Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
Durante dez anos estive em um ou outro cargo de direção do Sintufsc – o sindicato dos trabalhadores da UFSC. Nossa proposta era, além de travar a luta corporativa, absolutamente necessária, preparar os trabalhadores para grandes debates da vida nacional e internacional. O ponto central era, a partir das atividades de formação, incentivar o despertar da consciência de classe.
Marx diz, no Capital que a consciência de classe – o entendimento de como funciona o sistema capitalista, formado por uma classe que explora e outra que é explorada – brotaria no trabalhador na medida em que a classe operária estivesse cada vez mais disciplinada, unida e organizada. Saber como funciona o sistema, tirar o véu que cria a alienação, eram condições necessárias para isso. Daí o trabalho de formação que os sindicatos precisavam desenvolver.
Ter uma consciência de classe consiste em discernir as relações de produção capitalistas e defender os interesses de sua classe – a dos trabalhadores – contra o capital. Pressupõe ainda uma postura solidária com todos os seus iguais – trabalhadores explorados – e uma ação coletiva diante do inimigo comum.
Conferências, seminários, cursos, tudo era organizado para que os trabalhadores da UFSC pudessem desvelar a realidade e adquirir essa consciência de classe revolucionária, capaz de atuar no sentido de destruir o sistema capitalista, solidariamente unida com os demais companheiros na mesma situação . De certa forma, isso não funcionou. Apesar de durante essa década termos conseguido aglutinar novos trabalhadores nesse caminho, com o passar do tempo eles foram se afastando e alguns chegaram abandonar totalmente o campo da luta de classe.
É fato que algumas pessoas mantiveram o rumo, mas foram poucas. Não conseguimos envolver a categoria no projeto de mudança de mundo. E aí aparece uma questão que tem me ocupado nos últimos tempos. O trabalho de informação sobre como funciona o sistema foi feito. Não há como dizer que os trabalhadores desconhecem que existe um sistema capitalista, e que, nele, há os que exploram e os que são explorados. Todos sabem disso. Também sabem que na sua relação com o empregador eles são os explorados. Ainda que os trabalhadores públicos sejam pagos pelo dinheiro dos impostos, logo, pelo povo, é o estado que assume o papel de patrão. Como o estado existe para atender os interesses da classe dominante – os exploradores – também os trabalhadores públicos estão imbricados nessa equação de dominação trabalho x capital. E as pessoas sabem disso. Então por que não têm consciência de classe?
São históricas – e algumas até bizarras – situações em que os trabalhadores da UFSC mostraram sua face mais conservadora e egoísta na relação com outras categorias e mesmo com estudantes. Pedidos de ajuda que foram negados, houve rejeição à lutas conjuntas e até a negativa de um prato de comida. Discursos dos mais venenosos contra o MST e até mesmo contra os palestinos ou iraquianos. Por quê? Se ao longo da vida laboral e sindical a categoria teve a possibilidade de conhecer a realidade, saber como funciona a sociedade, sair da caverna da ignorância, por quê?
De certa forma o pensador polonês Zygmunt Bauman apresenta alguns elementos para refletir sobre esse questionamento. Segundo ele, os tempos vividos hoje são outros, líquidos, no qual nada mais é feito para durar. A sociedade da produção foi substituída pela sociedade do consumo, logo as respostas para os problemas atuais precisam estar ancoradas na realidade presente. O trabalhador, ao que parece, já sabe que é um explorado, tem clara consciência disso, mas aparentemente ele não se importa, desde que possa estar incluído no mundo do consumo.
O próprio sistema capitalista – sempre se renovando – oferece ao empobrecido a possibilidade de estar na mesma órbita que o explorador. Ou seja: o rico tem um celular de mil dólares, mas ao pobre também é dada a possibilidade de ter um celular. Custará mais barato, será uma imitação, mas as funções estão ali. Terá acesso à internet e ao uatizapi. Logo, que se dane a exploração, estamos no fluxo. Nesses novos tempos já não basta “desvelar” ao trabalhador a realidade, pois a ideologia já não está mais na consciência. A ideologia está na coisa. Daí que é preciso trabalhar com outras categorias, ligar o contexto da exploração – que é ruim e destruidora do humano – com o mundo de hoje, com os desafios de hoje e com as alienações de hoje.
Se a ideologia está na coisa, no objeto que é vorazmente consumido, é a partir daí que temos de começar a pensar. Os trabalhadores, seja no trabalho formal ou informal, que conseguem garantir recursos para viver no mundo das coisas maravilhosas, não se importam que esse mundo venha a conta gotas, ou em imitações baratas. Eles querem comprar e participar. É o cidadão cliente, aquele que só é, se compra.
Esse é, então o desafio do sindicalismo. Debruçar-se sobre a realidade. Não dá para ficar choramingando que as pessoas não querem lutar, que não vêm para as manifestações. Há que entender por que isso acontece e traçar novas respostas para esses novos desafios. Ou faz isso, ou estará fadado à morte, ou a indiferença, que é também uma espécie de morte.
No campo do serviço público o desafio é ainda maior. Os salários são seguros, os empregos estáveis. Assim, mergulhar no mundo das coisas, do consumo, é bastante fácil. Nos últimos anos, os ventos foram favoráveis. A economia estabilizou, o crédito fluiu, foi possível comprar muitas coisas, viajar, consumir à larga. Agora, se anuncia um tempo de arrocho. Os preços vão subir, o crédito escassear. Haverá desconfortos. O que não sabemos é se, acostumados com a ilusão do consumo, os trabalhadores terão forças para escapar a esse canto de sereia. Por isso, os sindicatos continuam sendo necessários. Para que a luta contra a opressão e alienação não seja uma batalha solitária. Mas, se os sindicalistas não estiverem preparados, teórica e politicamente, perderão a batalha.
Nesses dias de paralisação do serviço público federal, a UFSC se apresenta como um palco privilegiado desse debate. Setores fecharam as portas atendendo ao chamado do sindicato de “cruzar os braços”. Uma resposta oca, a um chamado oco. Respostas velhas para novos desafios. Não há movimento, não há debates, não há reflexões.
Basta lembrarmos que no ano passado, a nova safra de trabalhadores, que entrou no serviço público nos últimos anos, apresentou uma proposta de greve original e novidadeira: uma greve de trabalho. Não fechar as portas, mas abrir. Aquilo foi uma proposta brilhante. Novas respostas para novos tempos. O resultado dessa novidade foi um golpe dado por parte da categoria – direção sindical, aposentados e alguns ativos da velha guarda – que boicotou o movimento e, em uma assembleia melancólica, acabou com a greve que durou quase três meses, cheia de atos, movimentos e atividades culturais e políticas. O golpe, desagregador e inusitado, veio por conta da incapacidade de compreender os novos tempos, as novas respostas. Trabalhar, em greve? Como assim? Nunca foi assim? O velho sindicalismo, cego, prisioneiro do passado.
Mas, o que apareceu como uma derrota pode ser também o germe de uma mudança. Aquela brisa novidadeira não se dissipou. Ela vive, nos corredores, nos bares do campus, nas paradas de ônibus. A juventude observa, estuda, se encontra e debate. A última batalha ainda não foi travada.
Eu tenho muitas esperanças…
–
Foto: Um belo momento da greve pelas 30 horas