
Temos motivos para ter medo dessa possibilidade porque na Europa os conservadores estão ganhando espaço. Aqueles países da Europa que pareciam ser os mais seguros democraticamente estão contagiados por esse vírus do conservadorismo. E conservadorismo significa se isolar, se ilhar no próprio mundo, na própria civilização e tradição.
A Igreja participa dessa onda?
Dentro da Igreja o conservadorismo também está presente. Não é que exista fundamentalismo islâmico, hebraico. Tem o fundamentalismo protestante, católico, sabemos disso. E esses fundamentalismos avançam. Nos EUA tinha a direita católica que fazia incursões nos hospitais que realizavam abortos e incitava a matar médicos que faziam essas operações. A direita dos Estados Unidos, até onde eu sei, não desapareceu e continua agindo.
E quanto à Igreja da Amazônia?
Estou longe há um bom tempo. Mas, digo que primeiro, a Igreja tem que resolver dois problemas. O da inculturação. Não se pode entrar numa aldeia e aplicar as leis do direito canônico romano naquelas civilizações que estão longe da nossa mentalidade. O bispo Edson Damian dá o exemplo de crianças que nascem e recebem um nome dentro da sua comunidade indígena e quando vão para o batizado o padre exige o nome de um santo ou nome europeu. Nesse sentido, a inculturação do Evangelho não começou, está só no papel. Precisa fazer adaptações.
Então, na relação da Igreja com os índios não houve mudanças mais avançadas?
Sei que o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) continua sendo a sentinela defendendo com unhas e dentes os pontos de vista dos indígenas. Egon Heck (da secretaria nacional do Cimi) mostra com frequência as contradições do governo (até dos governos do PT) em relação aos povos indígenas. Nesses governos, os índios têm passado vexames e constrangimentos porque eles ficaram reféns do agronegócio e do modelo monoexportador. Logo os índios são vistos com empecilhos.
Quanto ao papel dos partidos políticos…
Não escapa nenhum. O PT nasceu fazendo a lição exata da construção de um partido que nasce da base, que é escutar as necessidades da base, estudar os problemas com os intelectuais, propor saídas, voltar ao povo, dizer ao povo qual é a metodologia que vai usar para resolver os problemas que o povo apontou e pedir apoio por meio do voto. Só que esse bonito percurso não foi mantido pelo PT. Primeiro, o PT cancelou da sua história o orçamento participativo; depois, o partido abandonou a formação dos militantes. No ano de 2005, os militantes pró-candidatura Lula não estavam mais nas ruas porque amavam o partido, estavam lá porque iriam receber R$ 50.
É possível derrotar a corrupção?
Sim. Conhecemos tudo da corrupção, os mecanismos por onde ela funciona são conhecidos. O juiz Marlon Reis descreveu o caminho da corrupção. Uma coisa nova que deveria ajudar seria o julgamento do ‘escândalo da Petrobras’ porque apareceu, pela primeira vez, a denúncia não somente dos corruptos mas dos corruptores. A Justiça e a população sempre ficaram em cima do corrupto e escondiam ou não sabiam do corruptor. Hoje sabemos.
A sociedade não é partícipe dessa corrupção?
É uma boa pergunta para pensarmos. Todos nós somos apoiadores da corrupção, a começar pela não exigência da nota fiscal que é uma forma efetiva de combate à corrupção. Continua o lema de Maluf – ‘rouba mas faz’ – continua a mentalidade de levar vantagem em qualquer situação, continua o lema do jeitinho brasileiro e outros tantos.