No Haiti, movimentos sociais querem invasores fora dali

A favela Fort National, em um morro de Porto Príncipe, oferece um perfeito exemplo do misto de ironia, agonia e luta que envolve o Haiti hoje.

Por Kim Ives, Haiti Liberté, em A Pública

Sua superfície, rochosa como a da Lua, está coberta por pilhas de detritos, sujeira, lixo. Centenas de moradores morreram aqui quando o terremoto de 12 de janeiro de 2010 destruiu oito em cada dez casas de concreto que se apertavam – e ainda hoje se apertam – entre os corredores estreitos e escuros nos quais corre o esgoto. Moscas e ratos convivem nesse labirinto sombrio com famílias numerosas; as crianças se agacham como sapos e saem pulando quando um estranho passa pela entrada das residências (não raro protegidas apenas por uma cortina).

Observando-se o padrão de telhados de lata por Fort National, vergalhões enferrujados retorcidos escapam das paredes de concreto inacabadas, como dedos rogando aos céus pelo maná.

No alto dessa vizinhança empoleirada sobre a maior colina do centro da capital, há uma enorme placa que já ostentou a visão imaginada de um arborizado complexo de apartamentos com calçadas largas e pessoas bem-vestidas. Esse projeto, que seria levado a cabo por uma construtora dominicana sob um contestado contrato sem licitação, seria financiado por US$ 174 milhões dos US$ 13 bilhões da verba de ajuda internacional ao Haiti pós-terremoto. A placa, como a promessa, já se deteriorou há muito tempo, como tantos projetos anunciados no país depois da tragédia. Menos de metade dos US$ 13 bilhões já foi gasta, e, além de alguns hotéis de luxo e um parque gigante no norte, longe da região do terremoto, é difícil ver mudança na dura realidade do Haiti apesar do mutirão feito a seu favor pelo mundo inteiro.

Oficial da Minustah, missão da ONU liderada pelo Brasil no Haiti, conversa com haitiano e oficial do exército norte-americano em Porto Príncipe
Oficial da Minustah, missão da ONU liderada pelo Brasil no Haiti, conversa com haitiano e oficial do exército norte-americano em Porto Príncipe

Para onde foram os US$ 174 milhões de Fort National?

“Nós fomos informados pelos assessores de [Michel] Martelly [atual presidente do Haiti] de que cerca de US$ 44 milhões supostamente foram destinados à construção de 3 mil pequenas casas em um deserto remoto [no projeto de] Morne à Cabri”, disse o ex-senador Moïse Jean-Charles. “Mas quando eu perguntei ao ministro das Finanças de Martelly, em uma audiência do Senado, para onde foi o dinheiro, ele apenas sorriu. Ao menos foi honesto, pensei.”
O bairro de Fort National é sede também de uma fortaleza homônima construída pelo fundador do Haiti, general Jean-Jacques Dessalines, para enfrentar represálias ou tentativas de recolonização francesas, inglesas ou espanholas após a independência do Haiti – a primeira a ser proclamada na América Latina –, em 1º de janeiro de 1804.

Hoje, contudo, esta histórica guarnição está ocupada por invasores: as tropas da odiada Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah). Estabelecida no país desde 1º de junho de 2004, a força liderada pelo Brasil – agora com cerca de 7.500 militares – foi responsável por massacres, estupros, abusos sexuais e, mais notavelmente, a importação de cólera em outubro de 2010. Fezes infectadas de soldados nepaleses da ONU vazaram de banheiros externos para o maior rio do Haiti e deram origem à pior epidemia de cólera do mundo, que custou aproximadamente 9 mil vidas haitianas. Apesar da abertura de três processos judiciais em Nova York, a ONU nega qualquer responsabilidade pelo surto.

A placa desbotada anunciando o complexojamais construído e as silhuetas de soldados da ONU com metralhadoras em punho sobre os muros das fortificações de Dessalines estão entre os “estímulos” para a militância da população de Fort National, uma das mais organizadas e mobilizadas de Porto Príncipe. A vizinhança é sede do Movimento para Liberdade, Igualdade e Fraternidade entre Haitianos (Moleghaf), uma organização popular com papel central no partido político Coordenação Dessalines (KOD), formado no último mês de fevereiro.

Reconhecido pelos moradores como prefeito do bairro, Oxygène David, 40, é o líder de ambas as organizações e vive em um casebre de um quarto, danificado pelo terremoto, localizado nas entranhas do labirinto de Fort National. Ex-emendador de fios de postes telefônicos para a companhia estatal Teleco, Oxygène perdeu seu emprego em 2008, quando a empresa foi privatizada pelo antigo presidente René Préval, e se tornou líder da mobilização anti-neoliberal no Haiti, organizando piquetes semanais em frente ao Ministério dos Assuntos Sociais para exigir pagamento retroativo e reparações. Por sua militância, acabou preso duas vezes por meses – sem julgamento – sob os presidentes Préval e Martelly.

Ao longo da noite de 11 de janeiro, até as 5 da manhã, centenas de moradores de Fort National se reuniram em volta de um palco erguido em um terreno baldio perto do topo da favela. O evento foi organizado por vários “baz” – pequenas associações de jovens – da região, sendo a “Baz Rezistans” (Base da Resistência) a principal delas, cujos membros são ligados ao Moleghaf. A maior parte da noite consistiu em músicos haitianos tocando rasin (ritmo tradicional) e rap com conteúdo claramente político. Mas também houve discursos políticos.

“Temos de seguir mobilizados para lutar contra as (s)eleições que eles tentaram impôr sobre nós”, discursou Oxygène. “Não são possíveis eleições livres, justas e soberanas a menos que Martelly renuncie e a Minustah deixe o país. A iminente febre eleitoral vai intoxicar e corromper muitas pessoas, preparando-as para aceitar qualquer coisa. Mas nós devemos nos manter firmes e não permitir outra eleição fictícia como a de 2011.”

Soldados da Minustah observam o movimento durante o 2º turno das eleições presidenciais no Haiti em 2010. Foto: Divulgação / www.haitielections2010.com
Soldados da Minustah observam o movimento durante o 2º turno das eleições presidenciais no Haiti em 2010. Foto: Divulgação / www.haitielections2010.com

“Seleições”

Movimentos sociais no Haiti agora utilizam frequentemente o termo “seleições”, indicando que os resultados eleitorais são decididos nos bastidores dos poderes estrangeiros, sobretudo Washington, e de elites locais através de artíficios nas urnas e contagem de votos. Ou seja, na visão de muitos haitianos, os candidatos são selecionados, e não eleitos.

Em 2011, Washington, a Organização de Estados Americanos (OEA) e a Minustah intervieram nas eleições soberanas do Haiti para tirar do pleito o presidente apoiado por Préval, Jude Céléstin, e substituí-lo pelo antigo cantor de compas (gênero musical do Haiti) e queridinho da direita, Martelly, que assumiu o poder. Como pontuou o então embaixador da OEA no Haiti Ricardo Seitenfus: “Washington e seus aliados não apenas derrubaram o Conselho Eleitoral do Haiti; eles derrubaram o eleitorado haitiano”. Ele chamou de “um golpe eleitoral” os resultados obtidos em 28 de novembro de 2010 e em 20 de março de 2011.

Após o primeiro turno da última eleição presidencial, em 28 de novembro de 2010, quase todos os candidatos deram uma entrevista coletiva no mesmo dia dizendo que a votação deveria ser anulada devido a irregularidades, fraude e caos. Naquela noite, porém, o chefe da Minustah, Edmond Mulet, ligou para Mirlande Manigat e Michel Martelly para convencê-los de que eles estavam na frente e deveriam continuar na corrida eleitoral. Eles continuaram.
A pedido de Washington, a OEA enviou uma equipe de supostos especialistas para analisar os resultados das eleições, empurrando o vice-líder Jude Célestin para o terceiro lugar, e Michel Martelly, terceiro, para a segunda colocação. Em um relatório de agosto de 2011, o Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas (CEPR) mostrou que os cálculos da OEA eram completamente não científicos e, aparentemente, motivados politicamente.

Haitianos, em sua ampla maioria, também perceberam esse jogo de poder, mas, ainda se recuperando do terremoto, em geral se resignaram a dizer: “Vamos ver o que Martelly pode fazer”. O que ele fez nos três anos e meio após sua posse, de 14 de maio de 2011, foi estabelecer um regime neoduvalierista, cujas marcas registradas são corrupção flagrante, impunidade, repressão, intimidação, ineficiência e desperdício, tudo suavizado pela mais desavergonhada e custosa propaganda que proclama por todos os cantos que “o Haiti está avançando”. Eleições parlamentares e municipais, já marcadas, jamais se realizaram (diferentemente dos três carnavais por ano), resultando na extinção do Parlamento em 12 de janeiro. Enquanto manifestações cresceram em tamanho e frequência nos meses anteriores, também cresceu a repressão, engolindo a manifestação seguinte, e o Haiti entrou em um círculo vicioso político.

2 de fevereiro de 2015: dia de greve geral no Haiti. Foto: La Izquerda Diario Chile
2 de fevereiro de 2015: dia de greve geral no Haiti. Foto: La Izquerda Diario Chile

A oposição

A oposição ao governo Martelly se divide em três correntes principais que, no entanto, permanecem basicamente unidas. Primeiro, há o Movimento Patriótico pela Oposição Democrática (Mopod), uma coalizão liderada majoritariamente por líderes tradicionais da “classe política”, como Tumeb Delpé, a adversária de Martelly em 2011, Mirlande Manigat, e o ex-deputado Serge Jean-Louis. Há também a Organização Política Família Lavalas, do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, cujo atual líder nominal, Dra. Maryse Narcisse, mais recentemente caracterizou o partido como “oposição moderada”. E a corrente dessalinita, composta pela KOD e pela Plataforma das Crianças de Dessalines (PPD), liderada pelo ex-senador Moïse Jean-Charles. (Recentemente o Mopod trocou seu “D” para significar Dessalines também.)

A revolta liderada pela oposição resultou na renúncia, em 13 de dezembro, do primeiro-ministro Laurent Lamothe (parceiro de negócios de longa data de Martelly), bem como na libertação de prisioneiros políticos, e também um “peão” de Martelly que liderava a Suprema Corte foi reposto, além de ter sido nomeado um novo conselho eleitoral.

Apesar dessas concessões, as manifestações semanais – às vezes diárias – de milhares continuaram, recebidas com gás lacrimogêneo, balas de borracha e canhões de água. Até as concessões que o governo é forçado a fazer parecem provocação, dado o estado de espírito de revolta no Haiti.

Apenas na primeira semana de fevereiro, nos dias 2 e 3, uma greve geral de transportes paralisou o país, deixando sinistramente vazias, com barricadas de pneus queimando, as principais ruas da capital. Nessa semana, um galão de gasolina no Haiti estava custando, 215 gourdes (US$ 4,58), conforme fixado pelo governo. A média de preço nos Estados Unidos é de US$ 2 o galão. Por isso, quando o novo primeiro-ministro do governo Martelly, Evans Paul, negociou um acordo com empresas de transporte na noite de 2 de fevereiro, diminuindo o preço da gasolina para 195 gourdes (US$ 4,15) por galão, a população ficou pulando de raiva.

“A greve nacional foi um completo sucesso, as ruas todas sem carros, e tudo que conseguimos foi uma redução de 43% no preço?”, disse um irado manifestante. “Isso é loucura. É exatamente por isso que Martelly deve sair.”

Michel Martelly, atual presidente do Haiti, cumprimenta o Secretário de Estado norte-americano John Kerry durante visita a Washington em fevereiro de 2014
Michel Martelly, atual presidente do Haiti, cumprimenta o Secretário de Estado norte-americano John Kerry durante visita a Washington em fevereiro de 2014

Os amigos de Martelly

Toda semana, uma nova delegação oficial chega da América do Norte ou da Europa para trazer apoio ao regime de Martelly. Houve visitas de delegações de congressistas dos EUA e de membros dos governos da França e do Canadá.

No fim de janeiro, o Conselho de Segurança da ONU e a organização Clube de Madri fizeram visitas de três dias. Em 28 de janeiro, ao deixar o Haiti, o ex-presidente boliviano e vice-presidente do Clube de Madri, Jorge Quiroga, instou a Minustah a “reforçar sua presença no Haiti” e convidou ONU, OEA e União Europeia para enviar “missões in loco para observar o processo eleitoral”. O convite deixou uma porta aberta, porque as três instituições enviaram missões de observadores às eleições haitianas nas últimas duas décadas e meia.

No mesmo dia 28 de janeiro, cerca de 40 militantes do Moleghaf e o Movimento pelo Desenvolvimento Nacional (Modena) realizaram um piquete em frente à embaixada norte-americana em Tabarre, nos subúrbios da capital. Foi o primeiro de sete atos anti-imperialistas mensais planejados até 28 de julho de 2015, centenário da primeira ocupação do Haiti pela Marinha dos EUA, que durou até 1934. Os manifestantes não tinham dinheiro nem para pagar a tarifa de transporte até lá.

“A libertação do Haiti não virá da assim chamada comunidade internacional”, disse Henriot Dorcent, outro líder da Coordenação de Dessalines. “Na verdade, a libertação do Haiti da pobreza, injustiça e instabilidade política só virá quando o povo haitiano impedi-los de se intrometer em nossos assuntos internos. É para isso que nós na KOD e a maioria do povo haitiano estamos lutando hoje.”

Crianças haitianas em campo de desabrigados pelo terremoto, em 2010, diante do Palácio do Governo. Foto: Eliza Capai
Crianças haitianas em campo de desabrigados pelo terremoto, em 2010, diante do Palácio do Governo. Foto: Eliza Capai

Em fevereiro e março, os piquetes mensais do Moleghaf em frente da embaixada continuaram, mas a mobilização pela saída de Martelly arrefeceu quando o Conselho Eleitoral anunciou o calendário eleitoral deste ano: primeiro turno de eleições parlamentares e municipais em agosto e segundo turno junto com o primeiro turno das eleições presidenciais, em outubro; e segundo turno da eleição principal em dezembro. As Crianças de Dessalines, o Mopod e a Família Lavalas já anunciaram que terão candidatos, embora os dois primeiros grupos tenham dito previamente que não participariam de eleições comandadas por Martelly e supervisionadas pela Minustah. Apenas a KOD manteve sua posição e se recusou a concorrer nas futuras eleições, que considera um truque apenas para “seleições”.

“Nossa luta é como a de Jean-Jacques Dessalines há dois séculos ou [do líder guerrilheiro antiocupação] Charlemagne Péralte contra os americanos há um século”, disse Oxygène David. “O império pôs Martelly no poder como um fantoche para realizar sua agenda, cercado por um exército de ocupantes para protegê-lo. Mas, como nossos ancestrais, continuaremos lutando até que tanto o fantoche como seus protetores tenham ido embora. Esse é o tipo de determinação que o povo haitiano mostrou no passado, e é a mesma determinação que mostraremos novamente agora.

Imagem destacada: Vista de Porto Príncipe, capital do Haiti. Foto: Eliza Capai

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